sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Público, privado e íntimo no uso da internet: falência de uma promessa pós-moderna

Desde seus primórdios até alguns anos atrás, a internet aparecia, para seus usuários, como uma espécie de "dimensão paralela", onde cada um de nós poderia "se realizar", expondo suas vontades e desejos mais íntimos. O anonimato, que tinha forte peso, protegia a imagem do indivíduo no mundo de fora das telas enquanto navegava pela rede. Os chats de encontros amorosos e sexuais bombaram, prometendo a realização de fantasias cotidianamente recalcadas. 

Assim, a internet era vista como um ambiente onde os indivíduos poderiam expor sua intimidade; de certo modo, era uma extensão da vida privada, com a grande diferença de que as relações eram voluntariamente estabelecidas (enquanto na esfera privada doméstica, por exemplo, grande parte das relações, salvo as amorosas e de amizade, era obrigatória - com os familiares, em especial). Com os contatos estabelecidos online, esperava-se um compartilhamento de interesses e intimidades similares ao de amizades e casos sexuais da vida física. 

Mas, com o desenvolvimento da internet e o engolfamento das relações físicas por ela, o caráter "íntimo" de seu uso ficou mais obscuro, difícil de discernir. Hoje, com a difusão das redes sociais e a redução da relevância do anonimato, não é mais possível garantir que as ações de um indivíduo na rede passarão incólumes em suas relações sociais de fora das telas do PC ou do celular: o seu empregador poderá saber de suas folias na noite, sua namorada poderá bisbilhotar seus scraps no Orkut e encanar com seus contatos no Facebook, fotos comprometedoras poderão se esparramar pelo mundo a uma grande velocidade, amizades poderão ser perdidas por um simples deslize. 

Os embricamentos entre público e privado ocorrem em vários níveis: no universo micro-social das menores interações, com diálogos privados expostos para outrens não diretamente envolvidos, e até nas vendas de informações pessoais de administradores de redes sociais para grandes corporações (vide o caso do próprio Facebook). É por isso que alguns já tem apontado para a impossibilidade de se pensar a sociabilidade das redes sociais a partir de conceitos fixos como os de "público" e "privado"; na verdade, as relações virtualmente fundamentadas se baseiam em princípios de ambas as esferas, não podendo ser classificadas por apenas um lado do espectro (as informações são, muitas vezes, compartilhadas publicamente, embora possuam conteúdo privado ou de foro íntimo). 

Muitos indivíduos já se deram conta das armadilhas inerentes a esse pensamento ingênuo, de que se pode "agir de modo livre" na internet. Usam, assim, as redes sociais de forma mais cautelosa, preocupados com a preservação de suas imagens offline, instrinsecamente ligadas ao seu comportamento virtual cotidiano. No Facebook de hoje esse auto-controle é mais visível do que, por exemplo, no Orkut de anos atrás; ainda vemos alguns deslizes graves, contudo, em redes como o Twitter (como nos casos de manifestações xenófobas, já discutidas em outra postagem desse blog - caso típico de exibição pública de opiniões privadas, que acarreta em fortes represálias para seus autores, já que possuem alcance público). Grande parte dos usuários já sabe, porém, que qualquer informação emitida poderá futuramente ser usada contra o usuário emissor, quando apropriada por um inimigo potencial ou real. A partir dessa preocupação, surgiram inúmeras recomendações de conduta online, que vão desde a previsão e prevenção de ataques pedófilos contra usuários mais jovens, até simples recomendações de etiqueta - códigos de conduta específicos para os meios de comunicação virtuais, que visam maximizar a convivência e minimizar as exposições de intimidades. Recentemente, o blog "Tec", da Folha de São Paulo, difundiu algumas dessas recomendações, objetivadas em todo um código de comportamento, apelidada de "netqueta":

"(...) E no que consiste a netqueta? É uma maneira de registrar certas condutas em redes sociais e locais semelhantes no ciberespaço, de modo que não incomode os demais.

Mais ainda, que não prejudique o próprio internauta --lembre-se: empresas checam as redes sociais em busca de “antecedentes” dos futuros profissionais ou candidatos a emprego. Já faz parte da cartilha de consultorias, e da própria internet.

