quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pequena discussão sobre o estigma e prestígio



Sempre fui classificado como alguém inteligente. De algum modo, passo essa imagem às outras pessoas, incluindo minha própria família. Talvez essa impressão seja reforçada pelo meu comportamento por vezes excêntrico, e até mesmo por sinais mais simples, como o puro uso de óculos (quem não parece intelectual usando esse velho acessório para os olhos?).

Não discuto o quanto essa imagem concorda ou não com a realidade. O fato é que não sou nenhum gênio. Ou seja: Não sou capaz de conquistar os meus objetivos mais visados sem o dispêndio de um grande esforço, de uma preparação meticulosa e responsável.

Talvez pela primeira vez em minha vida, consegui nesse ano conquistar um objetivo pessoal mediante grande dedicação e fazendo certas escolhas difíceis. Não que eu nunca tenha me esforçado para nada, mas com certeza nunca contei tanto com o meu esforço individual e tão pouco com supostos "dotes naturais" ou um suposto "potencial" inerente à minha imagem pessoal - essa imagem imposta de "inteligente".

Inculcaram-me essa percepção, esse estigma positivamente referido - ou, para utilizar a terminologia de E. Goffmann, esse "prestígio". Ora, o problema dos estigmas é que eles antecipam as impressões e as ações humanas, por vezes impedindo as relações de liberdade. Já conhecendo o estigma de um "louco", por exemplo, não esperamos que ele aja como uma pessoa "sã", e ainda interpretamos suas ações por meio desse estigma: alguma ação que seria tido como comum caso fosse proferida por uma pessoa "sã" pode ser interpretada como "loucura", caso fosse tomada por alguém marcado como "louco".

Por outro lado, o indivíduo estigmatizado pode se apropriar da interpretação feita sobre ele pelos outros, passando, por exemplo, a se enxergar como um louco, a aceitar tal classificação feita à sua pessoa. Isso pode não significar, necessariamente, que o indivíduo referido tenha sintomas "concretos" da loucura psíquica, mas, na prática, ele é visto como um louco perante o resto da sociedade.

Um estigma positivo ou prestígio cumpre papel semelhante. De um lado, pode ajudar, pois acaba-se acreditando, conforme apontado, na classificação que é dada. Alguém tido como "inteligente", mesmo sem tomas ações de fato tão inteligentes, pode passar a se apropriar dessa qualidade conferida e agir como alguém inteligente.

A partir de certo momento, contudo, esse estigma pode cumprir papel diametricalmente oposto: pode impedir o desenvolvimento maior das habilidades relacionadas a tal prestígio. Assim, alguém visto como "inteligente" pode deixar de enxergar a necessidade de provar, na prática, tal inteligência; é evidente que ele "é" inteligente, esse fato já foi naturalizado. Impõe-se, assim, uma situação conformista, em que é desestimulada qualquer atitude nova, capaz de validar o estigma positivo.

Neste caso, a situação colocada é oposta à do estigma negativo, que, quando totalmente estabelecido, pode impedir ou anular ações contestadores de tal estigma, quando partidas do próprio estigmatizado. Uma criança que é vista e se vê como "burra" pode deixar de demostrar qualquer atitude inteligente: ninguém espera isso dela, nem ela própria.

Têm-se assim, e voltando ao estigma positivo ou prestígio, uma situação extremamente delicada: por um lado, qualquer ação inteligente adotada por alguém visto como inteligente está dentro das espectativas; ninguém espera que ele aja de maneira estúpida. O "inteligente" se vê de certa forma compelido a seguir as espectativas colocadas pelos outros, tendo sempre que demostrar ser de fato inteligente; e, quando o faz, "não faz mais do que a obrigação", por assim dizer. Paradoxalmente, a posição confortável do "inteligente", que solidificou sua auto-imagem de acordo com tal estigma, pode impedir que ele continue a tomar ações inteligentes que validam esse próprio estigma.

Por essa razão, devemos, sempre que possível, nos esquivar das informações passadas por um sinal de estigma ou de prestígio, buscando conhecer as pessoas por suas ações, e não por sua aparência superficial. Ao mesmo tempo, uma auto-análise é sempre útil e válida a esse respeito: até que ponto minhas ações relfetem minha auto-imagem e a imagem a mim conferida pelos outros?

No momento, reflito sobre essa problemática com relação à minha própria imagem.




Pedro Mancini

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu grande amigo, vou fazer uma descrição de minha própria experiência para vc colocar em suas belas palavras. Tb fui taxado de inteligente, não que eu não seja, mas quando as pessoas acham que vc é inteligente, cobram demais de vc e para algumas pessoas, parecia um insulto a minha inteligencia, sempre me ignorando, Minha solução para o caso foi a de emburrecer-me(não é ficar irritado em espanhol), repetir de ano, falar asneiras e agir como um perfeito idiota, isso me trouxe mais aceitação da sociedade como um todo. Parece que a humanidade odeia tudo o que não seja comum, por mais que sonhemos em ter super-poderes, sermos governantes do mundo ou deuses na cama!!!

Unknown disse...

Claro, é muito mais fácil ser "comum", em nossa sociedade, do que propriamente nós mesmos, seguindo nossa vocação e nosso interesse real.

O maior problema é que a sociedade atual, muitas vezes, também impede que desenvolvamos uma idéia clara de quem somos - ou daquilo que "deveríamos ser". Por isso a necessidade tão forte em sonharmos, em nosso íntimo, sermos "super poderosos" ou governantes do mundo, como você disse... Por termos muita dificuldade em definirmos quem somos em realidade, e pela frustração de nem sempre podermos sê-lo de acordo com nossos desejos verdadeiros (pelo risco de amargurarmos o isolamento social, por exemplo).

Na minha opinião, por mais difícil que seja, devemos resistir à tentação de sermos totalmente aceitos pelos outros, ao abrirmos mão de ações que correspondam mais aos nossos desejos e interesses.

Ainda com relação a isso, devemos definir nossa identidade não "imaginando" o que somos, simplesmente - caindo em uma ilusão anestesiante. Somos, de acordo com a minha visão, o que fazemos e como fazemos, e não o que pensamos ou acreditamos ser.

O que nos define, assim, não se encontra isolado em nosso interior, esperando o momento certo de manifestação; é construído continuamente, diariamente, por meio de nossa interação com todo o mundo que nos rodeia (natural e social).

É por não compreendermos essa relação que, muitas vezes, caímos na tentação de nos "comportarmos" de acordo com a sociedade vigente - e compensando tal submissão à aceitação social com sonhos íntimos absolutamente distantes da realidade.