sábado, 30 de outubro de 2010

Posicionamentos políticos em tempos eleitorais conturbados:o domínio da irracionalidade

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O nível de polarização e radicalismo atingido pela disputa eleitoral obstrui análises amplas sobre a situação política atual. Mais do que isso, deprime qualquer analista que pretenda desenvolver uma interpretação minimamente racional sobre o momento presente. A apelação constante, de todos os lados, para tingir o adversário de “mau” esgotou os humores daqueles que não se contentam em ingressar numa competição apaixonada e sem muita mediação lógica.

Além disso, em um processo eleitoral tão radicalizado, já considerado por muitos o mais baixo da história política nacional, cada indivíduo se vê obrigado a assumir uma posição relativamente constrangedora. Não existe posicionamento inteiramente livre de críticas: mesmo o não posicionamento, viabilizado pelos votos nulo e em branco, pode ser visto como ingênuo e passivo.

Nas linhas seguintes, tentarei estabelecer um panorama geral dos posicionamentos políticos mais relevantes durante o período eleitoral – tentando escapar, o quanto for possível, da parcialidade que também me contagia (evidentemente).

Parte do eleitorado, mais fiel ao seu candidato, o defende cegamente, rejeitando críticas a ele e direcionando pesados ataques contra o candidato rival. São, em geral, os agentes mais ativos de ataques com viés calunioso. Desconfio, porém, que essa seja uma parcela minoritária – boa parte do eleitorado não é militante “cego” de candidato X ou Y. Muitos, na verdade, acabam se posicionando em um dos lados do espectro competitivo por exclusão, ou seja, por rejeitar por completo um dos candidatos em disputa.

 Tanto Serra quanto Dilma sofrem com isso: por um lado, há uma grande massa de eleitores anti-Dilma e anti-PT, concentrados nas regiões Sudeste e Sul, unidos pelo repúdio aos projetos e posturas políticas do governo atual. Acredita que Dilma personifica tudo o que há “de mal” no país: o fisiologismo estatal, a corrupção, as negociatas com adversários políticos do passado, o apoio a movimentos sociais que “espoliam a propriedade privada”, a defesa pela legalização de “males morais” (como o aborto, as drogas e os casamentos entre homossexuais), entre outros. Obviamente, não se trata de uma massa homogenia: estão presentes, aqui, tanto religiosos radicais, quanto liberais dos mais seculares, defensores de um Estado laico, moderno (do ponto de vista neoliberal) e inserido na ordem econômica global. Há aqueles mais irracionais, que associam a imagem de Dilma à de uma criminosa terrorista (por ter se levantado contra o Regime Militar) ou “assassina de crianças” (vide a própria Mônica Serra), e aqueles que, de modo mais ponderado, se assustam com atitudes do PT governista verdadeiramente passíveis de crítica – a conivência com a corrupção, sua política de alianças, e o favorecimento de militantes na distribuição de cargos do Estado.

De outro lado, há aqueles que, embora não concordem plenamente com as propostas e posturas políticas petistas, preferem estas àquelas usualmente levadas a cabo pelos demo-tucanos. Associam o candidato José Serra a políticas de privatização e sucateamento do Estado, assim como a uma postura de intolerância aos movimentos sociais e à defesa de um Estado neoliberal policialesco, baseado na ausência de políticas públicas efetivas, no desemprego e na repressão brutal à massa empobrecida (e a qualquer um que proteste contra as políticas em voga). Essas  práticas seriam reconhecidas em governos encabeçados pelo PSDB – tanto na presidência passada de FHC, quanto nos governos estaduais. E o governo Serra em São Paulo, por sua vez, seria a maior encarnação dessa visão de Estado e de sociedade do partido tucano.

