segunda-feira, 9 de julho de 2012

A "luta do século" da sociedade do espetáculo




Na madrugada entre sábado e domingo, ocorreu aquela que foi considerada a "luta do século" da UFC, o torneio mundial de lutas marciais mistas. Nela, o "herói brasileiro" Anderson Silva (vulgo "Spider") enfrentou o seu "arquirival" americano, o sociólogo (!) de Oregon Chael Sonnen, que teria sido o lutador mais próximo de vencer Silva em uma luta dois anos antrás. Mas, como leigo evidente no assunto, não estou aqui para discutir os acontecimentos de ontem em si mesmos, com as especificidades das técnicas de luta empregadas por ambos os lutadores. Antes, gostaria de colocar em debate a importância simbólica que foi conferida a esse embate pelo mundo - e, em especial, no Brasil.

O que mais me surpreendeu no evento esportivo de ontem foi sua capacidade de mobilização do público nacional. Mesmo aqueles que não se dizem fãs desse tipo de luta fizeram questão de abrir mão de seu sono para assistir o embate. No Facebook, vários contatos expuseram suas expectativas, tento alguns deles arquitetado encontros entre amigos para acompanhar os pontapés ao vivo pela televisão. Mas qual seria a explicação para tamanha atenção a esse esporte, da noite para o dia?

A mídia cobriu os eventos anteriores à luta com rigor. Sonnen, considerado um "fanfarrão", pode ser tido como um representante vivo da ideologia mega-competitiva americana, com seu subsequente estímulo ao orgulho pessoal e nacional: arrogante, transmitiu a típica imagem do "malvado metido à besta", que "fala mais que a boca", ou "fala muito e faz pouco"; o mimado alienado do país do Primeiro Mundo, pronto para pisar em qualquer um que cruzar a sua escalada ambiciosa pelo estrelato. O lutador provocou Anderson Silva em toda oportunidade que teve, de forma aberta e direta. Chegou a afirmar que "passaria a mão na bunda" da esposa do brasileiro e que a mandaria fritar um bife para saciar sua gula

Anderson, por sua vez, encarnou a imagem típica do "herói", o "bom moço" do Terceiro Mundo que apareceria para "calar a boca" do americano, mas apresentando grande "humildade" e um "espírito zen" a gerar inveja até a alguns monges budistas. Ao contrário de Sonnen, o "Spider" era mais do tipo que "fazia" antes de ficar só "falando". Sobre suas costas, ainda estava todo o orgulho de uma nação, diretamente afrontada pelo lutador-fanfarrão (Sonnen havia zombado da pobreza do Brasil durante uma de suas provocações ao brasileiro); Anderson deveria "limpar a honra ferida" do país. Um grande espetáculo estava sendo armado desde semanas antes da luta, como se fortes emoções (de ódio, inveja, vingança, amor à pátria) brotassem espontaneamente entre os envolvidos quando, na realidade, haviam sido meticulosamente planejas e manufaturadas para agregar telespectadores, patrocínios e - enfim - dinheiro, muito dinheiro.

Antes e prosseguir, resta uma colocação: é claro que  a figura do "herói nacional" nunca pode permanecer, no Brasil, apenas na esfera da "bom-mocidade" exagerada. Um bondoso pode rapidamente ser taxado de "trouxa", de "otário", por deixar os outros pisarem em sua honra. Assim, Silva, provavelmente orientado por excelentes agentes, também fez questão de colocar mais "lenha na fogueira" nas disputas simbólicas com Sonnen, negando o caráter "trouxa" de sua personalidade: respondeu às provocações e, na rádio, prometeu quebrar todos os dentes do rival, ensinando-o, assim, a ter mais respeito por tudo e todos. Por fim, chegou a dar uma leve ombrada na face do rival, no clássico ritual da "foto com encarada" entre os lutadores. Anderson ganhava, assim, mais alguns milhares de fãs brasileiros até então hesitantes em se tornar espectadores desse esporte.

Eis, enfim, o meu ponto com a postagem de hoje: o imensurável poder de persuação de uma "sociedade do espetáculo" que, por meio de diversos mecanismos, consegue hipnotizar uma grande massa de espectadores, seduzindo-os de modo altamente eficaz, com uma profundidade e abrangência supreendentes. Assim, as mais pacíficas almas sentiram-se na obrigação moral de assistir, ao menos por uma noite, um dos esportes mais violentos da atualidade, persuadidos por emoções das mais primárias, diretamente provocadas pelo teatro midiático protagonizado pelos lutadores: ódio ao rival, patriotismo distorcido, medo de humilhação, orgulho, dentre outras. As estúpidas - mas de certo modo geniais - provocações de Sonnen cumpriram seu papel: atingiram a grande massa brasileira e garantiram um público massivo aos canais de televisão que transmitiram a contenda. Aposto que, por mais que tenha apanhado, Sonnen também saiu vitorioso desse confronto épico, assim como todas as outras partes diretamente envolvidas: a UFC, Anderson, os agentes, os patrocinadores da luta, apostadores, as redes de transmissão, e muitos outros. E, é claro, os próprios brasileiros ganharam uma boa desculpa para reunir os amigos e acumular, por alguns minutos e de modo osmótico, doses moderadas de adrenalina passiva. 

