quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Haiti e as controvérsias levantadas pelas catástrofes sociais

3 comentários:
A calamidade ocorrida no Haiti, como todas as grandes crises sociais, suscitou um número enorme de questões. Para a Sociologia, muitas vezes, é nesses momentos de extrema tensão e rompimento da normalidade que as regras e valores sociais se revelam, desnudos de adornos e distorções.

Para além dos absurdos proferidos pelo cônsul do Haiti no Brasil, já bastante difundidos (http://www.youtube.com/watch?v=_K5lBkDcYf8), aponto para outras questões levantadas pela catástrofe. Já contestam, por exemplo, a real finalidade dos Estados Unidos e até mesmo do Brasil no que tange ao envio e manutenção de tropas no Haiti destruído (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4521). Segundo esses críticos, se trata, para além de uma ajuda humanitária, de uma ocupação militar pouco engajada com uma reconstrução real do país.

Outra questão, percebida por pessoas do Twitter e de meios de comunicação mais alternativos, é a desigualdade, ao menos inicial, na consideração das vítimas da catástrofe.

É realmente incrível como os grandes meios de comunicação valorizaram muito mais, nos primeiros dias após o terremoto, a perda da vida da fundadora da Pastoral da Criança, a brasileira Zilda Arns, do que de milhares de haitianos. Por alguns momentos (felizmente, parece que agora as atenções se voltaram definitivamente à destruição do país e da condição de vida da população haitiana em geral) a tragédia se resumia, em grande parte, à morte de Agnes.

Obviamente, a explicação para essa valorização extrema de UMA morte em meio a dezenas de milhares não pode se resumir ao senso de comunidade compartilhado pelos brasileiros - a morte de militares do Brasil no Haiti também causou certo impacto, mas menor do que a morte da filantropa. Lembro-me, a título de exemplo, que o governo Lula foi criticado por não decretar luto oficial nacional - mais uma vez, não por causa dos incontáveis haitianos prejudicados pela catástrofe, mas apenas pela morte dessa bondosa senhora.


Antes que digam qualquer coisa sobre a biografia de Agnes, não coloco isso em discussão. Aparentemente, era alguém de fato de muito valor, que dedicou sua vida à melhora da condição de vida de crianças desfavorecidas. Mas a questão, como sempre, não é essa; o que me atormenta é o impacto simbólico da morte de uma pessoa moralmente valorizada, em relação a um impacto inicial infimamente proporcional de cada haitiano. Parece que a "certeza" da bondade de uma filantropa (que preenche um perfil muito valorizado em nossa cultura, da boa velhinha rica e de cultura que ajuda os pobres e desamparados) tem muito mais peso do que o desconhecimento sobre a massa haitiana. O que me faz lembrar a política militar de Israel, que age como se a vida de cada soldado de seu país valesse mais do que a vida de - no mínimo - dez ou vinte civis palestinos.

Fica difícil não concordar com mais uma postagem provocativa do blog "The Classe Media Way of Life"(http://classemediawayoflife.blogspot.com/2010/01/dica-040-ficar-chocado-quando-um-rico.html), lançada antes mesmo do terremoto: morte de pobre é corriqueira, morte de rico e gente "importante" é uma calamidade, "tragédia que abalou a família brasileira". Se Zilda Agnes realmente correspondia à imagem que o Brasil a respeito dela, não acredito que ela estaria satisfeita.

Como nos mostra o exemplo israelense, é claro que uma valorização desigual da vida não é própria da sociedade brasileira. Mesmo os EUA, auto-proclamados líderes da bandeira democrática e da igualdade de direitos, utiliza o termo "VIP" (Very Important People) para designar aqueles que são vistos como "mais valiosos" do que o resto da população. No Brasil essa desigualdade simbólica também é gritante, influenciada pelo esqueleto estratificado de nossa cultura e camuflado por um suposto caráter liberal e democrático de nossas instituições (hipocrisia esta muito bem notada por Roberto DaMatta, em "Carnavais, Malandros e Heróis").