Infelizmente, porém, um debate mais detalhado sobre a “natureza” das políticas defendidas por cada lado do espectro eleitoral é enormemente prejudicado pela baixaria generalizada - que centralizou, rapidamente, as discussões da campanha política. No reducionismo e no individualismo interpretativo que transforma cada um dos candidatos no “maior dos males”, aqueles que escolhem um dos lados são imediatamente considerados fiéis seguidores de seus candidatos, sem que se considere qualquer possibilidade de existência de um “apoio crítico”: um apoio relativo, e não absoluto, em que se admite uma escolha “tática” pelo candidato “melhor” ou “menos ruim”, com base em determinados critérios.

Assim, nessa polarização infantil, qualquer um que admita o voto na candidata petista é imediatamente associado à imagem de “petista”, “burro”, ou visto como “pelego” ou uma figura que “mama nas tetas do governo”. Por outro lado, qualquer apoiador de Serra, independentemente de seus motivos, é visto como “reacionário”, “neoliberal” ou “de direita”. É possível que uma ou outra dessas classificações seja, parcialmente, verdadeira; contudo, trata-se de  categorizações precárias e maldosas que obscurecem o debate, contribuindo para a reprodução do discurso do ódio mútuo, da radicalização política e, conseqüentemente, da ausência quase absoluta da possibilidade de diálogo entre forças políticas de grande representatividade.

É claro que também existem muitos que se recusam a assumir a defesa de qualquer um dos lados, anulando seu voto. Pelo que percebo, muitos deles são de esquerda, mas não acreditam haver diferenças substantivas entre a candidata de centro-esquerda e José Serra – o próprio Plínio de Arruda assume essa visão. Desenvolvendo uma perspectiva global sobre a política nacional, não acreditam que os dois candidatos que alcançaram o segundo turno representem chances reais de mudança do SISTEMA político em vigência; posicionamento esse que lembra o do diretor José Padilha, expresso em Tropa de Elite 2.

Coloco-me, aqui, entre aqueles que contestam o idealismo presente entre os que anulam seu voto a partir desse raciocínio. Questiono-me, na verdade, se a abstenção na defesa de qualquer lado não seria o posicionamento “mais fácil” a se adotar. É claro que, como já apontei, quem age desse modo sujeita-se a ser chamado de “passivo” e “cego”, mas sofrerá críticas menos ferozes do que aqueles que escolhem um dos lados, sendo massacrados pelo lado oposto. Além disso, acho que o pensamento que impera nesses sujeitos possui algumas incorreções.

Ora, é fato que o sistema não mudará por meio das eleições; os atores dessa grande “festa democrática” já estão inseridos no sistema - tal como a “festa” em si. Mesmo assim, é cegueira total igualar os projetos políticos e visões de sociedade dos dois partidos em disputa –não são apenas diferentes na forma, como causam impactos muito distintos, reais e objetivos, na situação do país e de sua população. E posicionar-se na disputa não significa, de acordo com minha argumentação, um apoio absoluto e acrítico a um dos candidatos e seu projeto, e nem uma abstenção da luta pela mudança de todo o sistema político e social, defendida com unhas e dentes por militantes da ala mais à esquerda do espectro político-eleitoral.

Eu, particularmente, sou contra o pensamento do “quanto pior melhor”, presente em muitos desses militantes, que torcem para provar que “todos os candidatos servis ao sistema são iguais, tendendo a piorar a situação da população trabalhadora". Acho que é possível melhorar, de modo objetivo – embora sujeito a críticas sobre sua forma e alcance  - a situação da grande massa da população brasileira a partir de dentro do sistema, como demonstrou o Governo Lula. Claro que são mudanças limitadas, se comparadas àquelas resultantes de uma alteração brusca no sistema econômico, político e social;  mas só por isso devem ser menosprezadas? E mais: uma adesão pragmática à defesa de mudanças inerentes ao sistema significaria uma indiferença ou negação da luta mais ampla pela alteração dessa estrutura política, que filtra e limita possibilidades mais amplas de mudanças? O pragmatismo exclui, necessariamente, o idealismo da mente do eleitorado? Pessoalmente, acredito que não. Por isso votarei na candidata Dilma Rousseff, prestando-lhe apoio crítico,  e sem perder de vista a luta contra o sistema ao qual ela está, tanto quanto Serra, submetida (embora o PT se aproveite de sua lógica de forma mais benéfica à maioria da população do que a aliança demo-tucana).

