quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A re-radicalização ideológica da política nacional

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Passado quase um mês desde as últimas eleições, podemos apreender, com maior clareza, suas principais conseqüências sobre o comportamento político dos brasileiros e suas agremiações.

Como vemos em qualquer situação limítrofe de conflito, em que temos de nos posicionar diante de circunstâncias radicais, boa parte da névoa da hipocrisia e da falsidade se dissolve; é nos momentos de tensão, em outras palavras, que os indivíduos mostram suas verdadeiras faces, suas opiniões mais polêmicas e verdadeiras, usualmente camufladas para evitar discussões mais acaloradas e para alcançar resoluções consensuais.

Roberto DaMatta, em seu “Carnaval, Malandros e Heróis”, nos traz um exemplo interessante a respeito da revelação da realidade social mais obscura em certos momentos tensão: quando indivíduos não são reconhecidos pelo Outro como pessoas a quem se deve tratamento diferenciado, os primeiros podem revelar, de modo claro e agressivo – como pelo uso da fatídica frase “Você sabe com quem está falando?” – aquilo que realmente pensam sobre as regras morais em vigência. Nesse momento da interação face-a-face, a máscara da “igualdade de direito” e da “democracia” se esvai, revelando-se, em seu lugar, o caráter profundamente personalista e hierarquizado da sociedade brasileira. É o caso, por exemplo, de um cidadão que evita ser autuado pela polícia, ao revelar ser uma pessoa "importante", e não um "pobre coitado" qualquer.

No universo político, essa lógica não é menos verdadeira; assim como o mito da democracia racial se esvai em situações limítrofes, que convidam os indivíduos a revelaram seus preconceitos mais obscuros, uma eleição tão radicalizada quanto a última convida a dissolução da representação de uma sociedade brasileira apaziguada, que superou a divisão entre “direita” e “esquerda” e que consegue conviver, sem conflitos, com o diferente.

É claro que a redução da hipocrisia também pode trazer irritações; assim, desaponta saber que certas personalidades, que posavam como ideologicamente “neutras”, revelam uma faceta ideologicamente carregada , possuindo idéias que não compartilhamos. Mas esse auto-desmascaramento possui, também, seu lado bom, especialmente para o desenvolvimento da democracia brasileira: os posicionamentos político-ideológicos ficam mais evidentes, e com isso, mas fáceis de lidar, mais ponderáveis. Sinal de amadurecimento político-ideológico, talvez.

A direita, por exemplo, releva-se enquanto tal, em oposição àquela direita que esconde ser direita, que já atormentou o país por tanto tempo. Assim, dinossauros ideológicos, como a TFP, saem de seu torpor para apoiar candidatos e posturas políticas; faculdades suportadas pela Igreja, como o Mackenzie, revelam sua repulsa a leis seculares, como a que condena a homofobia.

Logicamente, não se trata de um movimento linear: não é a primeira vez que ocorreu, na história brasileira, uma segmentação clara e radicalizada entre direita e esquerda. Especialmente durante o período da Guerra Fria, o Brasil foi contaminado severamente pela dicotomia global entre o “socialismo real”, representado e exportado pela União Soviética, e as potências capitalistas e liberais encabeçadas pelos EUA. Desde o período Vargas até os anos finais da Ditadura Militar, a sociedade brasileira viveu momentos de profunda radicalização ideológica, com mobilizações nas ruas a favor de ambos os lados, movimentos armados e interferências da Igreja em assuntos de responsabilidade do Estado.

Finda a polarização ideológica entre Oriente e Ocidente, porém, a esquerda brasileira, seguindo a mundial, sofreu um doloroso processo de descrença sobre seu modelo de sociedade e de reformulação de sua atuação. A direita, desprovida de um rival ideológico à altura, também se arrefeceu, dominando a realidade brasileira com maior tranqüilidade, e de forma mais velada – mantendo aspectos mais radicais de sua ideologia escondidos debaixo do tapete. Junto com os Comunistas, os anti-comunistas também debandaram, provisoriamente, da política nacional.

A Nova República, obtida mediante um pacto conservador com as elites que compuseram o Regime Militar, sentiu-se livre para aplicar os mandamentos neoliberais impostos pelo “Consenso de Washington”; à esquerda, sobrou o papel de pura crítica ao modelo dominante, obtendo poucas vitórias e derrotas colossais – pagando o preço, enfim, por seu autoflagelo e por sua falência ideológica pós-URSS.

