domingo, 29 de julho de 2012

A importância do sofrimento para o amadurecimento pessoal

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Aqui estou eu para, mais uma vez, escrever sobre um assunto bem abrangente: a importância do sofrimento para o amadurecimento individual. Tive essa ideia após passar, eu mesmo, por um período de perdas consideráveis em minha esfera pessoal. Tenho plena consciência de que terei momentos muito mais difíceis que esse, mas também sei o quanto dores como as que eu passei estavam fazendo falta em minha vida.

É claro que, em geral (com a interessante exceção dos masoquistas), ninguém gosta de sofrer. Vivemos, em grande parte, evitando ao máximo sentir qualquer espécie de dor. Basta que afastemos um pouco o olhar para percebermos, porém, o papel construtivo que o sofrimento pode assumir para a trajetória biográfica daqueles que sofrem.

O que é o sofrimento? Para além da mera dor física ou emocional, é a sensação de que perdemos algo, às vezes de modo irremediável. É a percepção de que perdemos o controle de algo que nos era caro, que tínhamos como certo, garantido, inabalável. É a admissão de nossa impotência e do caráter efêmero da vida, que escapa de nossas mais prepotentes (e inconscientes) ilusões de controle sobre aquilo que, na verdade, é muito mais incontrolável do que poderíamos admitir.

Aquele que foge do sofrimento, e de certa forma é bem sucedido na arte de evitá-lo, está somente seguindo um instinto infantil de autopreservação. Podemos continuar adotando essa atitude por muito tempo, mas a verdade é que a dor é um processo inevitável - embora relativamente adiável - de nossa formação. Como seres humanos, temos o trágico hábito de nos apegar a objetos, ideias e outros seres de modo intenso, de entregarmos nossa alma em busca do acalanto perdido quando nossa progenitora nos expeliu de seu corpo.  Iludimo-nos, então, acreditando que tudo aquilo a que nos apegamos é eterno, indestrutível, e que está sob nosso irrestrito controle. Iludimo-nos de que não corremos o risco de perder o que amamos.

É claro que, racionalmente, isso pode parecer absurdo. Sabemos, conscientemente, que tudo possui uma "data de validade", uma chance de se esfarelar perante nossos olhos. Mas quem dera fôssemos seres absolutamente racionais! Percebo, hoje, o quanto essa carapaça de "racionalidade" que nos cerca não passa, em muitos sentidos, disso - uma mera carapaça, obscurecendo nossa natureza altamente irracional. Por mais que nos convençamos de que nossa razão é o farol que orienta nossas ações, somos movidos (e reinados) por muitas outras forças internas, obscuras e fora desse "controle" que tanto visamos.

Mas voltemos ao assunto em pauta. Eis que a vida, consciente de sua crueldade, acaba por revelar o nosso erro, e o sofrimento intenso acaba por nos acometer. Que desgraça! Sangramos, sentimos, temos nossos mundos totalmente abalados - como o bebê que perde, repentinamente, o conforto uterino. Como pensar no lado positivo de toda essa dor??



A mágica reside no fato de que, ao convencer-nos de nossa impotência em preservar aquilo que nos é precioso, o sofrimento nos fornece a chance de encarar a vida de modo mais intenso e maduro. Tendemos a nos tornar mais infelizes, é verdade - afinal, estamos fadados a nos conformar ao fato de que, mais cedo ou mais tarde, perderemos contato com tudo que nos torna felizes - mas essa consciência nos faz cultivar de modo mais significativo o apego a esses bens tão efêmeros. Convencidos de que perderemos as coisas que amamos, lutamos mais para preservá-las e para cultivar nossa relação com elas - antes que seja tarde demais e nos tornemos ainda mais infelizes pela culpa de não termos aproveitado o bastante aquilo que, já sabíamos, acabaria por nos abandonar no final.