Espero que, com o fim desse momento eleitoral tão conturbado e cheio de farpas, tenhamos maiores chances de discutir essas questões de forma minimamente ponderável. Por hora, porém, temo que a ferida aberta pela enorme agressividade entre os candidatos demorará a cicatrizar, e que essa grande irracionalidade eleitoral prossiga, no mínimo, por boa parte do governo eleito. Em meio a tal polarização, ainda será muito difícil não ser classificado como "petista roxo" por apoiá-lo estrategicamente...e talvez por isso tantos prefiram manter-se na neutralidade.


Pedro Mancini

sábado, 23 de outubro de 2010

Bolas de papel, Marcelo Tas e a falácia da neutralidade midiática

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Apesar da tentação em escrever diretamente sobre a patética tentativa da TV Globo em transformar uma bolinha de papel em um rolo de fita capaz de ferir um ser humano, tratarei do assunto de forma mais indireta, discutindo a falácia do discurso da "neutralidade midiática". 

Evidente que, quando falamos da Rede Globo, poucos serão aqueles (se é que ainda existem) que contestarão a parcialidade de seus jornalistas e editores-chefe. Não é à tôa que, regularmente, a emissora é execrada no Twitter por milhares de usuários, e que já tenha rendido um documentário sobre seus esforços de manipulação dos telespectadores brasileiros. Ainda assim, corre a visão, entre muitos setores da sociedade, de que a Globo seria apenas uma exceção, em termos de parcialidade da mídia (assim como a Revista Veja e, de modo similar mas não idêntico, a Carta Capital); Enquanto a cada dia menos pessoas caem no discurso neutro vendido por alguns desses órgãos, que posam como "donos da verdade" que não escolhem lados  (a Carta Capital seria uma exceção ao admitir seu posicionamento político próximo ao PT, assim como o Estadão recentemente admitiu apoio ao candidato José Serra), vários outros veículos e órgãos da imprensa ainda posam e são vistos como "imparciais" ou "independentes". Às vezes, essa pretensão é exposta no próprio slogan do veículo, como no caso da revista IstoÉ. Outro caso notório pode ser encontrado nos programas televisivos de humor, especialmente quando possuem  atuação no universo político. Para explorar um pouco essa questão, contarei sobre uma experiência pessoal recente. 

Semana passada, tive a chance de assistir a palestra de uma figura notável do universo midiático brasileiro atual: Marcelo Tas, apresentador do CQC. Sua fala tratava sobre redes sociais, daí meu interesse em assistir; contudo, Tas não deixou de comentar sobre assuntos políticos, frente a uma platéia composta por alunos do ensino médio, vindo a argumentar contra a censura da imprensa e tecendo críticas ao Presidente Lula. Os posicionamentos do apresentador, para mim, não representaram nenhuma novidade ou problema. O que me chamou a atenção foi quando ele indicou que "existem ALGUNS" órgãos de imprensa PARCIAIS, que atuam politicamente a favor de certos agrupamentos políticos. Não somente nessa fala, mas em várias outras, percebi claramente, em Marcelo Tas, tentativas de vender a si mesmo, ao seu programa e à sua emissora a imagem de baluardes de "neutralidade axiológica": Eles estariam ACIMA da sociedade, observando-a e a julgando de "fora", como positivistas à la Comte ou Durkheim (já há muito contestados por sua "ingenuidade" em buscar apreender a realidade social de forma absolutamente neutra). Portando-se dessa forma, o apresentador equilibra-se em uma tênue e pouco definida linha divisória entre a mais pura ingenuidade e a simples má fé: possivelmente, tenta enganar a si próprio e a seus telespectadores, ao posar  de "representante da sociedade civil" - e não como voz de determinados setores dessa sociedade, vinculados a certos interesses de classe. O mesmo ocorre com o CQC, programa de Marcelo Tas que, apesar de seu tratamento inovador com a política, acaba, ironicamente, abraçando o valor jurássico da "neutralidade" da atuação jornalístico-humorista. 