Reorganizada em torno da figura carismática de Lula, a esquerda finalmente voltou ao cenário político brasileiro conquistando, por voto, seu cargo mais importante. O PT, a partir daí, impôs sua própria agenda como “a” agenda esquerdista para o país, com todas as suas limitações – como a ausência de uma grande ruptura quanto às práticas mais nefastas de corrupção e fisiologismo. Direita e esquerda, porém, são posições relativas, e os petistas geriram um governo que aplicou medidas mais direcionadas ao combate à pobreza extrema e à desigualdade, dois dos maiores problemas estruturais do país; fizeram escolhas que, de fato, os distanciaram de políticos anteriores, especialmente os de orientação neoliberal. Contestaram o velho e conhecido discurso, presente inclusive nos militares, de “fazer o bolo crescer” antes de distribuí-lo, e decidiram já cortar uns pedacinhos desse bolo em prol dos mais famintos, inserindo-os no mercado consumidor.

A prova maior de que o Governo Lula-Dilma pode ser inserido na disputa ideológica mais ampla entre os espectros Direita-Esquerda, e que essa dicotomia não está de modo algum ultrapassada, é essa re-radicalização da política, que apontei inicialmente. Com a queda da supremacia de uma visão de mundo – a direitista, seja ela ultra liberal, seja ultra conservadora -, vista como “natural” desde o fim do Regime Militar, e o surgimento de visões antagônicas de gestão do Estado, como a proposta e aplicada por Lula, Dilma e aliados, as discussões de cunho ideológico saem dos bueiros e voltam a borbulhar. O medo de soluções anti-institucionais às disputas aflora, é claro: esteja esse pavor presente em uma hipotética atração dos governistas por um regime censor, ou vinculada à chance de antigos coronéis e novos perdedores eleitorais se aliarem por um golpe de Estado. Mas ainda prefiro esse estado de permanente tensão, do que um em que a forma de governar não pode ser contestada, sendo vista como “evidente”, imune à crítica e à competição com outras perspectivas; um estado social de apatia, dominado por um “mito” da vitória absoluta de uma direita mundialmente orientada.

Pedro Mancini

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Possibilidades de interpretação crítica sobre as relações mediadas por novas tecnologias

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Complementando a postagem anterior, exemplificarei algumas possibilidades de interpretação crítica sobre as relações sociais virtualmente consolidadas. É claro que, como já apontei, muitas das críticas tecidas contra as interações virtuais são preconceituosas e catastróficas, sem um aprofundamento real sobre os problemas que elas nos colocam; mesmo assim, apontam questões que merecem ser abordadas, embora usualmente ignoradas pelos defensores mais "fanáticos" das novas tecnologias.

É possível, por exemplo, questionar o conteúdo das relações estabelecidas e mantidas por ferramentas tecnológicas mais recentes. O sociólogo Dominique Wolton é um dos que pensam nesse sentido, considerando que vivemos em uma "sociedade individualista de massas", potencializada por redes sociais como o Facebook. Negando a idéia segundo a qual a internet fomentaria um debate democrático, com o convívio de indivíduos que pensam de modos distintos, estimulando, portanto, a formação de sociedades virtuais globais, Wolton considera que as redes sociais e outras ferramentas de interação mais recentes fomentam modos comunitários de associação - formados por indivíduos que pensam de forma equivalente e possuem interesses comuns. De fato, o Twitter, por exemplo, têm se manifestado como um exemplo típico dessa forma de sociabilidade: pessoas "seguem" aqueles que pensam como elas, e criam verdadeiras "panelinhas comunitárias", agredindo aqueles que pensam de forma distinta, ao invés de conviverem pacificamente com eles. O período eleitoral salientou essa característica do Twitter, e cultivou sementes de discórdia que ainda perduram - como as últimas manifestações xenófobas contra nordestinos, encabeçadas por jovens de classe média do Sul e Sudeste do país. Essas formas de intolerância comunitária encontram nas redes sociais a possibilidade de propagação, dada a convivência de indivíduos que compartilham de suas opiniões (inconfessáveis em público), e um ambiente propício para exercitar seus dogmas (por meio de agressões verbais contra adeversários, vistas, de modo ilusório, como imunes à punição legal). 

