Passado quase um mês desde as últimas eleições, podemos apreender, com maior clareza, suas principais conseqüências sobre o comportamento político dos brasileiros e suas agremiações.
Como vemos em qualquer situação limítrofe de conflito, em que temos de nos posicionar diante de circunstâncias radicais, boa parte da névoa da hipocrisia e da falsidade se dissolve; é nos momentos de tensão, em outras palavras, que os indivíduos mostram suas verdadeiras faces, suas opiniões mais polêmicas e verdadeiras, usualmente camufladas para evitar discussões mais acaloradas e para alcançar resoluções consensuais.
Roberto DaMatta, em seu “Carnaval, Malandros e Heróis”, nos traz um exemplo interessante a respeito da revelação da realidade social mais obscura em certos momentos tensão: quando indivíduos não são reconhecidos pelo Outro como pessoas a quem se deve tratamento diferenciado, os primeiros podem revelar, de modo claro e agressivo – como pelo uso da fatídica frase “Você sabe com quem está falando?” – aquilo que realmente pensam sobre as regras morais em vigência. Nesse momento da interação face-a-face, a máscara da “igualdade de direito” e da “democracia” se esvai, revelando-se, em seu lugar, o caráter profundamente personalista e hierarquizado da sociedade brasileira. É o caso, por exemplo, de um cidadão que evita ser autuado pela polícia, ao revelar ser uma pessoa "importante", e não um "pobre coitado" qualquer.
No universo político, essa lógica não é menos verdadeira; assim como o mito da democracia racial se esvai em situações limítrofes, que convidam os indivíduos a revelaram seus preconceitos mais obscuros, uma eleição tão radicalizada quanto a última convida a dissolução da representação de uma sociedade brasileira apaziguada, que superou a divisão entre “direita” e “esquerda” e que consegue conviver, sem conflitos, com o diferente.
É claro que a redução da hipocrisia também pode trazer irritações; assim, desaponta saber que certas personalidades, que posavam como ideologicamente “neutras”, revelam uma faceta ideologicamente carregada , possuindo idéias que não compartilhamos. Mas esse auto-desmascaramento possui, também, seu lado bom, especialmente para o desenvolvimento da democracia brasileira: os posicionamentos político-ideológicos ficam mais evidentes, e com isso, mas fáceis de lidar, mais ponderáveis. Sinal de amadurecimento político-ideológico, talvez.
A direita, por exemplo, releva-se enquanto tal, em oposição àquela direita que esconde ser direita, que já atormentou o país por tanto tempo. Assim, dinossauros ideológicos, como a TFP, saem de seu torpor para apoiar candidatos e posturas políticas; faculdades suportadas pela Igreja, como o Mackenzie, revelam sua repulsa a leis seculares, como a que condena a homofobia.
Logicamente, não se trata de um movimento linear: não é a primeira vez que ocorreu, na história brasileira, uma segmentação clara e radicalizada entre direita e esquerda. Especialmente durante o período da Guerra Fria, o Brasil foi contaminado severamente pela dicotomia global entre o “socialismo real”, representado e exportado pela União Soviética, e as potências capitalistas e liberais encabeçadas pelos EUA. Desde o período Vargas até os anos finais da Ditadura Militar, a sociedade brasileira viveu momentos de profunda radicalização ideológica, com mobilizações nas ruas a favor de ambos os lados, movimentos armados e interferências da Igreja em assuntos de responsabilidade do Estado.
Finda a polarização ideológica entre Oriente e Ocidente, porém, a esquerda brasileira, seguindo a mundial, sofreu um doloroso processo de descrença sobre seu modelo de sociedade e de reformulação de sua atuação. A direita, desprovida de um rival ideológico à altura, também se arrefeceu, dominando a realidade brasileira com maior tranqüilidade, e de forma mais velada – mantendo aspectos mais radicais de sua ideologia escondidos debaixo do tapete. Junto com os Comunistas, os anti-comunistas também debandaram, provisoriamente, da política nacional.
A Nova República, obtida mediante um pacto conservador com as elites que compuseram o Regime Militar, sentiu-se livre para aplicar os mandamentos neoliberais impostos pelo “Consenso de Washington”; à esquerda, sobrou o papel de pura crítica ao modelo dominante, obtendo poucas vitórias e derrotas colossais – pagando o preço, enfim, por seu autoflagelo e por sua falência ideológica pós-URSS.
Reorganizada em torno da figura carismática de Lula, a esquerda finalmente voltou ao cenário político brasileiro conquistando, por voto, seu cargo mais importante. O PT, a partir daí, impôs sua própria agenda como “a” agenda esquerdista para o país, com todas as suas limitações – como a ausência de uma grande ruptura quanto às práticas mais nefastas de corrupção e fisiologismo. Direita e esquerda, porém, são posições relativas, e os petistas geriram um governo que aplicou medidas mais direcionadas ao combate à pobreza extrema e à desigualdade, dois dos maiores problemas estruturais do país; fizeram escolhas que, de fato, os distanciaram de políticos anteriores, especialmente os de orientação neoliberal. Contestaram o velho e conhecido discurso, presente inclusive nos militares, de “fazer o bolo crescer” antes de distribuí-lo, e decidiram já cortar uns pedacinhos desse bolo em prol dos mais famintos, inserindo-os no mercado consumidor.
A prova maior de que o Governo Lula-Dilma pode ser inserido na disputa ideológica mais ampla entre os espectros Direita-Esquerda, e que essa dicotomia não está de modo algum ultrapassada, é essa re-radicalização da política, que apontei inicialmente. Com a queda da supremacia de uma visão de mundo – a direitista, seja ela ultra liberal, seja ultra conservadora -, vista como “natural” desde o fim do Regime Militar, e o surgimento de visões antagônicas de gestão do Estado, como a proposta e aplicada por Lula, Dilma e aliados, as discussões de cunho ideológico saem dos bueiros e voltam a borbulhar. O medo de soluções anti-institucionais às disputas aflora, é claro: esteja esse pavor presente em uma hipotética atração dos governistas por um regime censor, ou vinculada à chance de antigos coronéis e novos perdedores eleitorais se aliarem por um golpe de Estado. Mas ainda prefiro esse estado de permanente tensão, do que um em que a forma de governar não pode ser contestada, sendo vista como “evidente”, imune à crítica e à competição com outras perspectivas; um estado social de apatia, dominado por um “mito” da vitória absoluta de uma direita mundialmente orientada.
Pedro Mancini