O tipo de visão que critico, aqui, só se fundamenta mediante a "fuga" de um a questão fundamental: a sociedade não é um "bolo disforme", representado por uma virtual "sociedade civil" que aglomera todos os interesses e fala em nome da Nação; na verdade, e isso deveria ser trivial, estamos inseridos em uma sociedade multiforme, segmentada, onde vários interesses competem e se aliam, de acordo com as circunstâncias. Ora, os órgãos da imprensa estão muito longe de escapar de tal lógica, embora vendam a imagem de fazê-lo; em  maior ou menor medida, de forma mais ou menos explícita, defendem uma certa visão, política e ideologicamente marcada,  associada as suas posições estruturais nessa sociedade multifacetária.

De todo modo, é visível que a conjuntura atual desfavorece, progressivamente, a supremacia desse aparato ideológico. A difusão de formas de comunicação e sociabilidade online - muito bem representadas pelas redes sociais e blogs pessoais - fez eclodir o acesso a novas interpretações e pontos de vista que, muitas vezes, enfrentam frontalmente as perspectivas hegemônicas dos meios de comunicação tradicionais (emissoras de TV, rádios, revistas semanais e jornais diários). Não mais detendo o monopólio sobre a informação, esses meios não conseguem sustentar a imagem de neutralidade, que rui na mesma medida  em que os posicionamentos apresentados como "fatos" se vêem confrontados com perspectivas opostas.

A crise do discurso da neutralidade chegou a um ponto, na verdade, que vemos a própria mídia tradicional se contradizer sobre os mesmos acontecimentos: assim, foi o SBT quem iniciou o processo de desmascaramento da Globo no caso na bolinha de papel; e, enquanto vemos uma "blindagem" do candidato tucano feita pela Veja, Folha de S. Paulo, Globo, etc., a revista IstoÉ - enquanto posa de independente-  destaca-se do status quo ao direcionar duas matérias de capa seguidas à condenação das estratégias eleitorais oportunistas do PSDB (em especial, o uso da questão do aborto na discussão política, já tratado em minhas postagens passadas) e às denúncias de corrupção dentro da campanha tucana (materializada no caso Paulo Preto). Como acreditar na neutalidade da imprensa, quando seus órgãos apresentam perspectivas mutuamente excludentes sobre os fenômenos, mesmo quando não admitem algum grau de parcialidade?

Ignorando a obviedade da ruína desse discurso, a maior parte da mídia insiste em sua manutenção. Acredito, porém, que o progressivo desmascaramento da neutralidade forçará os veículos à  rápida adaptação, caso queiram manter um grau razoável de credibilidade e de aceitação de seu próprio público. Creio, ainda, que esse é movimento deveras positivo para um aumento progressivo da genuína liberdade de expressão, baseada no enfrentamento - sem a hipocrisia da "imparcialidade" - de idéias assumidamente antagônicas sobre "fatos" que são, na verdade, inseparáveis de interpretações já marcadas por preferências e ideologias, mesmo relativamente ocultas à primeira vista.

Para resumir a raiz de minha argumentação, a multiplicação das fontes de informação cumpre papel imprescindível na ruptura do discurso da "mídia imparcial, soberana e independente", que, por sua vez, é inimiga (ao meu ver) da liberdade de expressão em seu caráter mais plural e libertário, fundamentada no livre acesso às interpretações múltiplas sobre os fatos, com a escolha do público sobre aquelas que se mostrarem mais  adequadas e pertinentes - que façam mais sentido para espectadores, leitores e ouvintes. Tal exercício é impossível quando a mídia de massas tem uma só voz, vendida como difusora da "verdade dos fatos" e vista como "desprovida de parcialidade". Como diria o ditado, "pior que não ler nenhum jornal é ler apenas um jornal"; e o tempo em que todas as fontes de informação detinham um só discurso, agindo como apenas um jornal, ficou no passado. À mídia tradicional, resta adaptar-se, admitindo seus posicionamentos, ou sofrer com uma contínua redução de seu público.