O sociólogo francês vai mais longe: pontua que as formas de interação virtuais não fomentam relações de profundidade, "verdadeiras"; pelo contrário, estimularia aquilo que ele chama de "solidão interativa", onde a conectividade exagerada convive com uma falta de laços sociais significativos. Pontua, ainda, que a comunicação "de fato", aprofundada, é escassa nas relações virtuais, dado que esta exigiria não apenas a emissão unilateral de opiniões, como um retorno da recepção - uma resposta dos interlocutores. Nesse momento, me identifico com o pensador, já que percebo essa situação em meu próprio blog: por mais que eu publique, não consigo fomentar muita discussão entre meus leitores, que raramente comentam meus escritos. E essa é uma situação muito comum, ao menos entre os blogs menos famosos. 

Como já indiquei, contudo, não temos que mergulhar de cabeça nessas críticas nefastas sobre as relações estabelecidas pelas novas tecnologias; temos, ao contrário, que problematizá-las, retirando delas o que fizer mais sentido - e repudiando os exageros e deficiências de apreensão. Assim, é passível que crítica que o sociólogo não qualifique as relações virtuais, taxando-as, simplesmente, de "falsas" ou pouco profundas. Que espécies de relações se formam e se mantém nas redes sociais? Esse questionamento foi evitado pelo pensador (ao menos nesse texto introdutório que linquei), que parte de um conceito ideal daquilo que seria uma relação social "verdadeira" ou "profunda". Assim, as relações virtuais resumem-se a uma "não-relação", por não cumprirem os requisitos imputados pelo autor (de profundidade e constância). 

Além disso, não podemos ignorar que a difusão das novas tecnologias também acarretou em claros benefícios: hoje em dia, um blog pessoal, por exemplo, pode ter alcance global, e a informação acaba sendo muito mais difundida. É claro que essas formas de comunicação mais modernas são passíveis de críticas - boatos, preconceitos e outras informações danosas são tão ou mais espalhadas pela internet do que informações úteis -, mas o que necessitamos é de um entendimento mais aprofundado sobre as formas e conteúdos típicos desses meios. 

Trafegando pela vertente frankfurtiana, o filósofo alemão Christoph Türcke, por sua vez, analisa a sociedade contemporânea pela perspectiva da sensualidade inerente a seus mecanismos. Para ele, a sociedade do pós-guerra transformou-se em uma "sociedade da sensação", imersa em um excitamento contínuo, com efeitos similares ao das drogas.

Nesse sentido, as ferramentas tecnológicas aparecem como fonte de injeções sensuais, alienantes e entorpecentes, que inculcam em seus usuários, com toda essa "magia" hiper-real, uma relação de dependência. Diz o filósofo, em entrevista para a Folha:

Vício como fenômeno particular --como dependência física de certas substâncias (drogas)-- está modificando um fenômeno geral, pois a máquina audiovisual também vicia.

Quem presta atenção à tela se dedica a ela, vive uma dependência crescente dela, vincula suas expectativas, sua economia emocional e intelectual a ela.

Assim como o drogado aplica injeções de heroína, uma sociedade que depende da tela se expõe a bilhões de choques imagéticos.

O choque singular é mínimo, quase imperceptível e não faz mal. Bilhões, no entanto, destroem justamente a atenção que elas atraem magneticamente.

Mais uma vez, as análises ultra-ácidas sobre a tecnologia devem ser relativizadas. Manuel Castells, com suas limitações, demonstrou que a taxação do uso da internet como "vício", embora fácil, não é tão verdadeira assim; os indivíduos, para ele, não deixam de se relacionar socialmente por conta de sua imersão nos mundos virtuais. Pelo contrário, tenderiam a interagir com maior freqüência com seus amigos e familiares mais íntimos, pelo uso das ferramentas comunicativas mais recentes. 


Entre os dois analistas, um catastrófico e outro otimista, fico, novamente, com um meio-termo: o indivíduo usuário das tecnologias virtuais não está isolado do mundo, alienado de sua própria existência material; antes, está consideravelmente mais ligado a esse mundo do que no passado - ao menos em termos quantitativos, pelo número de relações e contatos estabelecidos. Por outro lado, devemos nos questionar: como o indivíduo se relaciona com seu universo, quando esse relacionamento é mediado por  novas tecnologias? Podemos simplesmente falar de uma "não-relação", ou podemos, ao contrário, explorar mais a fundo esses novos tipos de interação, sem recair em reducionismos simplistas - vinculados ora a um otimismo, ora a um pessimismo desmedidos?

