segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Estratégias interativas e o convívio familiar saudável

Viagens de férias: sempre ótimos momentos para exercer a chamada "observação sociológica de boteco". Especialmente quando há presença de familiares.

A despeito de ser visto, por vezes, como a "ovelha negra" da família (ao menos no quesito ideológico), tentei interagir com a mesma em minhas férias, quando fui convidado a passar uns dias na casa de praia de minha tia.

Esse meu interesse não surgiu do nada, é verdade; nessa altura da vida, momento de grandes transições pessoais, começo a perceber o quão importante é um vínculo comunitário, como aquele típico das relações de parentesco (e outras, que nos são "impostas" pelas circunstâncias - de vizinhança, comunidade nacional, entre outras, em que se predomina um forte caráter emotivo). Embora as relações de tipo societário (relações profissionais, por exemplo, baseadas no convívio com o diferente e pautadas por ações mais racionais que propriamente emotivas) garantam, mais plenamente, o estabelecimento da individualidade, a falta de ligações comunitárias torna especialmente difícil trafegar pelos perigosos mares da fria sociedade de indivíduos anônimos e amizades pouco profundas - hoje, expandida pelo universo das redes sociais.

Mas se comunicar, atualmente, com a família ou outros "companheiros de comunidade", em uma sociedade tão fragmentada como a nossa, exige um verdadeiro malabarismo interativo. Como cada indivíduo tende a possuir uma opinião política, religião, time de futebol, além de vínculos com grupos e instituições distintos, interagir de forma positiva, não-conflitiva, com pessoas ligadas a você apenas por um laço comunitário demanda grande esforço. É difícil, em outras palavras, dar ênfase ao que possui em comum com um grupo quanto tantas outras coisas possuem de diferente. Qualquer deslize na interação, e inicia-se uma acalorada discussão sobre temas polêmicos, com resultados potencialmente catastróficos para os relacionamentos sociais envolvidos (ao menos a curto prazo). É claro que existem arenas específicas para que idéias antagônicas se enfrentem frontalmente, administradas pelas capacidades argumentativas dos envolvidos; mas não acredito que o ambiente praiano, onde a maior intenção seria o apaziguamento pessoal das agitações da vida urbana, seja o palco mais indicado para esse embate de idéias.

Assim, caso exista a vontade de passar um tempo agradável com a família, é de vital importância saber lidar com todas as estratégias e ritos de interação que regem nossa sociedade moderna - muito bem analisados, no que tange à sociedade americana, pelo canadense Erving Goffman (em obras como "A representação do Eu na vida cotidiana", "Relations in Public" e "Interaction Ritual").

Talvez a estratégia mais indicada, para esses casos, seja a da "evitação": simplesmente "fugir" de conversas polêmicas, que, sabidamente, podem fazer os ânimos se exaltarem. Sabendo que ninguém na casa compartilhava meu posicionamento político, evitar falar sobre o assunto protegeria tanto a minha face (já que eu não posaria como "radicalóide" ou "comuna fétido") perante a família, quanto a face de meus familiares - que não seriam acusados de "elitistas" ou "reacionários". Estabelece-se, assim, uma trégua político-ideológica, em prol de um convívio familiar apaziguado.

Aqui, cabe tecer dois comentários paralelos:

Em primeiro lugar, por que se esforçar tanto para fugir de polêmicas? Como já disse no começo da postagem, acredito que todos nós precisamos de algum suporte comunitário para suportar as pressões exercidas pela sociedade em seu aspecto mais impessoal - dependente de escolhas que são, com freqüência, acompanhadas de riscos. Mas há algo a mais a considerar: somos todos seres múltiplos, exercendo inúmeros papéis sociais simultâneos - não temos uma identidade fixa e pré-estabelecida, mas "exercemos" identidades diferentes, de acordo com as circunstâncias (ou, em outras palavras, com o ambiente de interação em que estamos imersos). Assim, eu sou um blogueiro, esquerdista moderado, filho, universitário, amigo, namorado, entre muitas outras coisas. E, por mais que os atores de cada grupo em que me relaciono - colegas de faculdade, namorada, parentes - possam conhecer mais de um aspecto de minha personalidade, é impossível expressar todos os meus aspectos em cada arena de interação.

Desse modo, não só é possível, como "natural" exibir apenas aspectos específicos de nossa personalidade àqueles com quem dialogamos. No caso de minhas férias, concentrei-me em revelar minha identidade de parente, desabilitando todas as características que poderiam me ligar ao "ativista político", em especial. Aspectos não tão polêmicos, como os inerentes à minha posição de sociólogo, não foram tão evitados - me dei o luxo, por exemplo, de analisar criticamente os vícios de meus parentes pelo Big Brother e pela novela das nove.

Importante ressaltar que isso não se trata, para mim, de uma falsidade ou mentira: não neguei, nem ocultei absolutamente, minhas posições político-ideológicas. Apenas não deixei que minha identidade política prevalecesse, supressando  seu exercício em meio ao ambiente familiar. Só com isso pude evidenciar aspectos pouco trabalhados de minha psiquê, como minha identidade enquanto parente, desnuda da influência de outros aspectos pessoais.

O segundo comentário relevante - que também ajuda a negar a falsidade de meu comportamento-, diz respeito à diferença entre o silêncio subserviente e a disciplina interativa. O fato de eu escolher atuar, apenas ou principalmente, como um parente, não significa que anulei totalmente outras características de minha personalidade. Felizmente, existem estratégias de interação que permitem que mostremos nossas diferenças e demonstremos nosso orgulho sem, por isso, ameaçarmos fortemente o bom convívio social; provocações pontuais, brincadeiras e "alfinetadas" permitem-nos evitar a subserviência, deixando claro que não concordamos com aqueles que interagimos - mas, antes, encontramo-nos em um provisório estado de trégua. É como se disséssemos: "Olha, estou sendo diplomático, mas isso não significa que concorde com você".

Assim, minhas opiniões político-ideológicas, assim como as de meus parentes, puderam extravasar na forma de micro-provocações, xistes e "tiradas". Graças a essas ferramentas comunicativas, mantivemos tanto nosso orgulho (com demonstrações claras de que não vendemos nossos posicionamentos) quanto a viabilidade de uma interação saudável. Em outras palavras: não foi necessário "entrar no tapa" (física ou verbalmente). Essa é uma façanha que não seria facilmente alcançada em fases anteriores, em que a única coisa que importava, para mim, era consolidar-me enquanto um indivíduo com idéias políticas próprias - alguém que colocava a boa convivência familiar abaixo da auto-validação identitária. Ou seja: talvez só estejamos aptos à convivência comunitária pacífica, em um contexto de ampla diferenciação social, se tivermos desenvolvido suficientemente nossa identidade, a ponto de deixarmos de lado, por um momento, a nossa fome por aprovação social.

Pedro Mancini


2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, resumindo... vc tem de dançar conforme a música. Porque a verdade é que só nós aceitamos a nós mesmos totalmente e as vezes nem nós. É necessario sim, fingir que não é com vc, ficar quieto e evitar o confronto para ter um pouco de paz, mesmo que seja unilateral. Eu com minha mãe, que divergimos em absolutamente tudo, por exemplo, muitas vezes ouço calado, para que a contenda não ganhe proporções apocalipticas. Por isso as vezes penso que a melhor interação social as vezes seja não interagir, pois ambas as partes ficam, ao menos em parte, felizes.

Unknown disse...

Sim, acho que a "não-interação", a absoluta evitação da discussão, também uma estratégia interativa... e muito válida para esse tipo de situação!

Abraços, e valeu pelo comentário!