sexta-feira, 15 de abril de 2011

A decadência da humildade em tempos de fragmentação social

Em minha última postagem, estabeleci um paralelo entre a paixão juvenil e a experiência pessoal, para apontar como a primeira é mais valorizada nos dias atuais; hoje, traço um raciocínio semelhante para ressaltar que a questão de "fechar a mente para a vida" não é determinada pela idade, e que existem outros fatores a se levar em consideração.

Acho que uma das grandes ironias da sociedade contemporânea é que, conforme cresce a fragmentação social - e, conseqüentemente, as inseguranças individuais - mais uma parcela dos indivíduos radicaliza seu modo de pensar. Kenneth Gergen é um dos autores que escreve sobre o processo de fragmentação da realidade e do próprio “eu” contemporâneo – que ele qualificou como “saturado”. Para ele,

 “A condição pós-moderna, de modo mais genérico, é marcada por uma pluralidade de vozes competindo pelo direito à realidade – de serem aceitas como expressões legítimas da Verdade e o Bem. Enquanto as vozes aumentam em poder e presença, tudo que parecia apropriado, bem-pensado e bem entendido é subvertido. No mundo pós-moderno nos tornamos cada vez mais conscientes de que objetos sobre os quais falamos não estão ´no mundo´ tanto quanto são produtos de perspectivas” (GERGER, Kenneth: “The Saturated Self: Dilemmas of Identity in Contemporary Life”, p. 7. Nova Iorque: BasicBooks, 1991).

Gergen aponta, portanto, que ao contrário da modernidade, em que algumas poucas perspectivas totalizantes sobre a realidade competiam pelo domínio ideológico, hoje fica mais difícil detectar um número pequeno e bem constituído de "vozes" sobre a sociedade em que vivemos; temos, ao invés disso, inúmeros sussurros espalhados pelo espectro social, que competem entre si e povoam nossas mentes, saturando-as de informações e pontos de vista. 


Uma outra conseqüência dessa fragmentação de modos de encarar a realidade  é a difusão da insegurança: não podemos mais contar, afinal, com uma "grande muleta" ideológica para nos sustentar - ao menos, não com uma muleta maciça e resistente. Não existe uma única religião dominante, uma única ideologia hegemônica, indiscutível, que nos ampare; temos que nos contentar com múltiplas perspectivas incertas, continuamente contestadas, vítimas fáceis da ironia. Sua religião, sua posição política, não passa de mais uma entre dezenas de outras possíveis - e como ter a certeza de que se joga do lado certo?  


Ora, é difícil lidar com a erosão das certezas instituídas, apontada por Gergen. Para aqueles que detém sabedoria suficiente para conviver com aqueles que pensam de modo distinto, essa é uma ótima chance de se desenvolver - de aprender com a voz discordante, aceitando, com humildade, as prováveis limitações de sua própria perspectiva. Já para os mais carentes de certezas, uma alternativa menos indolor e, infelizmente, usualmente adotada é a de agarrar-se a uma dessas perspectivas de forma extrema, a ponto de desconsiderar todas as demais -  e, em último caso, pregar a aniquilamento daqueles que se situam no "outro lado". Agarrar-se a uma ideologia extremista para ser uma saída possível à fragmentação social, portanto.

É nisso, em boa parte, que se baseia a difusão de movimentos fundamentalistas de toda sorte em plena sociedade ocidental. Alguns países não mais se surpreendem quando um gay é espancado na rua, ou um jovem afetado por anos de bullyng rebela-se contra a sociedade a ponto de cometer assassinatos em massa. Todos esses “anti-heróis” procuram agarrar-se em “verdades absolutas”, estejam elas em uma ideologia político-social – como o nazismo, ainda capaz de seduzir jovens “saudosistas” de uma sociedade “organizada” e “pura” – ou em um santuário totalmente pessoal (indivíduos com o ego inflado, que se veem como “gênios incompreendidos” em uma sociedade fria e insensível às suas necessidades). Wellington Menezes de Oliveira seria somente mais um exemplo do último caso, como os grupos de recistas e homofóbicos  - tão ativos  atualmente- exemplificam o primeiro. Ainda há que se considerar, evidentemente, a filiação de indivíduos a grupos religiosos pautados pelo fanatismo e pelo ódio às diferenças - alguns de seus porta-vozes costumam, também, aproveitar qualquer oportunidade para revelar posturas agressivas.

Acredito que o processo de negação da diversidade e de supervalorização de uma perspectiva determinada sobre todas as demais não pode ser vislumbrado apenas nas situações extremas: terrorismo, movimentos neonazistas, homofobia, racismo, etc. Vemos a tentativa de se agarrar em certezas em várias situações cotidianas que pareceriam inofensivas. Muitos, por exemplo, enclausuram-se em uma visão superestimada de sua própria imagem. São os “convencidos” ou “metidos”, que se transformam nos próprios objetos de adoração. Hoje, eles parecem se multiplicar a uma forma alucinante – alimentados pelas possibilidades de auto-promoção trazidas pelas tão faladas redes sociais. Alguns comentários do Facebook e do Twitter são verdadeiros deleites nesse aspecto, mostrando claramente como alguns indivíduos se deslumbram com a ilusão de estarem fixados em um pedestal que os mantém acima dos “cidadãos comuns”.