Pedro Mancini




domingo, 17 de outubro de 2010

Manipulações político-eleitorais sobre o aborto: o caso da Revista Veja

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Desculpem por me manter na temática eleitoral (e, mais ainda, na temática específica do uso eleitoral do aborto), mas, dada a última capa da Revista Veja, não pude resistir.

Trata-se, em minha opinião, da tentativa de manipulação do eleitorado mais patética e desprovida de fundamento, de fácil desmonte  por qualquer indivíduo minimamente informado sobre o funcionamento da política e sobre as diferenças entre políticas públicas, aprovações de leis e opiniões pessoais de candidatos. 

Bem, não consegui ainda a foto original da capa, mas vou descrevê-la brevemente. Ela é dividida em duas partes, uma superior e outra inferior, de modo que possamos lê-la de duas perspectivas diferentes. A Dilma aparece dos dois lados, sendo um deles com um fundo branco, e outro, com fundo vermelho. 

No lado de baixo, é exposta uma frase, atribuída à candidata petista, que revela um posicionamento supostamente pessoal, íntimo, da mesma: "Eu, pessoalmente, sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência". No lado superior, por seu turno, é revelada uma frase, da mesma candidata, repudiando a criminalização da prática abortiva: "Acho que tem de haver a descriminização do aborto. Acho um absurdo que não haja". A primeira frase foi dita em 2009, e a segunda, dois anos antes.

O argumento da revista é tão simples quanto fraco, e não deixa dúvidas sobre sua parcialidade. Vende-se que a candidata tem "duas caras", por mudar de discurso com relação à temática do aborto, teoricamente por motivações eleitorais. A  infantilidade do "erro" (para dizer o melhor) está na confusão entre opinião particular e concepções mais gerais sobre a sociedade, relacionadas com opiniões sobre a validade de determinadas leis e políticas públicas. Em outras palavras: ser pessoalmente contra o aborto não tem o mesmo significado que defender a proibição da opção de outras mulheres por sua realização. Afinal, viver em uma democracia é saber conviver com as diferenças de credo e de opinião - e um de seus pressupostos é permitir que esse outro, que pensa de modo diferente, conduza sua vida do modo que lhe bem convir, desde que essa condução não interfira na vida alheia. Isso é tão banal, que não mereceria, por si, muita discussão. Mas, infelizmente, o atual nível do debate eleitoral exige esse tipo de esclarecimento. No que tange ao aborto, na concepção de seus defensores, o direito de condução sobre a própria vida incluiria a decisão da mulher sobre um feto que ainda não poderia ser considerado um ser humano, sendo, portanto, uma parte de seu próprio corpo.

É claro que, no auge da "intimização" da política, muitos estão mais interessados nas opiniões pessoais de seus candidatos, especialmente no que tange a questões polêmicas, do que em seus programas de governo e concepções de sociedade. Por isso, eles ganham muito manipulando tais informações. Eu sei bem, por exemplo, que a Dilma é pessoalmente a favor do aborto, mas se viu obrigada a emitir outra opinião para não perder muitos eleitores. Do mesmo modo, já há a notícia de que Mônica Serra, a mulher do candidato do PSDB que disse por aí que a rival do marido era a favor da "morte de criancinhas", teria realizado um aborto no Chile; sem contar que, como já mencionei na última postagem, o próprio tucano foi o grande responsável pela implantação de normas técnicas de regulamentação do aborto em casos específicos, quando ainda era Ministro da Saúde. Hoje, porém, posa de grande figura religiosa, abraçando a bandeira de padres e pastores.

