segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A biografia de Xuxa pela ótica de uma brasilianista


A indicação de leitura de hoje vai para o livro da americana Amelia Simpson, "Xuxa: The Mega-Marketing of Gender, Race, and Modernity" ("Xuxa: Mega-Marketing de Gênero, Raça e Modernidade").

Apesar de se tratar de uma observadora "outsider", externa à cultura brasileira, a autora traz reflexões interessantíssimas sobre a configuração da cultura midiática nacional, analisando, especificamente, a biografia da maior celebridade que a mídia verde-e-amarela já criou: "Xuxa", a eterna personagem de Maria da Graça Meneghel.

Como se não bastante os "insights" a respeito da adoração da figura da Xuxa, no Brasil, e sua função de conservação ideológica das presentes relações entre os sexos e as raças, a leitura da obra se Simpson é divertidíssima - especialmente para aqueles que, como eu, viveram nas "espetaculares" (em toda a acepção da palavra) décadas de 1980 e 1990. Sua acidez, seu senso de sarcasmo e sua brilhante capacidade de descrição, tanto de fotografias de época quanto da estrutura de operação dos programas apresentados pela "Rainha dos Baixinhos", garantirão não apenas reflexões profundas sobre nossa realidade e o poder da mídia na manutenção da ordem simbólica vigente, mas também boas risadas e uma certa (e contraditória) sensação de nostalgia.

Em alguns momentos, é certo, a autora parece "forçar" sua argumentação, permitindo, por parte do leitor, contestações sobre certas conclusões pontuais. Além disso, a obra causa um certo mal-estar ao transmitir a idéia de quer a figura de Xuxa nada foi além de uma grande construção simbólica: consciente e cuidadosamente forjada, nos seus mínimos detalhes, de modo a cumprir certas funções culturais de grande amplitude, Xuxa aparece como um ícone hiper-real, uma fantoche que serve a interesses ideológicos. Para Simpson, por exemplo, até mesmo a crítica constante sobre a problemática e paradoxal relação de Xuxa com os "baixinhos" - acusações de que ela seria ríspida com as crianças - seria fruto de uma estratégia dos "administradores" dessa figura simbólica, com fins de sexualizá-la (associando-a à figura de uma "moleca", uma "ninfeta" que, embora esteja no mesmo nível das crianças, é fortemente erotizada), afastando-a de qualquer identificação com uma "mãe protetora" assexuada e pueril.

Desse modo, a análise acaba por seguir uma linha pós-estruturalista que poderia ser aproximada a perspectivas inescapáveis sobre a realidade, como as de Michel Foucault e Jean Baudrillard. Em verdade, uma comparação entre o livro de Simpson e a obra de Baudrillard, "Simulacros e Simulação", é quase inevitável: aos olhos dos dois autores, torna-se impossível saber a diferença entre o "real" e o "irreal" - em verdade, o real aparece como morto, substituído pelo conceito de "hiper-real", uma distorção exagerada do real. No caso específico aqui tratado, como desvencilhar o que seria "verdade" sobre a história de Xuxa, daquilo que seria orquestradamente criado e gerido por homens por detrás das cortinas? Mais importante do que esse questionamento, o problema é que essa distinção parece ter perdido o sentido, já que torna-se impossível percebê-la.

Pessoalmente, acredito que esse tipo de abordagem contém sérios obstáculos para uma análise crítica propositiva sobre a sociedade moderna. Afinal, se a realidade morreu, perdida em meio à simulação, em que poderemos nos agarrar na luta pela mudança social? Vale a pena lutar, se tudo já está acabado? Essa luta existiria, ou seria mais uma luta simulada, em prol de um movimento maior, inquestionável e inescapável, sobre o qual não temos qualquer controle, mas apenas a ilusão de controle?

Salvo essas colocações, o livro não deixa de possuir inúmeros créditos, sendo de fato um convite à polêmica e ao mundo "hiper-real" potencializado pela mídia nos tempos contemporâneos. E isso, a despeito de a obra ter sido escrita ainda em 1994, e a imagem de Xuxa estar, hoje, muito reduzida, em comparação à Xuxa daqueles tempos. Podemos ainda pensar, por exemplo, se o atual enfraquecimento da imagem da personagem deve-se ao esgotamento da estratégia que a fundamentou, ou se, na verdade, Maria da Graça Meneghel, devido à sua idade e outras condições, simplesmente não pode mais cumprir o papel que lhe fora outorgado.

Seja como for, a saída foi a mesma: Xuxa converteu-se numa sombra do que já foi, apesar de fãs irredutíveis e histéricos ainda a apoiarem, a ponto de ser ridicularizada por seus comentários no Twitter e deter, na mídia, uma pequena fração do tempo comercial que já deteve em seus anos de ouro. A tendência, arrisco-me a dizer, é que sua imagem continue "em banho maria" até sua morte (que trará um fervor nacional provisório), para ser reutilizada de tempos em tempos, por alguns anos, em singelas homenagens, até, por fim, sua imagem sucumbir no esquecimento. O mesmo fim, aliás, que tiveram e provavelmente terão "astros" midiáticos efêmeros similares, como Michael Jackson e Britney Spears.

Pedro Mancini

*Obs: Fato curioso, e que torna difícil não suspeitar de conspirações midiáticas, é que esse livro tenha tido menos repercussão no Brasil (apesar de sua temática) do que no exterior. Hoje, ainda, a Playboy em que Meneghel posou nua hoje é artigo de colecionador, e tanto essa publicação erótica, quanto o filme ainda mais caliente "Amor, Estranho Amor" (claramente pedofílico) mal podem ser mencionados nos circuitos de TV e na mídia impressa. Aliás, o documentário da BBC que retrata a TV Globo sofreu similar falta de atenção, sendo resgatado, de modo pontual, apenas por seus inimigos diretos (leia-se TV Record), em tentativas para desgastar sua imagem. Provas de que nem mesmo imagens poderosas como as de Xuxa e da Globo, no Brasil, estão absolutamente isentas de tropeços e arranhões.

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