Parece que a "humildade", valorizada em tempos pré-modernos, é hoje considerada um defeito, algo a se evitar; antes de mais nada, a ordem é “amar-se”, valorizar-se, vender uma imagem positiva de si próprio, ter orgulho e auto-estima elevados. É evidente que esse movimento possui grandes vantagens, além de ter cumprido um importante papel histórico. Valorizar-se como indivíduo destacado do "social" contém elevado teor libertário, protegendo e armando o sujeito contra opressões externas; a partir do momento em que nos valorizamos, tornamo-nos mais imunes a imposições sobre nosso comportamento. Desse modo, as relações de dominação, outrora dependentes de uma imposição externa, conquistada pela espada, devem hoje se concentrar bem mais em uma "submissão voluntária" de seu público. Uma interiorização da ideologia dos dominantes entre os dominados, embora sempre tenha existido, nunca foi tão necessária às relações de dominação. Assim, as grandes marcas devem mais do que nunca "conquistar" seu público-alvo, e até torná-lo seu próprio porta-voz (difundindo a marca nas redes sociais, por exemplo). O consumidor deve adorar o "estilo de vida" vendido pela Coca-cola e pelo McDonalds, e não mais ser um simples comprador de mercadorias.

Mas voltemos ao assunto principal. Ao mesmo tempo em que adquire forças libertárias em outros contextos, um maior amor-próprio, quando alimentado pelas profundas inseguranças trazidas pela fragmentação social, pode resultar em um aterrorizante radicalismo individualista: buscando refúgio em um mundo individual de certezas, em geral fantasioso, o indivíduo corta qualquer comunicação real com o mundo exterior. A outra opção, como já sugerido, não é menos assustadora: a filiação a grupos radicais de caráter comunitário, como bandos de skinheads ou fanáticas facções religiosas. Seja superestimando sua imagem individual e seus conhecimentos no mundo virtual, seja filiando-se a grupos radicais, ou invadindo uma escola armado até os dentes, o cidadão em questão possui uma profunda certeza de que está "absolutamente correto", acima de todos os demais "seres mortais". Quando alimentado pelo sentimento de vingança contra opressões sofridas, como o trágico caso da escola de Realengo, o indivíduo amedrontado pode tornar-se um agressor impetuoso do status quo que tanto teme e demoniza - por “não compreendê-lo” nem fornecer respostas claras e justas para a vida. Rancoroso, deixa de aproveitar a possibilidade de crescimento a partir do diálogo com o Outro, para se fechar em um mundo de ignorância e convencimento, protegendo-se, de dentro de sua bolha, da maldade vista no mundo externo. Acaba iludindo-se com a idéia de ser um Deus entre os homens. Não passa, na verdade, de um ser humano, dentre muitos outros, apavorado com a possibilidade de ser mais um componente da massa. E isso, em meio a um ambiente onde um único ponto de vista não é mais fornecido de antemão como "o correto" ou "verdadeiro". Por baixo de sua carapaça, o mais feroz terrorista não passa de um ser contaminado pelos efeitos mais nefastos da contemporaneidade.




Pedro Mancini 

5 comentários:

Antonio Guimaraes disse...

Pedro, costumo gostar dos seus textos, mas achei este meio confuso. Talvez tenha que lê-lo novamente noutro momento.
Antonio Candido

Unknown disse...

Já dei uma reformulada... se puder refazer a avaliação, serei muito grato!

Abraços

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Pedro!
Adorei o post que traz o que percebo como um dos maiores entraves as melhorias civilizatórias emergentes. Inquieta ver o quanto alguns parecem ostentar suas certezas e parecem ter 'ouvidos de mouro' ao Outro. E ainda que a postura se deva a múltiplos fatores, percebo mais arraigada em pessoas da minha geração ou anteriores.
As incertezas e os questionamentos parecem tornar as pessoas inseguras e algumas fazem muito para se manter em suas zonas de conforto.
Será que o dilúvio de informações estará prejudicando os pensamentos? É impressionante como uns não conseguem duvidar de suas certezas, conviver com o Outro, em suas diferenças, respeitá-lo e valorizá-lo.
Tolhem as possibilidades de diálogo profícuo, ao interagirem em mensagens fechadas, tentando impor sua visão de mundo e o mais triste: não conseguindo empreendem a desmerecê-lo.
Para essas o mundo parece se dividir nos semelhantes [em ideias, confraria & tal] e nos outros, os estranhos, incompletos, equivocados, ignorantes, etc.
As vezes penso que vários veem a 'humildade' como atestado de fraqueza, incompetência, prenúncio de queda...
Qual o futuro disso?! Pessoas em lugar de poder ou com status X revoltados 'severinenses' contra esse Sistema vertical, excludente, usurpador e desumano?

Unknown disse...

Olá Paula! Bom contar com o seu comentário!

De fato, acredito que o vendaval de informações prejudica nossa capacidade de compreender o Outro, além de incentivar a manutenção de certezas engessadas: sentimentalmente, ficamos tão fragilizados pela falta de certezas fornecidas por um meio social diverso e fragmentado, que precisamos nos agarrar em pequenos fundamentalismos (religiosos ou não) na tentativa de nos manter mentalmente saudáveis (sem sucesso, na minha opinião).

Sobre o futuro disso tudo, realmente não tenho ideia formada... acredito que o desprezo pela humildade e a supervalorização da arrogância se difundem com muita força por várias esferas sociais, e não sei que consigo visualizar a formação de uma oposição clara entre uma elite arrogante e uma massa revoltada: infelizmente, me parece que a realidade está muito mais dividida que isso, contando não apenas com segmentações horizontais (entre classes sociais), como verticais (entre grupos pertencentes às mesmas classes: as "tribos" de skinheads, de religiosos fanáticos, reacionários de direita ou esquerda e etc., todos igualmente incapazes de estabelecer um diálogo produtivo com o diferente).

Saudações virtuais!