Nítidos de nossa impotência, também desconfio que somos mais capazes de enxergar as outros coisas e pessoas por si próprias- e não como uma mera extensão de nossos desejos, de nosso mundo particular. Conscientes de que tudo, no final, é efêmero e escapa de nosso controle, tendemos a admitir que todas as coisas possuem um movimento próprio, autônomo daquilo que gostaríamos que fossem. Somos capazes, então, de adotar uma postura geral mais "humilde", admitindo que o mundo se move independentemente - e muitas vezes contrário - à nossa vontade. Em suma, o sofrimento é capaz de nos abrir os olhos para a natureza múltipla e inconstante da realidade.

É claro que não se trata de um movimento universal inevitável - nem todos tiram lições significativas do sofrimento. Mas acredito se tratar de uma tendência e de uma (dolorosa) oportunidade de crescimento. Não é fácil abrir mão da felicidade trazida pela ilusão do controle sobre a vida - mas somente com esse abandono tornamo-nos indivíduos minimamente maduros, conscientes de nossas limitações e capazes de perceber o "outro" em sua especificidade. Enquanto somos abraçados pelo conforto dessa ilusão uterina, de um mundo sem dores, não passamos de infantes presos a uma relação narcisista. Pré-indivíduos felizes, embora incapazes de admitir nossa incompreensão face as sutilezas da vida.

Pedro Mancini



segunda-feira, 9 de julho de 2012

A "luta do século" da sociedade do espetáculo

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Na madrugada entre sábado e domingo, ocorreu aquela que foi considerada a "luta do século" da UFC, o torneio mundial de lutas marciais mistas. Nela, o "herói brasileiro" Anderson Silva (vulgo "Spider") enfrentou o seu "arquirival" americano, o sociólogo (!) de Oregon Chael Sonnen, que teria sido o lutador mais próximo de vencer Silva em uma luta dois anos antrás. Mas, como leigo evidente no assunto, não estou aqui para discutir os acontecimentos de ontem em si mesmos, com as especificidades das técnicas de luta empregadas por ambos os lutadores. Antes, gostaria de colocar em debate a importância simbólica que foi conferida a esse embate pelo mundo - e, em especial, no Brasil.

O que mais me surpreendeu no evento esportivo de ontem foi sua capacidade de mobilização do público nacional. Mesmo aqueles que não se dizem fãs desse tipo de luta fizeram questão de abrir mão de seu sono para assistir o embate. No Facebook, vários contatos expuseram suas expectativas, tento alguns deles arquitetado encontros entre amigos para acompanhar os pontapés ao vivo pela televisão. Mas qual seria a explicação para tamanha atenção a esse esporte, da noite para o dia?

A mídia cobriu os eventos anteriores à luta com rigor. Sonnen, considerado um "fanfarrão", pode ser tido como um representante vivo da ideologia mega-competitiva americana, com seu subsequente estímulo ao orgulho pessoal e nacional: arrogante, transmitiu a típica imagem do "malvado metido à besta", que "fala mais que a boca", ou "fala muito e faz pouco"; o mimado alienado do país do Primeiro Mundo, pronto para pisar em qualquer um que cruzar a sua escalada ambiciosa pelo estrelato. O lutador provocou Anderson Silva em toda oportunidade que teve, de forma aberta e direta. Chegou a afirmar que "passaria a mão na bunda" da esposa do brasileiro e que a mandaria fritar um bife para saciar sua gula

Anderson, por sua vez, encarnou a imagem típica do "herói", o "bom moço" do Terceiro Mundo que apareceria para "calar a boca" do americano, mas apresentando grande "humildade" e um "espírito zen" a gerar inveja até a alguns monges budistas. Ao contrário de Sonnen, o "Spider" era mais do tipo que "fazia" antes de ficar só "falando". Sobre suas costas, ainda estava todo o orgulho de uma nação, diretamente afrontada pelo lutador-fanfarrão (Sonnen havia zombado da pobreza do Brasil durante uma de suas provocações ao brasileiro); Anderson deveria "limpar a honra ferida" do país. Um grande espetáculo estava sendo armado desde semanas antes da luta, como se fortes emoções (de ódio, inveja, vingança, amor à pátria) brotassem espontaneamente entre os envolvidos quando, na realidade, haviam sido meticulosamente planejas e manufaturadas para agregar telespectadores, patrocínios e - enfim - dinheiro, muito dinheiro.