O desfecho da luta favorece meus argumentos; no final, nada tão surpreendente aconteceu. O malvado perdeu. O herói nacional ganhou. O melhor - e mais previsível - resultado ideológico nesse tipo de espetáculo meticulosamente arquitetado. O homem "dedicado", "zen", "sofredor" e "popular" venceu o "arrogante do Primeiro Mundo", capaz de qualquer ação monstruosa para adquirir o sucesso imediato. A luta pode ter sido mais "real" do que as velhas lutas-livre, mas os personagens são os mesmos, assim como o elevado poder de persuasão sobre os telespectadores, presos por relações de afeto e desafeto com os heróis e vilões do ringue. Anderson não fez Sonnen "engolir todos os dentes", pois isso feriria a própria lógica institucional a que está submetido. No fim, portanto, a fala na rádio e a "ombrada" na pesagem não passaram de provocações meramente simbólicas, ao invés de se constituírem como promessas a serem concretizadas - tanto que a única (e, mais uma vez, bem pensada) atitude de Anderson Silva após a luta foi a de pedir aplausos para seu rival, dando-lhe uma sutil alfinetada verbal. Mais uma vez, o ídolo se consolidava em moldes profundamente "brazucas": trabalhador, disciplinado, mas meio "malandro", "tirador de onda". Taí o o irônico convite para o churrasco que não me deixa mentir.

E um brinde à mais uma vitória esplêndida... da sociedade do espetáculo. 

Pedro Mancini




4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom ler suas postagens. Acho que só precisa fazer uma correção no seguinte trecho :"...o mimado alienado do país do Terceiro Mundo" (não seria primeiro mundo?). Enfim, quero fazer um pedido: gostaria de ver sua visão sobre a conjuntura nacional de greve nas universidades federais. é isso. um abraço.

Unknown disse...

É... foi um erro "humano, demasiadamente humano" de minha parte, devidamente corrigido. Obrigado por apontar!

Sobre a conjuntura das greves nas universidades federais, devo admitir: ainda não me senti plenamente à vontade para comentar, por razões ideológicas e emotivas. Mas encaro seu pedido como um "puxão de orelha" para que eu desenvolva e exponha minha opinião sobre essa gravíssima situação... mesmo que minhas próprias conclusões me desagradem.

Vamos ver o que consigo tirar dessa minha cachola sobre essa questão...

Forte abraço e obrigado pela leitura e comentário!

Anônimo disse...

erro técnico devido ao cansaço né rs. vou aguardar a publicação. mas uma sugestão: poderia ser depois da marcha em Brasília que vai rolar no dia 18 de julho. Obrigada, e parabéns. Sei que não deve ser fácil manter um blog e se expor publicamente. Um dia farei um, e uma das grandes motivações para isso, é a existência do teu blog, principalmente, devido ao cunho sociológico. Até mais!

Anônimo disse...

Brother, adorei essa postagem!!!

Como vc sabe, sou um cara que adora lutar e praticar lutas, porém detesto esportes e acho esse tipo de luta uma babaquice, mas sim, eu estava entre os que ficaram acordados pra ver a luta.
Sim, eu sabia que isso tudo estava armado, um circo para ajudar a promover o "esporte", porém vejo minha atitude de assistir a luta mais para mudar meu conceito sobre a versão anterior do UFC, o vale-tudo, protagonizado por Vitor Belfort e suas orelhas deformadas. Não sei se vc se lembra, mas na época que treinei Ninjutsu (arte que despreza a competição) estava no auge o vale-tudo, o jiujitsu e os Badboys (imortalizados, satiricamente, por Gabriel O Pensador). A conclusão pra mim foi: O UFC não é nada mais que um vale-tudo com regras, onde um lutador machuca outro até um limite para sagrar-se vencedor e para mim, cuja filosofia de luta diz que, só se deve lutar se for para matar ou para morrer, ele é ridículo. Mesmo porque, se já não gosto de futebol porque só tem um bando de homem correndo atrás de uma bola, imagina se vou gostar de um esporte onde dois homens de sunga, suados e com vaselina no corpo ficam se agarrando e fazendo luta de solo!!!