Mas para não terminar a postagem de modo totalmente negativista, ressalto a afirmação de que essa desigualdade de tratamento, no tocante às vítimas do terremoto do Haiti, parece ter sido reduzida dias após a tragédia. Reportagens atuais já focam muito mais para a vida dos dos milhões de sobreviventes desabrigados em meio a um oceano de cadáveres. Pena que essa nova ênfase pode muito bem estar relacionada à tentativa de legitimiação de uma ocupação militar perpétua do Haiti, seja pela ONU (emcabeçada por nós), seja pelo velho exército americano de sempre.

Ops! "Negativei" de novo.

Pedro Mancini

domingo, 17 de janeiro de 2010

Sobre a postagem anterior: indicação de leitura

Nenhum comentário:
Sobre a síndrome da personalidade esquizóide, não poderia deixar de citar a obra que me serviu de referência: "O eu dividido", de Robert Laing, forneceu-me todos os subsídios para escrever a última postagem.

Trata-se de um livro recomendadíssimo, muito útil para uma vinculação entre o espectro da Psicologia e o da Sociologia. Não é à toa que sociólogos contemporâneos de peso, como o inglês Anthony Giddens, também beberam dessa fonte, no desenvolvimento de teorias sobre um período histórico em que indivíduo e estrutura social estão extremamente embricados.

Pedro Mancini

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A sociedade contemporânea e a personalidade esquizóide

4 comentários:
Vivemos numa sociedade que faz muitas exigências aos indivíduos, causando-lhes, com freqüência, sensações de profunda ansiedade e insegurança. Essas múltiplas demandas são, muitas vezes, contraditórias, tornando seu impacto sobre os homens ainda mais problemático: ao mesmo tempo, por exemplo, que somos solicitados a nos manter minimamente coesos, tendo uma só personalidade, convivemos com ambientes cada vez mais diversificados que exigem, por sua vez, representações de papéis particulares. Temos que ser filhos, pais, irmãos, amigos, namorados, trabalhadores, entre muitas outras coisas e, concomitantemente, ser "a mesma pessoa", controlar nossos impulsos e emoções, e agir de modo aparentemente racional.

Essas exigências, derivadas de uma sociedade amplamente individualizada e racionalizada, podem causar verdadeiras rupturas na identidade de alguns indivíduos, que não suportam o peso das dinâmicas contemporâneas. Entre as reações defensivas que uma pessoa pode adotar, inconscientemente, para se proteger da insegurança derivada das exigências contraditórias da sociedade atual, destaco, nessa postagem, a possibilidade da cisão da personalidade, a ser melhor definida nas linhas que se seguem.

Não é à toa que, para a psicanálise, as patologias psicológicas mais típicas da atualidade, para além do narcisismo e da egolatria, são a esquizofrenia e o transtorno da personalidade esquizóide. Todas essas patologias, fortemente favorecidas pela hiper-individualização contemporânea, relacionam-se com a defesa de um self enfraquecido pelas pressões sociais, mergulhado em uma busca, em seu interior, por um eu “verdadeiro".

Enquanto o ególatra se compromete em manter uma imagem exagerada de si para os outros, e o narcisista só enxerga o mundo sob a lente de sua própria imagem e interesses, o esquizofrênico e o esquizóide escondem-se em suas fantasias. No caso do esquizóide, o self é cindido entre um"eu" visto como verdadeiro, autêntico, espontâneo e criativo (e, muitas vezes, extraordinário e poderoso, com características ou muito boas, ou muito más - alguém que se acha deveras inteligente, ou perigoso, em seu interior), que só o próprio indivíduo conhece, e um "eu falso" - aquele preocupado com a aceitação social, comprometido com as representações da vida cotidiana, agindo de modo mecânico para agradar a sociedade e realizar as tarefas do dia-a-dia que lhe são exigidas.