De todo modo, fico feliz ao ver que a candidata petista não tenha recuado de todo de suas opiniões sobre a descrimização do aborto, ao menos por hora, como bem mostra esse trecho do primeiro debate televisivo desse segundo turno:


* Obs: Há indícios de que o monopólio de um único candidato sobre a mídia esteja acabando: Logo após a Revista Veja publicar a matéria de capa mencionada, a Revista IstoÉ  lançou uma similar, mas com a figura de José Serra. Nela, são comparadas duas falas do tucano, uma negando conhecimento sobre Paulo Preto (que desviou mais de R$4mi da campanha do PSDB) e outra chamando o homem de "uma pessoa muito competente". Essa ousadia da Época em contestar o status quo midiático de apoio ao Serra também pôde ser vista na TV Record, que poderá pagar multa por colocar no ar uma reportagem que, supostamente, beneficiou a candidata Dilma Roussef. Juntamente com a multiplicação das fontes de informação, possibilitada pela proliferação das ferramentas de internet, e com o alcance de revistas opostas à grande mídia, como Carta Capital e Caros Amigos, novos modos de reportar o mundo político começam a destruir a visão monolítica que ainda impera nos meios de comunicação. 



Pedro Mancini


quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Religião e política nas eleições 2010: O uso de Deus no vale-tudo eleitoral

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Não restam dúvidas: questões religiosas colonizaram totalmente o debate político-eleitoral. E o pior: por iniciativa de um agrupamento político que nasceu com idéias ditas "progressistas", em contraposição a um regime militar de cunho conservador, e que conta com um quadro de intelectuais e empresários modernosos. Como explicar essa guinada absurda em direção à extrema-direita, reacionária e fundamentalista, que se opõe à descriminalização da homofobia e a políticas sociais que provenham atendimento às mães que decidam abortar?

Ora, a reposta, a primeira vista, seria óbvia: puro oportunismo eleitoral. E é isso mesmo - em momento de desespero, correndo o risco de derrota logo no primeiro turno, Serra radicalizou nos minutos finais da campanha, aproveitando-se da ferocidade religiosa de boa parte do eleitorado brasileiro. Somando forças com as denúncias contra Erenice, o fator religioso conseguiu não somente empurrar as eleições para o segundo turno, como reduzir drasticamente a vantagem de Dilma sobre seu rival. 

Mas não questiono, aqui, as óbvias motivações tucanas para reacender o debate religioso; mais difícil é compreender o sucesso dessa estratégia, considerando o suposto caráter progressista do PSDB e de seu eleitorado, concentrado em setores das classes média e alta, que, em boa parte, não são lá muito religiosos (em geral, são aqueles que demonstram sua religiosidade quando casam na Igreja). Muitos, aliás, não questionam a necessidade de um Estado moderno e laico. (Vale lembrar que o próprio Serra, quando Ministro da Saúde, legalizou o aborto em alguns casos específicos, como nas gravidezes resultantes de estupro ou que coloquem em risco a vida da mãe.) Assim, seria de se suspeitar a continuidade de seu apoio a um candidato que abraça bandeiras extremistas e passa a namorar com setores fundamentalistas.

A única explicação que consigo encontrar é a seguinte: o eleitorado peesedebista demoniza os petistas de modo tal que está disposto a fazer qualquer negócio para derrotá-los. Engraçado que esse tipo de comportamento do "vale tudo", dos "fins justificando os meios", vez ou outra é imputada aos petistas, pelos próprios tucanos, para fins de agressão e desqualificação. José Dirceu, o bicho-papão do PT, já sofreu muito com essa análise: ele seria um militante tão fervoroso, acreditaria tanto em um "novo mundo" socialista, que estaria disposto a QUALQUER COISA para atingir seus objetivos, inclusive afundar-se em um lamaçal de corrupção. Tudo isso por seus ideais. 

