O nível de polarização e radicalismo atingido pela disputa eleitoral obstrui análises amplas sobre a situação política atual. Mais do que isso, deprime qualquer analista que pretenda desenvolver uma interpretação minimamente racional sobre o momento presente. A apelação constante, de todos os lados, para tingir o adversário de “mau” esgotou os humores daqueles que não se contentam em ingressar numa competição apaixonada e sem muita mediação lógica.
Além disso, em um processo eleitoral tão radicalizado, já considerado por muitos o mais baixo da história política nacional, cada indivíduo se vê obrigado a assumir uma posição relativamente constrangedora. Não existe posicionamento inteiramente livre de críticas: mesmo o não posicionamento, viabilizado pelos votos nulo e em branco, pode ser visto como ingênuo e passivo.
Nas linhas seguintes, tentarei estabelecer um panorama geral dos posicionamentos políticos mais relevantes durante o período eleitoral – tentando escapar, o quanto for possível, da parcialidade que também me contagia (evidentemente).
Parte do eleitorado, mais fiel ao seu candidato, o defende cegamente, rejeitando críticas a ele e direcionando pesados ataques contra o candidato rival. São, em geral, os agentes mais ativos de ataques com viés calunioso. Desconfio, porém, que essa seja uma parcela minoritária – boa parte do eleitorado não é militante “cego” de candidato X ou Y. Muitos, na verdade, acabam se posicionando em um dos lados do espectro competitivo por exclusão, ou seja, por rejeitar por completo um dos candidatos em disputa.
Tanto Serra quanto Dilma sofrem com isso: por um lado, há uma grande massa de eleitores anti-Dilma e anti-PT, concentrados nas regiões Sudeste e Sul, unidos pelo repúdio aos projetos e posturas políticas do governo atual. Acredita que Dilma personifica tudo o que há “de mal” no país: o fisiologismo estatal, a corrupção, as negociatas com adversários políticos do passado, o apoio a movimentos sociais que “espoliam a propriedade privada”, a defesa pela legalização de “males morais” (como o aborto, as drogas e os casamentos entre homossexuais), entre outros. Obviamente, não se trata de uma massa homogenia: estão presentes, aqui, tanto religiosos radicais, quanto liberais dos mais seculares, defensores de um Estado laico, moderno (do ponto de vista neoliberal) e inserido na ordem econômica global. Há aqueles mais irracionais, que associam a imagem de Dilma à de uma criminosa terrorista (por ter se levantado contra o Regime Militar) ou “assassina de crianças” (vide a própria Mônica Serra), e aqueles que, de modo mais ponderado, se assustam com atitudes do PT governista verdadeiramente passíveis de crítica – a conivência com a corrupção, sua política de alianças, e o favorecimento de militantes na distribuição de cargos do Estado.
De outro lado, há aqueles que, embora não concordem plenamente com as propostas e posturas políticas petistas, preferem estas àquelas usualmente levadas a cabo pelos demo-tucanos. Associam o candidato José Serra a políticas de privatização e sucateamento do Estado, assim como a uma postura de intolerância aos movimentos sociais e à defesa de um Estado neoliberal policialesco, baseado na ausência de políticas públicas efetivas, no desemprego e na repressão brutal à massa empobrecida (e a qualquer um que proteste contra as políticas em voga). Essas práticas seriam reconhecidas em governos encabeçados pelo PSDB – tanto na presidência passada de FHC, quanto nos governos estaduais. E o governo Serra em São Paulo, por sua vez, seria a maior encarnação dessa visão de Estado e de sociedade do partido tucano.
Infelizmente, porém, um debate mais detalhado sobre a “natureza” das políticas defendidas por cada lado do espectro eleitoral é enormemente prejudicado pela baixaria generalizada - que centralizou, rapidamente, as discussões da campanha política. No reducionismo e no individualismo interpretativo que transforma cada um dos candidatos no “maior dos males”, aqueles que escolhem um dos lados são imediatamente considerados fiéis seguidores de seus candidatos, sem que se considere qualquer possibilidade de existência de um “apoio crítico”: um apoio relativo, e não absoluto, em que se admite uma escolha “tática” pelo candidato “melhor” ou “menos ruim”, com base em determinados critérios.