A sociedade é vista por ele com medo e desprezo, considerada fria, sem graça, desprovida de magia e de significado. O mergulho num universo íntimo de imaginação não seria, nesse sentido, mais do que uma forma de re-encantar um mundo desencantado pela burocratização e pela saturação social. Cumpriria, assim, o mesmo papel que um esporte radical ou uma ida ao Shopping Center (ler últimas postagens), ativando sensações mais brutas e instintivas que acarretariam em uma efêmera e provisória sensação de liberdade e controle sobre si (beirando, por vezes, a uma sensação de megalomania).

Vamos a exemplos mais práticos sobre essas possibilidades de cisão do Eu, que escapam da mera perspectiva de patologias psíquicas. De fato, problemáticas da "dupla personalidade", da "identidade secreta", entre outras, têm sido muito exploradas pela própria mídia televisiva. Os contos contemporâneos estão cheios de personagens que se escondem por detrás de máscaras, ou que se separam entre um eu "verdadeiro" e um "falso". De super-heróis a serial killers, o problema da divisão entre múltiplos "eus" têm sido apropriado de formas diversas. Muitas vezes, essa questão é interpretada sob a ótica de dicotomia falso/real: O filme Avatar aparece, aqui, como o último exemplo cinematográfico que levanta a discussão de uma dupla identidade, e sobre qual delas deve ser vista como "verdadeira" e dotada de significado e qual, em contrapartida, seria fútil e banal, merecendo o abandono.

Acredito que muitos de nós conheçamos, ainda, exemplos de pessoas cujas personalidades possam ser classificadas como mais ou menos próximas das noções de esquizofrenia e da síndrome da personalidade esquizóide.

O ex-namorado de uma grande conhecida é um modelo útil para esse caso. Perante a sociedade, a pessoa em questão demonstrava ser muito tímida e reservada: parecia, mais do que isso, estar sempre desconfortável, como se calculando mecanicamente cada uma de suas ações em público. A própria namorada, posteriormente, revelou que ela mesma não sabia o que passava na cabeça do amante, em muitas situações do dia-a-dia.

Em seu interior, contudo, ele detinha hábitos secretos aos olhos conhecidos – que, no caso considerado, revelavam uma grande imaturidade e confusão identitárias. Aparentemente, apenas conseguia se realizar por meio dessas ações secretas consigo próprio, e não pelo contato com o resto do mundo: sua intimidade constituía-se como um refúgio de prazer, permanentemente ameaçado pelo contato com o mundo “real”, com pessoas concretas.

O indivíduo considerado foi vítima de outra característica típica do esquizóide: por mais que tenha medo e aversão a relacionamentos profundos, lá no fundo eles almejam relacionar-se, escapar de sua condição de isolamento e alienação. Por vezes, o meio encontrado para possibilitar essa relação é arrastar outras pessoas para seu mundinho de fantasias – uma namorada que mantivesse seus segredos a salvo, por exemplo.

No decorrer do namoro, foi, aos poucos, revelando seu lado obscuro, por assim dizer (sem qualquer julgamento moralista de minha parte). A partir daí, o relacionamento desabou: afinal, não é qualquer um que está disposto a mergulhar no mundo de fantasia de um esquizóide. Esse mundo só têm significado para seu criador, estando, por vezes, muito além da compreensão de indivíduos de fora – ao menos, para as pessoas mais conhecidas do sujeito.

O que resta para o esquizóide dessa espécie, fracassada sua tentativa de englobar outra pessoa em suas fantasias infantis, é a continuação de seu drama anterior: continuar vagando sozinho pelo mundo, representando papéis artificiais e buscando, ao mesmo tempo, uma alma que possa compreendê-lo e resgatá-lo de sua bolha entorpecente.

Esse é um de muitos frutos que podem germinar em um terreno fertilizado pela contemporaneidade. Condenando os indivíduos a se responsabilizarem totalmente por suas existências, a sociedade atual difunde igualmente uma insegurança que nos faz agarrar, com freqüência, a hábitos compulsivos e identidades defensivamente formadas, que, mesmo precariamente, nos fornecem uma sensação de relativa segurança. Comportamentos compulsivos, por exemplo, já trazem uma segurança pelo seu caráter repetitivo em uma sociedade cuja principal regra é a da perpétua e incontrolável mudança.

Pedro Mancini