Então, antes de postar aquela foto de lingerie um tanto quanto, hum, “sensual”, no seu Facebook, Twitter ou Orkut, dê uma lida rápida nas dicas dadas aqui embaixo (...):




 Evite colocar fotos simulando nudez, ou fotos de roupas íntimas. Não é sexy, é exposição demais --redes sociais também são como um encontro entre pessoas, então é como se você tirasse a roupa em um ambiente público. Lembre-se da capacidade de multiplicação da internet! Você pode se arrepender daqui a alguns anos, mas o Google pode continuar expondo essas fotos quando se busca pelo seu nome. Fotos de nudez explícita, nunca. Lembre-se: existem brechas em sites sociais que, inclusive, permitem o compartilhamento de imagens com pessoas que não são suas amigas por lá.

- Pule as descrições e pormenores de sua vida, em qualquer rede. As pessoas não se interessam por isso, e você cai no risco de ganhar um “hide” ou um “unfollow” dos seus amigos virtuais.
- Fotos de balada, fazendo pose de "poderoso", "jet-setter" ou "insider" podem dizer bem o oposto disso. Be careful!
- Não vale postar ensaios fotográficos amadores, feitos na escada de incêndio do seu prédio ou na sala de casa. Pelo simples fato de que não é bom ou bonito, é amador, por mais que você seja o Brad Pitt (ou Angelina Jolie, tanto faz)! Mas atenção: ensaios divertidos, com bom-humor e bom-senso sempre são bem-vindos.
- Diga não ao Photoshop. Retoques malfeitos podem ressoar pior do que uma beleza natural.
- Repudie fotos de si próprio no espelho e fotos de si mesmo sem olhar para a câmera. É meio forçado...
- Evite frases de efeito da Clarice Lispector. É uma grande escritora, sim, mas a leia antes. Conheça. Muito do que se difunde como sendo de sua autoria não é.
- Dentro disso, não tente impressionar demonstrando conhecimento sobre coisas que você não domina. Não é feio não saber das coisas. Sócrates, um dos filósofos mais brilhantes da nossa história (e era analfabeto, vejam só), resume: “só sei que nada sei”. Não é clichê, é real.
- Não tire foto de qualquer coisa e poste em redes sociais. Uma samambaia que é empolgante para um não é, certamente, para muitos outros.
- Saia fora de descrições minuciosas sobre as suas viagens. Seja sucinto. E poste um monte de fotos depois, elas falam por si só. Acessa somente quem quiser vê-las. E fim de papo (...)".


Pois é, navegar pelas redes sociais ficou muito mais sem graça, de certo ponto de vista: esse tipo de conjunto de regras de conduta, como o exposto pela Folha, limita enormemente as possibilidades do agir  espontâneo e livre, promessa vendida pelas ferramentas desenvolvidas na sociedade dita "pós-moderna". Vemos que, enquanto as novas formas de comunicação virtuais não são absorvidas pelas esferas mais "físicas" de interação, essa promessa até que se cumpre minimamente: Quando a esfera virtual se mantém como uma espécie de "dimensão paralela", deslocada de nossas relações físicas, tendemos a nos manifestar de modo menos limitado, buscando mostrar "quem de fato somos" pela exposição de depoimentos, opiniões e até imagens e vídeos que revelam características que - em geral - só exibimos para nossos contatos físicos mais íntimos. O anonimato foi uma das ferramentas empregadas para viabilizar esse "isolamento" do mundo virtual sobre o mundo físico. Conforme o universo virtual é absorvido pelas outras esferas - quando nossos chefes, amigos, amores e vizinhos também compõem nossa rede de contatos e/ou podem acessar livremente as informações que emitimos -, contudo, vemo-nos cada vez mais amarrados a regras de sociabilidade muito similares àquelas que balizam nosso comportamento em ambientes públicos da vida cotidiana. E, assim, a promessa da "pós-modernidade" perde boa parte de seu sentido.



Pedro Mancini
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3 comentários:

Anônimo disse...

Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.

- Daniel

Anônimo disse...

Afe, essa foi difícil hein! Precisei ler 3 vezes!!!
Vou começar a ler seu blog com um dicionário a tiracolo rs.

Bem, eu meio que concordo com a netqueta, dados pessoais e fotos podem ser usados para fins ILÍCITOS, como por exemplo aquele golpe de fingir sequestro pelo telefone. Mas cada um é livre pra fazer do jeito quiser, só não pode esquecer que internet é como tatuagem, depois que coloca lá, não tira mais e essa nem com laser.

Unknown disse...

Realmente, o problema parece ser que muitos ainda agem, nas redes sociais, como se tratasse de um espaço privado protegido - sem perceber que ele tem alcance público, e que as informações lá disponibilizadas podem ser utilizadas de formas ilícitas, como você disse. Mas o povo aprende a ver que as fronteiras são mais líquidas nesse universo virtual...