quarta-feira, 3 de março de 2010

A falta do vínculo

Já devo ter comentado aqui, e mais de uma vez, sobre o elevado grau de individualização social a que estamos submetidos, tal como sobre suas conseqüências mais negativas. Embora essa idéia de individualização não seja considerada, em muitos casos, sinônimo de individualismo ou egoísmo, acredito que exista uma relação de proximidade entre os dois, que não pode ser negada.

Em outras palavras: embora "individualização", quando se refere à transferência de responsabilidades diversas dos anteriores grupos de pertença, comunitários e societários, diretamente aos indivíduos isolados, não seja equivalente ao "individualismo" - a falta de relações sociais entre os indivíduos -, ambos podem influenciar-se mutuamente. A transferência de responsabilidades pode trazer a ilusão de que os indivíduos não precisam de ninguém além deles mesmos, enquanto os egoístas tendem a atrair a responsabilidade para si mesmos, "por vontade própria".

Como alguns autores já ponderaram, é verdade, o indivíduo contemporâneo não se encontra simplesmente isolado dos demais - pelo contrário, na maior parte das situações ele estabelece um número de relações muita vezes maior do que no passado. É evidente que o advento da Internet também permitiu a difusão de inúmeros novos modos de relacionamento. Assim, é irreal associar o período contemporâneo ao simples individualismo, entendido pela ausência de relações sociais.

Contudo, o que assistimos hoje, independentemente do número de laços que possuímos, é a insuficiência de tais laços na tarefa de dar sentido à nossa existência e nos retirar de um sentimento mais profundo de solidão. De fato, em grande medida mantemos relações efêmeras, pouco intensas; e, no final das contas, nossas "grandes amizades" ainda se reduzem a um número menor do que os dedos de uma mão - e isso, quando existem.

Desde Durkheim, na Sociologia, e não sei já há quanto tempo na Psicologia, discute-se os efeitos do isolamento dos indivíduos, determinado pela configuração da sociedade pós-tradicional. Mais atualmente, as preocupações voltam-se aos comportamentos compulsivos que, em meio a um ambiente de extrema insegurança, garantem uma segurança banal, quase patética, pela mera repetição de ações mecânicas. Pelo que noto, esses comportamentos, que não deixam de ser uma espécie de fuga das crueldades do mundo, ganham mais força e razão de existência quando nos vemos desprovidos de relacionamentos profundos, que nos trariam uma segurança a um prazo maior e imputariam sentidos mais significativos às nossas vidas.

Eu, obviamente, não sou exceção: encontrando-me sozinho, desconectado da pessoa com a qual mantenho meu maior vínculo, sou vítima fácil de minhas inúmeras compulsões. Nessa situação, o peso da responsabilidade - não só sobre minha existência, mas sobre a existência de pessoas próximas que parecem ter abandonado qualquer pretensão de responsabilidade - torna-se insuportável. A fuga para os mundinhos de fantasia do vício, para toda a espécie de comportamento maníaco, torna-se o único meio para evitar os males do mundo e banhar-se de uma segurança e felicidade banais e absolutamente provisórias. Mas esse monstro do vício, insaciável por natureza, escraviza o ser que o alimenta, barganhando por um mínimo de satisfação...

Esse monstro, é claro, pode ser camuflado entre ações de maior aceitação social. Vícios como o televisivo e o informático ainda não são encarados com tanta seriedade como os trazidos por algumas drogas, lícitas ou ilícitas. A mania de limpeza de muitas donas-de-casa também não adquiriu, ainda, o status social pleno de vício ou compulsão a ser combatida. Ou seja, esse monstro é muito mais ardiloso e presente do que se imagina, podendo estar totalmente oculto aos olhos das pessoas mais próximas.

É nesse período de isolamento, em especial, que me encontro capaz de perceber o peso da falta do vínculo, e de seu poder de nos tirar da escuridão da solidão. A companhia pode ser um remédio bem mais eficaz, ao atacar a raiz do problema, do que os comportamentos viciosos: esses, de fato, causam efeitos colaterais por vezes piores que a doença que se propõem a combater. 


Pedro Mancini

3 comentários:

Luiz "o Mediano" disse...

Fala meu rapaz, muito boa essa postagem, realmente a falta da distração de uma companhia nos deixa nas garras de nosso monstro interior, vc o discrimina como o vício, mas percebo que o meu é uma fera indomável, de fúria cega que não distingue ninguém, controlá-lo é um desafio diário, que por vezes beira o fracasso. A solução seria encontrar outra pessoa para me distrair deste monstro, mas como adotei a filosofia jedi, onde amar é proibído justamente porque o amor vem atrelado com sentimentos do lado negro, decidi viver sem amar ninguém, assim, não é necessário sofrer a dor da perda (seja da morte ou do abandono) assim como a mágoa, pois a mágoa só dói quando vem de quem não que se espera que venha.

Unknown disse...

É, meu amigo, todos nós temos nosso "lado negro". E todos nós tendemos a achar que ele é mais negro em nós do que nos outros.

Unknown disse...

Ah, sim, fiquei feliz com os elogios! Que bom que minha postagem agradou.