Pedro Mancini

sábado, 13 de novembro de 2010

As análises rotineiras sobre o virtual: entre o catastrófico e o maravilhoso

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Mudando um pouco da temática política, hoje pretendo discutir brevemente sobre a sociabilidade nas redes sociais - e as formas mais correntes de pensá-la. Tenho peculiar interesse nesse tema, uma vez que estudo as regras de interação próprias de uma realidade virtual, o Second Life

Movido por esses interesses, assisti, no último sábado, a uma mesa de debate promovida pela Nextel, que contou com a presença de Contardo Caligaris (psicanalista), Xico Sá (escritor e jornalista) e Maria Isabel Botticcelli (executiva do site Metade Ideal). Realizado no auditório do Museu da Imagem e do Som, o debate tinha como título: "Mais do que Tecnologia, é o que Você Faz com Ela - Tecnologia e Relacionamento". Seu objetivo era tecer algumas reflexões sobre os modos como relacionamentos pessoais e amorosos se desenrolam, quando mediados por experiências tecnológicas. Ganharam destaque a sítios de relacionamento e ao uso de "sms", como formas de comunicação e estabelecimento de relações de intimidade.

Sem dúvida, o debate foi interessante, levantando considerações curiosas e importantes sobre os relacionamentos ditos virtuais. Caiu, todavia, em um pecado que vejo como corriqueiro, entre aqueles que ousam discutir a "questão tecnológica": pensando de modo maniqueísta, os debatedores concentravam-se muito mais em fazer uma defesa eufórica e acrítica da virtualidade, do que em subsidiar um debate de fato, pontuando seus prós e contras - ou, ao menos, problematizando um pouco as relações possibilitadas pelas novas tecnologias.

O debate virou, dessa forma, um espaço de divulgação das maravilhas promovidas pela tecnologia, sem grandes questionamentos a respeito de seu caráter ou da forma e conteúdo dos relacionamentos tecnologicamente mediados: cada crítica, usualmente elaborada por alguém da platéia, era imediatamente rechaçada ou compensada com um verdadeiro arsenal elogioso direcionado às interações virtuais. 


Caligaris chegou a dizer que era "preferível" findar um relacionamento via torpedo sms do que prosseguir com um relacionamento "zumbi" - sustentado artificialmente, estando "morto" em essência.  Ora, longe de mim discordar desse posicionamento, quando pensamos de modo maniqueísta, ou seja, se pensarmos que ou terminamos um relacionamento por mensagem instantânea, ou mantemos um relacionamento "zumbi". Mas, além de o mundo não ser assim, tão preto-no-branco, não basta nivelarmos por baixo para pensarmos a tecnologia: é preciso compreender o conteúdo e a forma de um relacionamento que acaba, simplesmente, com uma curta e fatal mensagem de texto. O que isso significa? O que diz sobre as relações interpessoais na contemporaneidade? No intento de repudiar os críticos desse modo de agir, deixa-se de lado respostas a tais perguntas.


O evento falhou, assim, por assumir um lado radicalizado da discussão, apegando-se a uma defesa ideológica da tecnologia em si mesma. Infelizmente, na maior parte das vezes os posicionamentos sobre o tema dividem-se entre essa espécie de "adepto entusiasmado" e aqueles "críticos apocalípticos". Os debatedores marcaram bem sua posição ao tecer críticas ao lado oposto do espectro - àqueles que "demonizam" a internet, vendo-a, tão somente, como fonte de alienação e de vários outros males sociais. Ao adotar a postura diametricamente oposta, contudo, associam-se a formas rasas e insuficientes de compreensão da tecnologia, que vemos, por exemplo, em sociólogos como Manuel Castells e em filósofos como Pierre Lévy.


