Apesar da tentação em escrever diretamente sobre a patética tentativa da TV Globo em transformar uma bolinha de papel em um rolo de fita capaz de ferir um ser humano, tratarei do assunto de forma mais indireta, discutindo a falácia do discurso da "neutralidade midiática".
Evidente que, quando falamos da Rede Globo, poucos serão aqueles (se é que ainda existem) que contestarão a parcialidade de seus jornalistas e editores-chefe. Não é à tôa que, regularmente, a emissora é execrada no Twitter por milhares de usuários, e que já tenha rendido um documentário sobre seus esforços de manipulação dos telespectadores brasileiros. Ainda assim, corre a visão, entre muitos setores da sociedade, de que a Globo seria apenas uma exceção, em termos de parcialidade da mídia (assim como a Revista Veja e, de modo similar mas não idêntico, a Carta Capital); Enquanto a cada dia menos pessoas caem no discurso neutro vendido por alguns desses órgãos, que posam como "donos da verdade" que não escolhem lados (a Carta Capital seria uma exceção ao admitir seu posicionamento político próximo ao PT, assim como o Estadão recentemente admitiu apoio ao candidato José Serra), vários outros veículos e órgãos da imprensa ainda posam e são vistos como "imparciais" ou "independentes". Às vezes, essa pretensão é exposta no próprio slogan do veículo, como no caso da revista IstoÉ. Outro caso notório pode ser encontrado nos programas televisivos de humor, especialmente quando possuem atuação no universo político. Para explorar um pouco essa questão, contarei sobre uma experiência pessoal recente.
Semana passada, tive a chance de assistir a palestra de uma figura notável do universo midiático brasileiro atual: Marcelo Tas, apresentador do CQC. Sua fala tratava sobre redes sociais, daí meu interesse em assistir; contudo, Tas não deixou de comentar sobre assuntos políticos, frente a uma platéia composta por alunos do ensino médio, vindo a argumentar contra a censura da imprensa e tecendo críticas ao Presidente Lula. Os posicionamentos do apresentador, para mim, não representaram nenhuma novidade ou problema. O que me chamou a atenção foi quando ele indicou que "existem ALGUNS" órgãos de imprensa PARCIAIS, que atuam politicamente a favor de certos agrupamentos políticos. Não somente nessa fala, mas em várias outras, percebi claramente, em Marcelo Tas, tentativas de vender a si mesmo, ao seu programa e à sua emissora a imagem de baluardes de "neutralidade axiológica": Eles estariam ACIMA da sociedade, observando-a e a julgando de "fora", como positivistas à la Comte ou Durkheim (já há muito contestados por sua "ingenuidade" em buscar apreender a realidade social de forma absolutamente neutra). Portando-se dessa forma, o apresentador equilibra-se em uma tênue e pouco definida linha divisória entre a mais pura ingenuidade e a simples má fé: possivelmente, tenta enganar a si próprio e a seus telespectadores, ao posar de "representante da sociedade civil" - e não como voz de determinados setores dessa sociedade, vinculados a certos interesses de classe. O mesmo ocorre com o CQC, programa de Marcelo Tas que, apesar de seu tratamento inovador com a política, acaba, ironicamente, abraçando o valor jurássico da "neutralidade" da atuação jornalístico-humorista.
O tipo de visão que critico, aqui, só se fundamenta mediante a "fuga" de um a questão fundamental: a sociedade não é um "bolo disforme", representado por uma virtual "sociedade civil" que aglomera todos os interesses e fala em nome da Nação; na verdade, e isso deveria ser trivial, estamos inseridos em uma sociedade multiforme, segmentada, onde vários interesses competem e se aliam, de acordo com as circunstâncias. Ora, os órgãos da imprensa estão muito longe de escapar de tal lógica, embora vendam a imagem de fazê-lo; em maior ou menor medida, de forma mais ou menos explícita, defendem uma certa visão, política e ideologicamente marcada, associada as suas posições estruturais nessa sociedade multifacetária.
De todo modo, é visível que a conjuntura atual desfavorece, progressivamente, a supremacia desse aparato ideológico. A difusão de formas de comunicação e sociabilidade online - muito bem representadas pelas redes sociais e blogs pessoais - fez eclodir o acesso a novas interpretações e pontos de vista que, muitas vezes, enfrentam frontalmente as perspectivas hegemônicas dos meios de comunicação tradicionais (emissoras de TV, rádios, revistas semanais e jornais diários). Não mais detendo o monopólio sobre a informação, esses meios não conseguem sustentar a imagem de neutralidade, que rui na mesma medida em que os posicionamentos apresentados como "fatos" se vêem confrontados com perspectivas opostas.
A crise do discurso da neutralidade chegou a um ponto, na verdade, que vemos a própria mídia tradicional se contradizer sobre os mesmos acontecimentos: assim, foi o SBT quem iniciou o processo de desmascaramento da Globo no caso na bolinha de papel; e, enquanto vemos uma "blindagem" do candidato tucano feita pela Veja, Folha de S. Paulo, Globo, etc., a revista IstoÉ - enquanto posa de independente- destaca-se do status quo ao direcionar duas matérias de capa seguidas à condenação das estratégias eleitorais oportunistas do PSDB (em especial, o uso da questão do aborto na discussão política, já tratado em minhas postagens passadas) e às denúncias de corrupção dentro da campanha tucana (materializada no caso Paulo Preto). Como acreditar na neutalidade da imprensa, quando seus órgãos apresentam perspectivas mutuamente excludentes sobre os fenômenos, mesmo quando não admitem algum grau de parcialidade?