Antes e prosseguir, resta uma colocação: é claro que  a figura do "herói nacional" nunca pode permanecer, no Brasil, apenas na esfera da "bom-mocidade" exagerada. Um bondoso pode rapidamente ser taxado de "trouxa", de "otário", por deixar os outros pisarem em sua honra. Assim, Silva, provavelmente orientado por excelentes agentes, também fez questão de colocar mais "lenha na fogueira" nas disputas simbólicas com Sonnen, negando o caráter "trouxa" de sua personalidade: respondeu às provocações e, na rádio, prometeu quebrar todos os dentes do rival, ensinando-o, assim, a ter mais respeito por tudo e todos. Por fim, chegou a dar uma leve ombrada na face do rival, no clássico ritual da "foto com encarada" entre os lutadores. Anderson ganhava, assim, mais alguns milhares de fãs brasileiros até então hesitantes em se tornar espectadores desse esporte.

Eis, enfim, o meu ponto com a postagem de hoje: o imensurável poder de persuação de uma "sociedade do espetáculo" que, por meio de diversos mecanismos, consegue hipnotizar uma grande massa de espectadores, seduzindo-os de modo altamente eficaz, com uma profundidade e abrangência supreendentes. Assim, as mais pacíficas almas sentiram-se na obrigação moral de assistir, ao menos por uma noite, um dos esportes mais violentos da atualidade, persuadidos por emoções das mais primárias, diretamente provocadas pelo teatro midiático protagonizado pelos lutadores: ódio ao rival, patriotismo distorcido, medo de humilhação, orgulho, dentre outras. As estúpidas - mas de certo modo geniais - provocações de Sonnen cumpriram seu papel: atingiram a grande massa brasileira e garantiram um público massivo aos canais de televisão que transmitiram a contenda. Aposto que, por mais que tenha apanhado, Sonnen também saiu vitorioso desse confronto épico, assim como todas as outras partes diretamente envolvidas: a UFC, Anderson, os agentes, os patrocinadores da luta, apostadores, as redes de transmissão, e muitos outros. E, é claro, os próprios brasileiros ganharam uma boa desculpa para reunir os amigos e acumular, por alguns minutos e de modo osmótico, doses moderadas de adrenalina passiva. 

O desfecho da luta favorece meus argumentos; no final, nada tão surpreendente aconteceu. O malvado perdeu. O herói nacional ganhou. O melhor - e mais previsível - resultado ideológico nesse tipo de espetáculo meticulosamente arquitetado. O homem "dedicado", "zen", "sofredor" e "popular" venceu o "arrogante do Primeiro Mundo", capaz de qualquer ação monstruosa para adquirir o sucesso imediato. A luta pode ter sido mais "real" do que as velhas lutas-livre, mas os personagens são os mesmos, assim como o elevado poder de persuasão sobre os telespectadores, presos por relações de afeto e desafeto com os heróis e vilões do ringue. Anderson não fez Sonnen "engolir todos os dentes", pois isso feriria a própria lógica institucional a que está submetido. No fim, portanto, a fala na rádio e a "ombrada" na pesagem não passaram de provocações meramente simbólicas, ao invés de se constituírem como promessas a serem concretizadas - tanto que a única (e, mais uma vez, bem pensada) atitude de Anderson Silva após a luta foi a de pedir aplausos para seu rival, dando-lhe uma sutil alfinetada verbal. Mais uma vez, o ídolo se consolidava em moldes profundamente "brazucas": trabalhador, disciplinado, mas meio "malandro", "tirador de onda". Taí o o irônico convite para o churrasco que não me deixa mentir.

E um brinde à mais uma vitória esplêndida... da sociedade do espetáculo. 

Pedro Mancini