Uma das questões mais interessantes a se discutir, a respeito de tal cobertura, refere-se à sua relação com um processo mais amplo que assola a contemporaneidade: a intimização de toda a vida pública. Discutirei, assim, a cobertura da imprensa sobre o caso Eloá, focando a resposta da mídia sobre a demanda compulsiva de seu público, a respeito de informações de foro íntimo dos envolvidos no caso.
Suplantando a "racionalidade policial" (preocupada, teoricamente, com a solução mais adequada possível da situação gerada pelo jovem Lindemberg) pela "racionalidade midiática" (preocupada única e exclusivamente com a audiência), programas como o da "malufista botoxada" Sonia Abrão causam desconforto e conflitos entre os próprios jornalistas, pelo que são capazes de fazer para segurar a atenção do telespectador. Trato aqui, especialmente, de uma entrevista feita diretamente com o responsável pelo cárcere privado, Lindemberg. Esta reportagem, realizada totalmente à regalia da polícia, procurou dar um tom sentimental e psicológico à situação do cárcere, em uma clara busca desmedida e insana por audiência. Vejam as consequências de tal ação, inicialmente, com relação aos próprios colegas de trabalho de Abrão: http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/zapping/ult3954u457177.shtml
Como se não bastasse a busca pela constituição de um forte caráter intimista e emotivo no caso Eloá, buscando-se relelar em rede nacional a "alma" de Lindemberg, por exemplo, os dois repórteres destacados na matéria da Folha intimizam a própria briga - principalmente Abrão, ao disctuir sua "relação de amizade" com Datena, dizendo que, a partir da crítica proferida por seu colega, ele deixaria de ser seu "amiguinho". Age, assim, como se, na situação dada, o que estivesse em jogo fosse não sua atitute, considerada anti-ética até por outros representantes do jornalismo sensacionalista, mas sim sua relação pessoal com o "gordinho eufórico" da Band.
Esse é o grande movimento que nos assola: o julgamento não da ação dos homens, mas de seus comportamentos, de suas "almas" - do quanto eles "APARENTAM" serem bons ou maus. Não importa tanto o que fazemos, mas sim "quem somos" - mesmo que essa imagem, por vezes, não seja acompanhada de atitudes correlatas. No caso de Abrão, não interessa o que ela fez - todos devem acreditar que ela é uma pessoa "íntegra", "inquestionável". Ela mesma achou um absurdo que um "colega" criticasse suas atitudes; e respondeu não no mesmo nível, pela lógica das atitudes, mas sim no nível da intimidade e do comportamento, desviando as atenções de sua conduta, centralizando-as para seus "sentimentos" para com Datena...
A obsessão da mídia no caso, reflexo da própria obsessão do público com a intimidade humana, fez com que o próprio desenrolar do caso seja afetado. Lindemberg, produto dessa mesma sociedade intimista, apresenta claros problemas psicológicos - além da própria alteração de humor, aparenta uma certa obsessão (desculpe parecer repetitivo) por ser "o centro das atenções"; um certo narcisimo, em minha opinião (muito presente, também, na sociedade atual). Ao "invadir" a relação de negociação entre o jovem e a polícia, a mídia sensacionalista e faminta por Ibope dá ao jovem o que ele deseja, como a própria Abrão admitiu; com isso, ele se sente ainda mais poderoso, podendo agir de modo mais mais irracional e, por conseguinte, mais imprevisível.
Vejam parte de outra reportagem da Folha a respeito, elaborada antes do desfecho fatal:http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u456942.shtml
Vê-se, assim, que a intervenção desmedida da mídia pôde, com toda a probabilidade, ter prejudicado o desenrolar do caso e colaborado para o desfecho que todos procuraram, conscientemente, evitar. Tal espécie de intervenção prejudicial ganha ainda mais fôlego e liberdade de ação em um país como o nosso, em que a mídia se vê revestida de um enorme poder, de uma liberdade sem quaisquer limites éticos.
Nos próprios EUA, suposta "terra da liberdade", especialistas no procedimento da Swat afirmaram que a intervenção da mídia, em tal grau, certamente acarretaria na prisão dos repórteres envolvidos. Ao agirem de forma totalmente irresponsável, esses "vampiros da audiência" possibilitam uma piora significativa em qualquer caso policial similar, tornando uma situação já complexa ainda mais difícil de se solucionar.
Pedro Mancini
4 comentários:
eu não cheguei a acompanhar esse caso, mas o que é muito interessante notar é a dimensão que isso toma no cotidiano das pessoas. se tornou um "big brother", só que nesse todo mundo acabou sendo eliminado...
tais acontecimentos são espetacularizados ao limite, pessoas até então desconhecidas passam a ser personagens na boca de pessoas no brasil inteiro.
duvido que a população em geral (e também a mídia movida a "pontos de audiência"), estivesse realmente consciente do que estava em jogo ali. acaba mesmo se tornando puro entretenimento (algo que nos tire da nossa rotinazinha medíocre). é aquele famigerado casamento, da indústria da informação com a indústria do entretenimento.
enfim, eu costumo ter um certo desgosto/descrença/tédio quando se trata desses "episódios de comoção nacional" (lembra daquela menina que caiu daquele prédio?).
De pleno acordo. A única diferença é que consigo manter uma "curiosidade sociológica" sobre essas coisas... ao invés de sentir desgosto, descrença e tédio, acho até uma certa graça na importância que as pessoas conferem a esses acontecimentos... e uma curiosidade um tanto mórbida.
Acho que nesse caso especificamente, essa intervenção da mídia pôs tudo a perder. Não há nada pior do que dar atenção pra quem acha que está com a razão como o Lindemberg,na cabeça dele: ela terminou comigo, pobre de mim, só eu sou o cara ideal para ela, só eu sofro neste mundo... Falando em SWAT, em casos como esse e da Izabela até o espaço aéreo se torna restrito, aqui, tinha rede de televisão no apartamento em frente!!! Aí aparece um projeto na câmara pra proibir esse tipo de atuação da mídia e, à cemeçar pela Globo, fazem um estardalhaço sobre a liberdade de imprensa. Como já disse várias vezes, democracia é uma merda! Desculpa hein Pedrão.
Concordo com tudo, menos, é lógico, com a frase final. A culpa não é da democracia, mas de uma visão torpe do liberalismo, irracional.
A democracia, para funcionar bem, deve ser regulada por uma razão mais ampla, que garanta que a liberdade de alguns não prejudique ou anule a liberdade (ou até a sobrevivência) de outros.
No caso, a visão de que os direitos da imprensa devem sobrepujar os interesses policiais do caso do cárcere de Eloá derivam de uma interpretação malfeita e mal-intencionada da liberdade - como se esta não devesse ser limitada pelos direitos dos outros.
Uma democracia, ao meu ver, é ainda o melhor sistema, desde que bem gerida e protegida contra a imposição de interesses particulares. A "liberdade de imprensa", sem limites, obviamente não defende os interesses da maioria, mas apenas dos próprios representantes da imprensa.
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