Ignorando a obviedade da ruína desse discurso, a maior parte da mídia insiste em sua manutenção. Acredito, porém, que o progressivo desmascaramento da neutralidade forçará os veículos à rápida adaptação, caso queiram manter um grau razoável de credibilidade e de aceitação de seu próprio público. Creio, ainda, que esse é movimento deveras positivo para um aumento progressivo da genuína liberdade de expressão, baseada no enfrentamento - sem a hipocrisia da "imparcialidade" - de idéias assumidamente antagônicas sobre "fatos" que são, na verdade, inseparáveis de interpretações já marcadas por preferências e ideologias, mesmo relativamente ocultas à primeira vista.
Para resumir a raiz de minha argumentação, a multiplicação das fontes de informação cumpre papel imprescindível na ruptura do discurso da "mídia imparcial, soberana e independente", que, por sua vez, é inimiga (ao meu ver) da liberdade de expressão em seu caráter mais plural e libertário, fundamentada no livre acesso às interpretações múltiplas sobre os fatos, com a escolha do público sobre aquelas que se mostrarem mais adequadas e pertinentes - que façam mais sentido para espectadores, leitores e ouvintes. Tal exercício é impossível quando a mídia de massas tem uma só voz, vendida como difusora da "verdade dos fatos" e vista como "desprovida de parcialidade". Como diria o ditado, "pior que não ler nenhum jornal é ler apenas um jornal"; e o tempo em que todas as fontes de informação detinham um só discurso, agindo como apenas um jornal, ficou no passado. À mídia tradicional, resta adaptar-se, admitindo seus posicionamentos, ou sofrer com uma contínua redução de seu público.
Pedro Mancini
A crise do discurso da neutralidade chegou a um ponto, na verdade, que vemos a própria mídia tradicional se contradizer sobre os mesmos acontecimentos: assim, foi o SBT quem iniciou o processo de desmascaramento da Globo no caso na bolinha de papel; e, enquanto vemos uma "blindagem" do candidato tucano feita pela Veja, Folha de S. Paulo, Globo, etc., a revista IstoÉ - enquanto posa de independente- destaca-se do status quo ao direcionar duas matérias de capa seguidas à condenação das estratégias eleitorais oportunistas do PSDB (em especial, o uso da questão do aborto na discussão política, já tratado em minhas postagens passadas) e às denúncias de corrupção dentro da campanha tucana (materializada no caso Paulo Preto). Como acreditar na neutalidade da imprensa, quando seus órgãos apresentam perspectivas mutuamente excludentes sobre os fenômenos, mesmo quando não admitem algum grau de parcialidade?
Ignorando a obviedade da ruína desse discurso, a maior parte da mídia insiste em sua manutenção. Acredito, porém, que o progressivo desmascaramento da neutralidade forçará os veículos à rápida adaptação, caso queiram manter um grau razoável de credibilidade e de aceitação de seu próprio público. Creio, ainda, que esse é movimento deveras positivo para um aumento progressivo da genuína liberdade de expressão, baseada no enfrentamento - sem a hipocrisia da "imparcialidade" - de idéias assumidamente antagônicas sobre "fatos" que são, na verdade, inseparáveis de interpretações já marcadas por preferências e ideologias, mesmo relativamente ocultas à primeira vista.
Para resumir a raiz de minha argumentação, a multiplicação das fontes de informação cumpre papel imprescindível na ruptura do discurso da "mídia imparcial, soberana e independente", que, por sua vez, é inimiga (ao meu ver) da liberdade de expressão em seu caráter mais plural e libertário, fundamentada no livre acesso às interpretações múltiplas sobre os fatos, com a escolha do público sobre aquelas que se mostrarem mais adequadas e pertinentes - que façam mais sentido para espectadores, leitores e ouvintes. Tal exercício é impossível quando a mídia de massas tem uma só voz, vendida como difusora da "verdade dos fatos" e vista como "desprovida de parcialidade". Como diria o ditado, "pior que não ler nenhum jornal é ler apenas um jornal"; e o tempo em que todas as fontes de informação detinham um só discurso, agindo como apenas um jornal, ficou no passado. À mídia tradicional, resta adaptar-se, admitindo seus posicionamentos, ou sofrer com uma contínua redução de seu público.
Pedro Mancini
3 comentários:
bom o texto, e acho que o cqc sofre desse mal também: acham que são imparciais só na retórica.
ah, quanto ao seu blog, esse marrom dificulta a leitura, se puderes colocar um branco, vai ser bem melhor ;-)
Érica,
Muito obrigado pelo comentário!
Estou testando novos layouts para o blog. À primeira vista, esse marrom me pareceu uma boa, mas parece que realmente dificulta a leitura... ia justamente perguntar a opinião dos leitores. Vamos ver se acho um modelo mais leve e bonito!
Abraços,
Pedro Mancini
Esse texto me ajudara bastante para escrever um manifesto além de já ter me dado uma pequena dificuldade que em breve poderei encontrar quando entrar na faculdade.Obrigado!
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