Pois bem. Ironicamente, o PSDB sofre do mesmo mal imputado a seus adversários. Pela queda do PT e para colocar-se mais uma vez no poder, vende sua alma ao fundamentalismo cristão. O sucesso dessa aproximação relaciona-se, por sua vez, tanto a falta de religiosidade de seu eleitorado clássico (esses "progressistas" das classes média e alta), quanto pelo excesso de religiosidade de um potencial eleitorado de Dilma. 

Em outras palavras: enquanto o ódio do eleitorado peesedebista pelo PT é maior do que sua vinculação religiosa, o amor de parte do eleitorado por Dilma seria menor do que seu fervor cristão. Assim, o PSDB acaba perdendo poucos eleitores, enquanto o PT corre risco de perder um número bem maior, sendo associado a bandeiras rejeitadas por templos e igrejas. Para os não-religiosos, os tucanos vendem simplesmente a idéia de que Dilma tem "duas caras", mudando de posições a respeito do assunto. Serra e sua equipe perceberam isso e partiram para o ataque: têm muito menos a perder do que a ganhar com esse jogo, ao menos eleitoralmente falando. Os princípios que se danem. 

Aliás, também lamento que, agarrado à lógica eleitoral, ao PT nada reste a não ser recuar diante das carapaças que lhe colocam. Sabendo do enorme peso da religião para o eleitorado brasileiro, não se dá ao luxo de debater a descriminalização do aborto, defendendo com maior vigor sua posição original. Seria uma ação arriscadíssima para ele, com enormes chances de resultar em uma derrota fenomenal nas urnas. Mas não revertamos o jogo sujo: quem trouxe o debate religioso à tona, de forma banal e visando atiçar os instintos mais primitivos dos cristãos, foi o PSDB. Enquanto o PT é obrigado a recuar de seus princípios, o PSDB colocou os dele em liquidação de modo claro e ativo, trazendo Deus para o seu vale-tudo eleitoral.  

(*Obs: Sobre o mesmo tema, indico ainda a leitura de um texto de Vladimir Safatle intitulado: "A República Fundamentalista Cristã").

 
Pedro Mancini


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Avaliação do primeiro turno e sobre a "terceira via" do PV

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Concluído o primeiro turno das eleições, é hora de todas as partes envolvidas fazerem seus balanços. Arrisco-me aqui a expor minhas próprias opiniões, assim como algumas perspectivas sobre os movimentos eleitorais para o segundo turno.

O resultado da eleição presidencial foi claramente ruim para a centro-esquerda, encabeçada pelo PT, que esperava uma vitória logo no primeiro turno. Dizem alguns, com alguma razão, que ele foi bom para a democracia brasileira, já que possibilitou um debate mais aprofundado sobre as propostas dos dois candidatos principais e impediu uma "ultra-glorificação" adiantada sobre a figura de Dilma Roussef.

Concordaria mais com essa análise se o adiamento da decisão eleitoral se devesse, apenas, à falta de adesão acrítica e absoluta da população - inclusive da esquerda - ao governo petista, que está muito longe de ser considerado excelente. Apesar de seus impressionantes e incontestáveis avanços sociais, o governo atual também ficou marcado por financiar o combate à miséria sem golpear as elites econômicas e por inegáveis e sérios casos de corrupção (que, embora tenham sido inflados pela mídia, não deixem de ser muito reais). Considerando a idéia de que o primeiro turno das eleições permite que votemos naquele candidato que mais se aproxime de nossos ideais, e não no "menos pior", seria compreensível, portanto, que o eleitorado que prefere Dilma a Serra, mas que tivessem fortes críticas à atuação política do PT, optasse por votar em um outro candidato - Marina ou Plínio, no caso.

Fiquei chocado, contudo, com a análise de que o fiel da balança, na queda dos votos para o PT, foi a questão religiosa: difundiu-se a percepção de que Dilma seria a favor do aborto, o que teria resultado em uma enorme migração de votos de cristãos, em especial para a candidata Marina Silva. Se essa avaliação se confirmar, há de se lamentar que dogmas religiosos ainda detenham tanta força política, em um ataque ao caráter laico do Estado brasileiro. Além disso, não foi exatamente um embate de propostas que levou a campanha ao segundo turno - foi, antes, uma onda sombria de agressões, acusações e jogos baixos de todo tipo (como a associação de Dilma com a figura da "assassina de criancinhas"). 

