O feriado do ano novo, da forma como é encarado atualmente , compõe-se como uma data simbólica típica da modernidade "reflexiva", tão bem analisada por autores como Ulrich Beck, Anthony Giddens e Scott Lash.
Nessa época, para além dos rituais tradicionais que repetimos a cada ano, somos compelidos a analisar nossa própria biografia, a rever o caminho percorrido por nossa vida durante um período circunscrito. Refletindo sobre nossas histórias de vida, seríamos mais capazes de fazer planos para o ano vindouro de forma mais informada, evitando ações e comportamentos que nos trouxeram problemas no passado e buscando, de forma inversa, novas formas de superar os desafios que, cotidianamente, nos são postos.
Trata-se de um momento, enfim, para os indivíduos exercerem uma auto-reflexividade, seguindo um movimento muito mais amplo, tanto de "reflexo" como de "reflexão", que percorre todos os níveis sociais - desde as grandes nações e os órgãos e empresas multinacionais, até os seres humanos das mais diversas classes sociais. A todos é requisitada a missão da auto-reflexão, da revisão de ações, sucessos e fracassos individuais - uma projeção sobre o futuro com base em nossa visão crítica sobre o passado.
Aproveitando esse sentido do ano novo (que, admito, sempre abracei), reflito sobre meus avanços e retrocessos nesse ano de 2009. Como o próprio blog testemunha, vivenciei um grande período de inércia intelectual, em especial entre o primeiro e o começo do segundo semestres. Enquanto escrevi 24 postagens em 2008, mantendo uma média de duas por mês, esse ano atingi a marca patética de 9 postagens (uma queda de produtividade de 62,5%), sendo que a maior parte delas (7, ou 77,7% das postagens de 2009) foram elaboradas em dezembro, ou seja, em seu período terminal.
De todo modo, acredito que após esse coma mental - e apesar dele - voltei com todo o gás nesse final de ano. Além de ter escrito mais de 50 páginas de "papers" e trabalhos finais de disciplinas da pós, o que permitiu um exercício muito positivo de meu conhecimento sociológico e capacidade de escrita e de argumentação, arranjei coragem (com a ajuda de ótimos amigos) para retomar o blog, vindo inclusive a re-elaborar suas dinâmica e estética.
Enfim, procurando não recair no "espírito workaholic" típico do estereótipo médio-classista, não acho que tenha sido um ano ruim pela falta de produtividade "bloguística". Além de ter provado minha produtividade em outros momentos, em especial na minha vida acadêmica, um pouco de amortecimento da mente é saudável, gostoso e - quem sabe? - pode até ser útil para a produtividade em si.
Aliás, a valorização atual dos momentos de descanso como "repositor de energias", mesmo no meio dos horários diários de trabalho, têm sido muito difundidas no ambiente da modernidade reflexiva - algumas multinacionais, inclusive, têm estimulado seus funcionários à tirarem uma soneca logo após o almoço.
Em um mundo que também traz muita insegurança e medo, as celebrações de fim-de-ano e seu convite à reflexão podem difundir, também, um sentimento depressivo e apavorante - espalhando, por exemplo, a sensação do tempo inexorável dominando nossas vidas, sem termos qualquer controle sobre ele. A presente responsabilização dos indivíduos pelos seus próprios destinos, vislumbrada por Beck, traz um grande desespero àqueles que encaram todos os problemas de sua vida como derivados apenas de suas ações e escolhas; é nessa medida que a reflexão proposta pelo ano novo também pode ser geradora a recuperadora de grandes frustrações, da sensação de fracasso individual resultante do revolver de momentos mais tristes do ano e de toda a vida pregressa.
Vê-se, assim, o quanto se torna difícil nos apropriarmos de forma reflexiva de nossas biografias, como requerido pela modernidade reflexiva, com um grau razoável de segurança. Quem consegue essa façanha, se esquivando minimamente dos sentimentos de fragilidade e desespero perante a vida, é obrigado a navegar pelas vicissitudes de uma sociedade contemporânea que não nos fornece lá muita segurança. Têm que encontrar essa confiança individual por si próprio, fabricá-la com os materiais que encontrar em seu caminho. E isso de forma alguma depende apenas do mero esforço pessoal (embora esse seja, mais do que nunca, fundamental), sendo, numa medida muito maior do que a usualmente considerada, fruto do contexto social e de movimentos que fogem de nosso controle mais imediato.
É. A sociedade contemporânea, realmente, é muito contraditória.
Pedro Mancini