A calamidade ocorrida no Haiti, como todas as grandes crises sociais, suscitou um número enorme de questões. Para a Sociologia, muitas vezes, é nesses momentos de extrema tensão e rompimento da normalidade que as regras e valores sociais se revelam, desnudos de adornos e distorções.
Para além dos absurdos proferidos pelo cônsul do Haiti no Brasil, já bastante difundidos (http://www.youtube.com/watch?v=_K5lBkDcYf8), aponto para outras questões levantadas pela catástrofe. Já contestam, por exemplo, a real finalidade dos Estados Unidos e até mesmo do Brasil no que tange ao envio e manutenção de tropas no Haiti destruído (http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4521). Segundo esses críticos, se trata, para além de uma ajuda humanitária, de uma ocupação militar pouco engajada com uma reconstrução real do país.
Outra questão, percebida por pessoas do Twitter e de meios de comunicação mais alternativos, é a desigualdade, ao menos inicial, na consideração das vítimas da catástrofe.
É realmente incrível como os grandes meios de comunicação valorizaram muito mais, nos primeiros dias após o terremoto, a perda da vida da fundadora da Pastoral da Criança, a brasileira Zilda Arns, do que de milhares de haitianos. Por alguns momentos (felizmente, parece que agora as atenções se voltaram definitivamente à destruição do país e da condição de vida da população haitiana em geral) a tragédia se resumia, em grande parte, à morte de Agnes.
Obviamente, a explicação para essa valorização extrema de UMA morte em meio a dezenas de milhares não pode se resumir ao senso de comunidade compartilhado pelos brasileiros - a morte de militares do Brasil no Haiti também causou certo impacto, mas menor do que a morte da filantropa. Lembro-me, a título de exemplo, que o governo Lula foi criticado por não decretar luto oficial nacional - mais uma vez, não por causa dos incontáveis haitianos prejudicados pela catástrofe, mas apenas pela morte dessa bondosa senhora.
Antes que digam qualquer coisa sobre a biografia de Agnes, não coloco isso em discussão. Aparentemente, era alguém de fato de muito valor, que dedicou sua vida à melhora da condição de vida de crianças desfavorecidas. Mas a questão, como sempre, não é essa; o que me atormenta é o impacto simbólico da morte de uma pessoa moralmente valorizada, em relação a um impacto inicial infimamente proporcional de cada haitiano. Parece que a "certeza" da bondade de uma filantropa (que preenche um perfil muito valorizado em nossa cultura, da boa velhinha rica e de cultura que ajuda os pobres e desamparados) tem muito mais peso do que o desconhecimento sobre a massa haitiana. O que me faz lembrar a política militar de Israel, que age como se a vida de cada soldado de seu país valesse mais do que a vida de - no mínimo - dez ou vinte civis palestinos.
Fica difícil não concordar com mais uma postagem provocativa do blog "The Classe Media Way of Life"(http://classemediawayoflife.blogspot.com/2010/01/dica-040-ficar-chocado-quando-um-rico.html), lançada antes mesmo do terremoto: morte de pobre é corriqueira, morte de rico e gente "importante" é uma calamidade, "tragédia que abalou a família brasileira". Se Zilda Agnes realmente correspondia à imagem que o Brasil a respeito dela, não acredito que ela estaria satisfeita.
Como nos mostra o exemplo israelense, é claro que uma valorização desigual da vida não é própria da sociedade brasileira. Mesmo os EUA, auto-proclamados líderes da bandeira democrática e da igualdade de direitos, utiliza o termo "VIP" (Very Important People) para designar aqueles que são vistos como "mais valiosos" do que o resto da população. No Brasil essa desigualdade simbólica também é gritante, influenciada pelo esqueleto estratificado de nossa cultura e camuflado por um suposto caráter liberal e democrático de nossas instituições (hipocrisia esta muito bem notada por Roberto DaMatta, em "Carnavais, Malandros e Heróis").
Mas para não terminar a postagem de modo totalmente negativista, ressalto a afirmação de que essa desigualdade de tratamento, no tocante às vítimas do terremoto do Haiti, parece ter sido reduzida dias após a tragédia. Reportagens atuais já focam muito mais para a vida dos dos milhões de sobreviventes desabrigados em meio a um oceano de cadáveres. Pena que essa nova ênfase pode muito bem estar relacionada à tentativa de legitimiação de uma ocupação militar perpétua do Haiti, seja pela ONU (emcabeçada por nós), seja pelo velho exército americano de sempre.
Ops! "Negativei" de novo.
Pedro Mancini