De todo modo, é inegável que a esquerda subestimou o papel e o poder de atração de Marina Silva nessas eleições. Na verdade, pouco sabemos sobre o comportamento político de seus eleitores, e por isso a surpresa do adiamento da decisão presidencial: apesar de todos os ataques contra a candidata petista, avaliou-se corretamente que a população não levava a figura de Serra a sério como uma alternativa, mas ignorou-se a capacidade de a candidatura Marina agregar aqueles comovidos pelas acusações realizadas pela campanha do tucano e de seus aliados midiáticos. 

Há a visão de que boa parte do eleitorado de Marina seja composto de simpatizantes da esquerda que não se vêem representados na figura da Dilma. De acordo com tal visão, haveria a tendência de migração desse eleitorado para a petista no segundo turno, já que ela representaria uma opção "menos pior" do que aquela representada por José Serra. 

Parte da esqueda, contudo, parte de outra visão: de que o eleitorado de Marina é composto pelas classes média e alta, por setores de elite da sociedade, que vêm na candidata uma oposição mais concreta contra o governo petista, por eles desprezado. Seriam, portanto, virtuais simpatizantes da direita, mas que não se convenceram com o comportamento esquizofrênico de Serra no primeiro turno (ora colando-se à imagem do Presidente, ora isolando-se em uma posição de criticidade ácida e denuncismo). No segundo turno, porém, esse eleitorado ainda preferiria o ex-governador paulista à "ex-terrorista" (aja aspas, por favor!) Dilma, representante-mor do "grande mal" petista.

Qual visão estaria correta? Em minha humilde opinião, ambas. E esse é o grande "às na manga" do PV, partido de Marina Silva: colocando-se "acima da direita e da esquerda", esse partido consegue agregar simpáticos de todos os lados do espectro político. Mantendo a sua carapaça ecológica, camufla sua posição real nesse espectro - suas propostas político-econômicas muito mais próximas do neoliberalismo peesedebista são obscurecidas pela agenda verde. Na verdade, a "terceira via" do PV é, em grande parte, uma grande ilusão. Quem quiser ler mais sobre o assunto, recomendo a leitura do texto de Vladimir Safatle sobre o assunto.

O PV é, ao mesmo tempo, um partido muito parecido com o velho PMDB - embora muito mais competente do que este em suas malandragens. Também posa de "neutro" no panorama político, conseguindo, com isso, aliar-se de acordo com contextos específicos, sendo muito mais efetivo em uma negociação de cargos com outros partidos (PT e PSDB, por exemplo). A vantagem é que, ao contrário do PMDB, com sua nulidade de conteúdo, o PV monopoliza a agenda ecológica - um troféu valioso para qualquer partido. Afinal, só posará de ecologicamente correto quem tiver o aval dessa agremiação, e com esse aval, garante-se o apoio de um grande número de "eleitores jovens e descolados", que realmente acham que o "PMDB verde do século XXI" representa alguma grande novidade para além da simples preservação ambiental.

* Obs: É claro que o comportamento do PV apresenta seus efeitos colaterais:  a tendência ao racha interno, dada a existência de múltiplos interesses por alianças. Na definição (ou indefinição) do apoio da Marina para o segundo turno, uma guerra interna já tomou curso entre os políticos verdes: aliados do PSDB em São Paulo de um lado, pregadores da neutralidade de outro, e talvez alguns mais simpáticos ao PT aqui e ali. No fim das contas, o resultado dessa luta não interessará tanto para os rumos da Nação: resultará em distribuições de cargos para os verdes alegres que, ainda sim, não poderão garantir uma fidelidade permanente para o lado vencedor.

Pedro Mancini