É inegável que os autores mencionados pensam sobre as relações virtuais de modo inteiramente distinto - o primeiro nega, veementemente, que as interações com o computador isolem socialmente os indivíduos tecnologicamente inseridos, enquanto o segundo, muito mais entusiasmado em suas interpretações, diagnostica o advento de uma verdadeira (e positiva) revolução na sociedade, a partir de um novo nível de virtualização por ela alcançado. Ambos recaem, contudo, no equívoco do "deslumbramento" com essas novas ferramentas tecnológicas: a vêem de modo absolutamente positivo, menosprezando quaisquer críticas sobre elas. Castells, por exemplo, chega a afirmar que o uso do anonimato, por meio de personagens virtuais, restringe-se a usuários infanto-juvenis, que ainda "estariam estabelecendo suas identidades" para a vida. Ora, pelo que outros estudos - inclusive o meu - apontam, muitos adultos também utilizam-se do anonimato para interagirem socialmente; aliás, diversos sociólogos, desde a década de 1970, já assumiram que nossos identidades (se é que podemos utilizar essa alcunha) estão em contínua formação, adaptando-se aos vários ambientes de interação em que nos envolvemos; assim, os adultos não teriam uma hipotética "identidade pessoal consolidada" de uma vez por todas. O que a negação da importância das relações virtuais anônimas parece esconder, em Castells, é a possibilidade de compreender esse fenômeno de modo mais crítico e aprofundado, sem cair em um otimismo ingênuo.


É claro que as análises catastróficas são igualmente falhas; ao ressaltar apenas os aspectos negativos da virtualidade (seu caráter "alienante", "padronizador", "banal", "narcisista" ou "hiper-real", por exemplo), desprezam a necessidade de interpretar sua própria lógica de funcionamento - e de entender a mente dos próprios adeptos da tecnologia, que não a vêem do mesmo modo. Condena-se, de antemão, os modos de ação da população virtualmente inserida, sem tecer análises sobre suas representações simbólicas e sobre o conteúdo de seus relacionamentos informacionais. 


Em suma, vejo que temos um longo caminho a percorrer, quando se trata de analisar a fulminante propagação de relações virtualizadas. E o pior: o desenvolvimento frenético de novas tecnologias e formas de se comunicar, a cada ano, torna ainda mais difícil a missão de desenvolver interpretações atualizadas: o objeto de estudo avança de forma muito mais veloz do que o pobre cientista. Enquanto as análises puramente condenatórias ficam paradas no tempo, utilizando arsenais teóricos arcaicos, as formas mais apaixonadas de vislumbrar as tecnologias detém, em geral, a vantagem de pensar sobre as maiores novidades do ramo, desenvolvendo novas teorias e metodologias; o preço que pagam por essa atualização, contudo, é o abandono de interpretações melhor desenvolvidas sobre o fenômeno. Vislumbrando o horizonte, deixam de olhar com profundidade sobre o próprio entorno. Cabe aos pesquisadores futuros alcançar um ponto de equilíbrio, situado no espaço pouco explorado entre o "apocalíptico" e o "maravilhoso": um ponto de "realismo", menos imbuído de preconceitos (positivos ou negativos) sobre a sociedade dos relacionamentos virtuais.  




Pedro Mancini




quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A derrota (provisória e limitada) do radicalismo desconcertado

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O resultado das eleições não significou, simplesmente, a vitória de um projeto político sobre outro. Aliás, uma das críticas feitas à campanha do Serra foi, justamente, a respeito da ausência de um projeto político próprio. Creio que, para além disso, o resultado das urnas pode ser interpretado, parcialmente, como uma derrota relativa e provisória de um fundamentalismo moral, ideológico e até religioso acionado pelo próprio processo eleitoral, que buscou a desqualificação e demonização absolutos da candidata petista e de seus aliados. 

Essa vitória não foi absoluta, e nem pode ser simplificada como resultado de um simples embate entre um lado "razoável" e outro "radical": pautando-se em análises preconceituosas e sem fundamento sobre o adversário, militantes e simpatizantes do PT, como disse em minha última postagem, também tentaram desqualificar moralmente o candidato José Serra; esta foi uma tática generalizada durante o segundo turno eleitoral.

Mas houve diferenças importantes na adoção dos discursos radicais pelos dois: tendo progressivamente sua imagem colada à do Presidente Lula, Dilma Rousseff rapidamente ultrapassou seu rival nas intenções de voto no primeiro turno, consolidando sua liderança na disputa. Dependente da popularidade do atual Presidente, que já lhe garantiu votos suficientes para sua eleição - embora não no primeiro turno -, a candidata não precisou partir para a baixaria tanto quanto Serra; só o fez, efetivamente, como resposta aos ataques tucanos, percebendo que os últimos surtiram algum efeito (o suficiente para impedir uma vitória avassaladora do PT). Ainda assim, recorreu mais a uma apelação com argumentações políticas programáticas (como a taxação de Serra da alcunha de "privatista"), expondo a biografia política do ex-governador paulista e de seu partido, do que a uma apelação moralmente carregada sobre características pessoais do candidato. 

