sábado, 3 de abril de 2010

Marcelo Dourado e a vitória do politicamente incorreto

O resultado da última edição do BBB, assim como outros fenômenos menos explosivos do universo televisivo brasileiro, fazem-me escrever mais uma postagem sobre aparentes futilidades.

Como todos já devem saber, um tal de Dourado foi o vencedor da última edição do programa global. Mais polêmico entre os confinados, ele ganhou notoriedade por adotar um discurso considerado machista e homofóbico, afirmando que bateria em uma mulher "se ela fosse homem", e que apenas homossexuais transmitem o vírus da  AIDS. Mesmo assim, não apenas consagrou-se vitorioso, como mobilizou toda uma parcela da população a seu favor - tanto homofóbicos que denunciavam a existência de uma "heterofobia" entre a sociedade, quanto aqueles mais "ingênuos", que apenas conclamavam que Dourado era uma pessoa simples e sincera, com todo o direito de cometer alguns erros.

É sempre assustador saber que existem pessoas do primeiro tipo, que adotam Dourado como uma espécie de paladino da heterossexualidade contra a "contaminação" do mundo pelos homossexuais. Contudo, é a segunda parcela  que citei que mais prendeu minha atenção: os defensores de Dourado como "ícone da espontaneidade", da sinceridade e da simplicidade. Alguém como nós, com seus defeitos, mas que não adota uma postura hipócrita, sem, em outras palavras, se maquiar como um modelo de perfeição a ser admirado e seguido. Uma espécie de herói sincero, "sem nada a esconder", em meio a um bando de falsos hipócritas. Como pretendo mostrar, acho que as duas formas de pensamento possuem uma relação estreita e perigosa, por mais que tentem escamoteá-la.

Na mesma hora, associei esse discurso da sinceridade, da espontaneidade e da imperfeição a uma perspectiva adotada por amplos segmentos da mídia, em especial o especializado em humor, e reproduzida por sua audiência: um ataque (ou contra-ataque?) à tudo aquilo considerado "politicamente correto".

Cito, como ilustração, o problema que o humorista do CQC, Danilo Gentili, teve recentemente, após deixar escapar uma piada considerada racista em sua conta do Twitter (e estragar ainda mais a situação na tentativa de seu remendo). Como respostas às inúmeras críticas que recebeu, vociferou contra os chamados "politicamente corretos", um bando de hipócritas que adorava achar pêlo em ovo e melar o sentido das piadas sobre estereótipos sociais.Não tardou para que dezenas de milhares de simpatizantes aderissem ao coro do politicamente incorreto encabeçado por Gentili.

De fato, é notória a existência de grandes hipocrisias em meio à população, que servem como carapuça de camuflagem para escamotear preconceitos em geral. Pessoas que expressam seus valores de uma forma, mas pensam, em seu íntimo, de outra; que agem contrariamente ao que defendem. Contudo, isso não deve, de forma alguma, ser confundido com a simples existência de valores morais reais que orientam nossas condutas e julgamentos. Valores a serem defendidos em prol de uma visão ideal de convívio social harmônico - em prol de uma Humanidade que aceite e convive com inúmeras diferenças individuais.

O perigo maior, perpetuado pelos que vociferam contra o politicamente correto, é a possibilidade de defesa do DIREITO de sermos preconceituosos, junto a  uma BANALIZAÇÃO da violência e da intolerância. Partindo-se do pressuposto dos "politicamente incorretos", de que somos tomos imperfeitos ou hipócrias, qual seria o problema de contarmos uma piada racista, ou de sermos um pouco homofóbicos ou machistas? Ninguém é perfeito, ou melhor, somos todos imperfeitos, imorais, intolerantes. Caso não admitamos essa imperfeição, não passamos de porcos hipócritas. Para quê não admitir isso de vez, não tomar os pequenos defeitos morais naturais e absolutamente compreensíveis? É a naturalização da ignorância.No limite, todos podem se sentir à vontade para erguer suas bandeiras de intolerância e segregação.

Bem, o "politicamente correto" que defendo não é a ocultação dos preconceitos, o fingimento de que eles não estão entre nós - isso, sim, é hipocrisia. Muito pelo contrário, acredito que devamos não apenas admitir a existência do preconceito e da intolerância em todos os níveis da sociedade, mas expô-la aos olhos de todos, mas para que possamos COMBATÊ-LOS, e não naturalizá-los e legitimá-los. Se somos todos moralmente imperfeitos, que tal nos mobilizarmos para mudar essa situação, aprimorando nossos  valores?