Assim, nessa polarização infantil, qualquer um que admita o voto na candidata petista é imediatamente associado à imagem de “petista”, “burro”, ou visto como “pelego” ou uma figura que “mama nas tetas do governo”. Por outro lado, qualquer apoiador de Serra, independentemente de seus motivos, é visto como “reacionário”, “neoliberal” ou “de direita”. É possível que uma ou outra dessas classificações seja, parcialmente, verdadeira; contudo, trata-se de categorizações precárias e maldosas que obscurecem o debate, contribuindo para a reprodução do discurso do ódio mútuo, da radicalização política e, conseqüentemente, da ausência quase absoluta da possibilidade de diálogo entre forças políticas de grande representatividade.
É claro que também existem muitos que se recusam a assumir a defesa de qualquer um dos lados, anulando seu voto. Pelo que percebo, muitos deles são de esquerda, mas não acreditam haver diferenças substantivas entre a candidata de centro-esquerda e José Serra – o próprio Plínio de Arruda assume essa visão. Desenvolvendo uma perspectiva global sobre a política nacional, não acreditam que os dois candidatos que alcançaram o segundo turno representem chances reais de mudança do SISTEMA político em vigência; posicionamento esse que lembra o do diretor José Padilha, expresso em Tropa de Elite 2.
Coloco-me, aqui, entre aqueles que contestam o idealismo presente entre os que anulam seu voto a partir desse raciocínio. Questiono-me, na verdade, se a abstenção na defesa de qualquer lado não seria o posicionamento “mais fácil” a se adotar. É claro que, como já apontei, quem age desse modo sujeita-se a ser chamado de “passivo” e “cego”, mas sofrerá críticas menos ferozes do que aqueles que escolhem um dos lados, sendo massacrados pelo lado oposto. Além disso, acho que o pensamento que impera nesses sujeitos possui algumas incorreções.
Ora, é fato que o sistema não mudará por meio das eleições; os atores dessa grande “festa democrática” já estão inseridos no sistema - tal como a “festa” em si. Mesmo assim, é cegueira total igualar os projetos políticos e visões de sociedade dos dois partidos em disputa –não são apenas diferentes na forma, como causam impactos muito distintos, reais e objetivos, na situação do país e de sua população. E posicionar-se na disputa não significa, de acordo com minha argumentação, um apoio absoluto e acrítico a um dos candidatos e seu projeto, e nem uma abstenção da luta pela mudança de todo o sistema político e social, defendida com unhas e dentes por militantes da ala mais à esquerda do espectro político-eleitoral.
Eu, particularmente, sou contra o pensamento do “quanto pior melhor”, presente em muitos desses militantes, que torcem para provar que “todos os candidatos servis ao sistema são iguais, tendendo a piorar a situação da população trabalhadora". Acho que é possível melhorar, de modo objetivo – embora sujeito a críticas sobre sua forma e alcance - a situação da grande massa da população brasileira a partir de dentro do sistema, como demonstrou o Governo Lula. Claro que são mudanças limitadas, se comparadas àquelas resultantes de uma alteração brusca no sistema econômico, político e social; mas só por isso devem ser menosprezadas? E mais: uma adesão pragmática à defesa de mudanças inerentes ao sistema significaria uma indiferença ou negação da luta mais ampla pela alteração dessa estrutura política, que filtra e limita possibilidades mais amplas de mudanças? O pragmatismo exclui, necessariamente, o idealismo da mente do eleitorado? Pessoalmente, acredito que não. Por isso votarei na candidata Dilma Rousseff, prestando-lhe apoio crítico, e sem perder de vista a luta contra o sistema ao qual ela está, tanto quanto Serra, submetida (embora o PT se aproveite de sua lógica de forma mais benéfica à maioria da população do que a aliança demo-tucana).
Espero que, com o fim desse momento eleitoral tão conturbado e cheio de farpas, tenhamos maiores chances de discutir essas questões de forma minimamente ponderável. Por hora, porém, temo que a ferida aberta pela enorme agressividade entre os candidatos demorará a cicatrizar, e que essa grande irracionalidade eleitoral prossiga, no mínimo, por boa parte do governo eleito. Em meio a tal polarização, ainda será muito difícil não ser classificado como "petista roxo" por apoiá-lo estrategicamente...e talvez por isso tantos prefiram manter-se na neutralidade.
Pedro Mancini