Partiu de José Serra, portanto, a iniciativa de se apropriar dos sentimentos mais obscuros e primários de seu eleitorado: o ódio religioso, o moralismo, o pavor desmedido e a demonização do adversário. Percebendo que não iria conquistar muitos votos se mantivesse uma associação forçada com o Governo Lula, prendendo-se aos seus sucessos, o tucano deu uma guinada violenta em sua abordagem, e passou a fuzilar o partido rival, aliando-se aos setores mais reacionários da sociedade - a TPF e outras alas religiosas radicais, como setores  evangélicos e católicos. Trouxe à tona a questão do aborto, posando de autoridade no quesito "defesa dos costumes cristãos", e aproveitou uma velha associação entre o PT, o terrorismo, e até o narcotráfico (explorada sob a figura agressiva de Índio da Costa, vice de Serra). É claro que a figura de José Dirceu, o demonizado-mor, não poderia faltar na estratégia do medo encabeçada pela campanha tucana. Os métodos de divulgação de seus ataques foram ainda mais obscuros do que seus conteúdos: e-mails e panfletos apócrifos, com ataques pessoais e manipulações de informações das mais bizonhas.Uma verdadeira campanha subterrânea.

Nos momentos finais da campanha, a sociedade esteve fortemente dividida, graças à exploração desses temas moralistas; Serra consegui arrebanhar o ódio de alguns setores, acionando um "estado de guerra" ideológico. De fato, a sociedade segmentou-se entre direita e esquerda, mas com um forte viés irracional, emotivo e moralista - em que as visões políticas de cada classe e espectro ideológico apareceram nas sombras, fundamentando, de modo muito indireto, os preconceitos morais. A desaprovação de políticas voltadas à população mais pobre foi convertida, assim, em ódio contra um partido "imoral", fisiológico, assistencialista e populista.

O tucano perdeu as eleições mesmo adotando essa estratégia, mas estabeleceu uma trincheira de resistência contra o Governo eleito - ação que o próprio tucano atribuiu a seus militantes, em seu discurso de derrota. Nessa sua rancorosa fala pós-eleitoral, ele não deixa dúvidas: continuará se portando como o baluarte da justiça, da moral e do "bem", tentando centralizar a oposição ao Governo Lula sob sua figura. Quer manter a divisão do país, estabelecida durante sua campanha agressiva, para manter-se enquanto voz política da direita.

Parte da população apoiadora da oposição ficou ainda mais raivosa com sua derrota, e esse sentimento ampliado de ódio continuará a ser explorado pelo ex-governador de São Paulo. Apenas um dia após a vitória da Dilma, proliferaram-se, inclusive, manifestações de xenofobia, primordialmente contra os nordestinos - na suposição de que eles seriam os únicos responsáveis pela vitória do PT nas urnas. Vale lembrar: Dilma ganhou com uma margem de mais de 12 milhões de votos, dos quais 10 milhões foram do NE; ou seja, ela teria ganho o processo eleitoral mesmo se desconsiderássemos todos os votos nordestinos. Aliás, mesmo se considerássemos apenas os estados do Sul e do Sudeste. Vejamos as principais manifestações xenófobas, proliferadas pelo Twitter:



Vemos, assim, que a onda de afirmações negativas deflagradas pela oposição, encabeçada por Serra desde o início da campanha eleitoral, especialmente por vias virtuais, baseia-se em preconceitos infantis e suposições falsas e incoerentes. A manipulação de informações é a base dessa estratégia: graças à distorção de dados, podemos imputar a "máscara do demônio" em nosso adversário, ao mesmo tempo em que protegemos nossa própria imagem. A rotulação de Dilma como "terrorista" é um dos exemplos mais notáveis desse fenômeno: com a manipulação de informações sobre sua participação na resistência à Ditadura Militar, a partir de dados emitidos pelo próprio regime da época, e a camuflagem do fato de o o próprio Serra ter sido classificado como terrorista e fichado pelo militares, faz com que circule a idéia de que a Dilma seja uma "criminosa" - enquanto o Serra seria um aguerrido combatente da Ditadura. Se virmos com clareza sua ficha no DOPS, contudo, não encontraremos tantas diferenças assim entre o Serra e a Dilma de antigamente - ambos vinculados à extrema esquerda, com simpatias pelo regime cubano, e ambos tratados como revolucionários perigosos pelos dirigentes do passado.


