quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O Shopping, o Natal e a Observação Sociológica


O Natal é sempre uma época muito propícia à observação sociológica. Como uma data de teor simbólico muito forte, em q ue as relações sociais adquirem contornos específicos, é um momento em que um distanciamento mínimo dos acontecimentos pode fornecer informações importantes sobre os sentidos mais obscuros das ações humanas contemporâneas.

O pressuposto para essa forma de observação da realidade é a capacidade de vê-la de fora, como um espectador estrangeiro - algo impossível de se conseguir totalmente, como vários sociólogos observaram, mas cujo exercício mínimo ainda assim é imprescindível para tal profissão.

A última vez que estive especialmente inspirado a realizar esse afastamento razoável, observando o interessante e o especial por detrás das situações que outrora pareceriam as mais rotineiras e comuns, foi há cerca de um mês e meio do Natal.

Estava em frente ao Shopping Iguatemi, em São Paulo, às 10h30min, aguardando minha namorada, que trabalhava em um local próximo. Para quem não sabe, esse é um Shopping voltado para classes com maior poder aquisitivo, localizado no Itaim Bibi.

Estranhamente, toda a decoração de Natal do Shopping já estava montada, mas o mesmo ainda não estava totalmente em um "clima de Natal", uma vez que ainda estava abrindo tarde para essa época do ano - abriria apenas às 11h. Mesmo assim, uma pequena multidão já se aglomerava às portas do estabelecimento, posando para fotos com o gigantesco Papai-Noel montado às portas do local e aguardando ansiosamente pela abertura do local.

Até aí, nada de tão surpreendente: as pessoas querem comprar seus presentes de Natal, para socializarem com a família e amigos, compartilhando o chamado "espírito natalino" - materializado nos produtos adquiridos em lojas. Mas não só esse hábito do uso de mercadorias como forma de sociabilidade traz muitas informações caras aos sociólogos, como o próprio evento do "passeio no Shopping" superou em muito essa função; pois, na verdade, embora esse "palácio do consumo" abrisse às 11h nesse dia (um domingo), suas lojas estariam fechadas até as 14h.

Ora, isso mostra como o Shopping Center deixou de ser apenas um local de compra de mercadorias - um meio para um fim de consumo - para se tornar um fim em si mesmo. Local encantado por uma "hiper-realidade" cativante, super-atraente, com suas cores exageradas, suas decorações gigantescas, sua arquitetura exuberante, sua coleção de pequenas ilusões, esse grande palácio pós-moderno se impõe como um ambiente muito mais interessante e vívido do que aqueles próprios à realidade cotidiana. Sem dúvida, estamos falando de uma espécie de "re-encantamento do mundo" em uma sociedade cotidianamente desencantada; contudo, um re-encantamento desprovido de conteúdo unívoco e coerente, repleto de signos arrancados de seus significados, pautado apenas por imagens e pelo seu caráter de "superioridade" em relação à realidade por um simples exagero de forma, cores e informações. Um entorpecente visual.

Toda a decoração do referido Shopping conspira nesse sentido: o Papai-Noel gigantesco e seus cães (?) em frente aos portões, e um grande jardim artificial na parte interna, que simula um ambiente natalino extremamente pós-moderno. Nele, são encontrados cerca de dez Papais-Noéis, cercados de bonecos representando crianças e duendes. O mais interessante, contudo, é que o tema dessa decoração é a floresta tropical africana; por isso, podem ser encontradas diversas estátuas de animais típicos daquela região, todas com engrenagens que as fazem se mover com frequência: macacos, hipopótamos, girafas. Mas... o que diabos isso tem a ver com o Natal e seu imaginário, com velhos albinos com casacos de frio, renas e tudo mais?

Como se não bastasse, há apenas 1 Papai-Noel negro em meio a esses dez brancos, meio isolado em um canto, absolutamente descontextualizado - no maior estilo "alguém reclamou que só tínhamos Papais-Noéis brancos, então tivemos que colocar um negro".

Sem dúvida, trata-se de um avanço em termos da igualdade racial, com importantes repercussões simbólicas para a mente de crianças acostumadas a bonecas "esteticamente perfeitas", loiras e de olhos azuis. Mas é uma solução puramente visual, desprovida de conteúdo e insuficiente, sem dúvida, para o convencimento de que o Shopping aderiu à idéia de uma democracia racial e de um multiculturalismo - afinal, o Papai-Noel negro, além de solitário, continua inserido em todo um sistema simbólico de raízes não apenas brancas, mas nórdicas - sistema simbólico por si já implantado de modo artificial em nossa cultura, importado de suas características européia e americana de forma absolutamente acrítica. (Aliás, lembremos, mesmo o Papai-Noel vermelho e branco é uma sombra "hiper-real" daquele das tradições cristãs, sendo suas próprias cores, hoje, fruto do imperialismo propagandístico das Indústrias Coca-Cola.)

Vários outros pequenos fenômenos ocorridos no interior desse Shopping poderiam se prestar à uma observação crítica. O lugar está simplesmente lotado de sinais sobre a contemporaneidade e suas lógicas de funcionamento, que são um verdadeiro convite ao olhar sociológico e seu constante treinamento.

Pedro Mancini


2 comentários:

Luiz "o Mediano" disse...

Deixando a parte social de lado, quão perturbador deve ser para uma criança, que acredita em Papai Noel e que ele sozinho distribui presentes à todas as crianças do mundo, entrar num shopping e dar de cara com 10!!!
Por isso as crianças de hoje são um bando de tontos sem a mínima capacidade analítica. E pensar que quando eu era criança, batia nas outras crianças por fazer carrinhos andarem na parede, sendo que carros NÃO ANDAM NA PAREDE!

Unknown disse...

Realmente, esse é um outro bom exemplo da separação entre o signo e seu sentido inicial, trazida por esses ambientes pós-modernos. Obrigado pelo comentário!