A vitória de Marcelo Dourado no BBB, assim como permanentes reações contra qualquer tentativa de combate à intolerância e ao preconceito, são, para mim, parte de um mesmo e trágico movimento. Não caminhamos rumo a uma nova radicalização DE FATO, pois os intolerantes sempre existiram; mas, com a expansão de certos direitos dos excluídos, como maior aceitação dos homossexuais em alguns níveis sociais, e com a expansão do "politicamente incorreto", há uma reação contrária que tende a revelar intolerâncias outrora mais sutis. A defesa pelos valores dos agrupamentos mais favorecidos ressurge como se os últimos fossem "oprimidos" pelos Direitos Humanos e por um mundo (em tese, e muito menos na prática) mais "politicamente correto". Os intolerantes hoje são vítimas auto-intituladas, chegando ao ápice de apontar para a existência de uma "heterofobia" (?) em meio à população.

Não há outra palavra para descrever esse movimento, portanto, senão como sendo reacionário.Brotando de todos os lugares, retirando suas máscaras de aceitação, admitindo a possibilidade de serem o que são, os intolerantes indiscretos e sua aceitação social são uma reação à divulgação de valores universais que preconizam e ensaiam a expansão de certos direitos à camadas menos incluídas. Vide a forte reação, de vários setores, contra a divulgação do último Plano Nacional de Direitos Humanos.

Uma  contra-reação generalizada, diga-se de passagem, que copia fórmulas do passado, adaptando-as ao presente. Nada de novo em si: como todos os movimentos reacionários em geral, o que há é um temor e um desprezo pelo Outro, pelo diferente, e o enclausuramento em um mundinho comunitário utópico de "iguais", uma defesa do Nós contra qualquer perspectiva de universalização de direitos: o mundinho dos heterossexuais contra os homossexuais, dos brancos contra os negros, dos cidadãos de uma nação contra os imigrantes, dos ricos contra os pobres (e vice-versa, para todos os casos)...

E você aí em casa, achando que a humanidade evoluiu muito, produzindo IPods em série. Por vezes ainda me sinto na Idade Média.

Pedro Mancini

5 comentários:

Luiz "o Mediano" disse...

Na boa Pedrão, se fosse a idade média, tudo seria melhor... Se nos chamassem de qualquer coisa que não senhor, poderíamos matar a pessoa para "lavar" a nossa honra. Se vissemos 2 homens ou mulheres se beijando, acusaríamos eles de bruxaria (nem preciso comentar, preciso?). Quero deixar claro que pra mim não fede nem cheira o homosexualismo, ele existe até no mundo animal, entre leões e primatas, e nós somos?...
Mas acho que é inerente da psique humana ter preconceito de algo, eu por exemplo, tenho preconceito de fumantes, seja uma menina a mais linda do mundo e louca pra ficar comigo, não terá mais do que minha amizade.

Mariana Thibes disse...

Lembrei de Freud e o "narcisismo das pequenas diferenças" ao ler seu texto. Assim como a agressão e quiçá a intolerância possam ser vistas como imanentes à natureza humana, a civilização impõe justamente que refreemos esses instintos para que a lei do mais forte não prevaleça e haja um mínimo quantum de justiça nas relações sociais. Quando um cara como Dourado ganha o BBB, parece um sintoma do mal-estar na cultura... ou um triunfo da perversão sobre a repressão. Enfim, tema muito interessante pra pensar a atualidade. PArabéns pelo texto!

Unknown disse...

Luiz,
Acho que achar a Idade Média melhor que os tempos atuais é excesso de atenção a filmes de Hollywood. Na vida real, sofrer enfermidades, conviver com ratos, lixo e fezes em todos os lugares e com guerras constantes não seria nada legal.

Não vivemos em um mundo perfeito, como sempre faço questão de frizar... mas ainda prefiro não ser queimado pela inquisição por pensar contra o senso comum, ou decepado por não compartilhar da mesma religião de meu inimigo.

E de onde você tirou que acusar homossexuais de bruxaria seria legal??!!!???!!! Não entendi... e como eu disse, a questão não é nagar o preconceito, mas admití-lo para combatê-lo.

Unknown disse...

Mariana,
Realmente, é possível estabelecer uma ótima relação com Freud... parece que vivemos um momento em que a perversão ameaça prevalecer sobre a civilidade, sobre uma convivência mínima em meio a uma sociedade heterogênea, que exigiria compreensão e respeito mútuos.

Muito obrigado pelo elogio e pelo comentário!

Arthur Bonora disse...

Sensacional, mas vejo um lado pior nessa vitoria do BBB, além da aceitação da intolerencia por parte dos espectadores, mas muito pior a aceitação da manipulação causada pela emissora que coloca um programa no ar e decide quem ganha ou perde simplesmente manipulando o público de forma indireta e as vezes até direta.

Ou seja, não sei bem se me decpciono com a aceitação da intolerencia ou com a facilidade da mídia televisiva em manipular a sociedade.