É claro que os dois participaram do movimento de resistência de modos distintos: Serra era militante do movimento estudantil e foi um dos fundadores facção esquerdista Ação Popular, com viés católico, e conquistou o cargo de presidente da UNE apoiado pelo Partido Comunista Brasileiro. Indo para o exílio após o golpe, regressou definitivamente ao país somente em 1975. Dilma, por sua vez, militou em um movimento mais aguerrido, que chegou a desenvolver ações violentas contra o Estado - a VAR Palmares .  Foi presa em 1970, torturada nos porões da Ditadura, e liberta dois anos depois. Apesar de suas diferenças, ambos os personagens que concorreram à Presidência foram classificados como "terroristas subversivos" pelo Estado - e esse fato é absolutamente desprezado pelos difamadores de Dilma, de modo que apenas a petista seja vista como extremista e vinculada ao terror político (sendo que não há nenhuma comprovação de que tenha participado diretamente de quaisquer ações armadas).

Esse radicalismo preconceituoso é que foi momentaneamente derrotado, após ter sido conjurado pelos tucanos. Como indiquei no começo, todavia, não verificamos uma derrota absoluta e inexorável desse monstro da intolerância e irracionalidade; na verdade, seria mais correto indicar que ele foi desperto durante a campanha eleitoral, e que, embora não tenha garantido a vitória daquele que o acordou, permanece ativo, mais furioso do que nunca, com a bordoada que levou das urnas. Prova disso é a já mencionada explosão xenófoba, que ainda persiste.

O radicalismo continuará, assim, armando a oposição. Mas terá de enfrentar uma força oposta tão ou mais poderosa, que prega a racionalidade e a moderação, e que saiu forte das urnas: a mesma força que resultou em um linchamento moral e jurídico dos "twiteiros" xenófobos e na aniquilação das ambições eleitorais de Serra. Pela primeira vez na história brasileira recente, o moralismo radical encontra forte resistência na sociedade: a voz da mídia não é mais absoluta e monolítica, diversificando progressivamente seus posicionamentos, e os demonizados do passado voltam de suas tumbas para se defender das acusações regressas. (Vide o caso de José Dirceu, que, após ser moralmente linchado e até levar bengaladas de um cidadão raivoso, peita de frente jornalistas do programa Roda Viva, demonstrando grande habilidade oratória e política - independentemente de seu grau de culpa nos casos mencionados.)

É claro que esse movimento, pela volta da razão e rejeição da demonização de adversários, comporta os seus próprios riscos: no caso, o favorecimento de um conformismo racional e um aumento da banalização de práticas políticas condenáveis, como a corrupção propriamente dita. Afinal, quando neutralizamos as emoções, reduzimos nossa capacidade de nos revoltarmos contra injustiças. É preciso, portanto, saber dosar as emoções, antes de querer sufocá-las, apenas; submetê-las, permanentemente, a uma revisão crítica racional, utilizando-as de acordo com nossas crenças fundamentadas, e sem nos deixarmos dominar por elas.

Acho que temos muito mais a ganhar do que a perder, se julgarmos os participantes da vida pública de modo fundamentado, analisando seus projetos políticos e visão de sociedade, sem cair em preconceitos reducionistas - ou então na armadilha de considerar os nossos representantes como uma massa homogênea (com base no preceito do "todos são iguais"). E parte fundamental desse comportamento razoável depende de um controle relativo sobre nossos impulsos, que, quando dominam as ações, nos tornam especialmente vulneráveis a manipulações de forças políticas obscuras, além de nos cegar para uma visão mais objetiva sobre os acontecimentos. Esperemos que a consciência continue a prevalecer sobre essa barbárie, apesar dos esforços teimosos de parte da oposição em utilizar sentimentos bárbaros (de ódio e pavor, principalmente) para benefício próprio, mesmo após as combativas eleições de outubro.

Pedro Mancini