sexta-feira, 26 de março de 2010

A conformação dos sub proletários

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São frequentes as situações em que me surpreendo com a grande apatia que atinge boa parte da população metropolitana de São Paulo. Simplesmente não consigo entender como as pessoas suportam viver nessa cidade,  viajando em ônibus lotados por várias regiões, todos os dias. Aguentando os horrores do tráfego, especialmente nos dias de chuva, e quando das constantes quedas de carretas em rodovias (e muitos outros acidentes diários). Isso sem contar, é claro, várias outras situações desesperadoras, como a falta de acesso a serviços públicos essenciais, insegurança, enchentes, condições precárias de moradia, educação e saúde, etc.


Nos meus vícios burgueses de pensamento, questiono, quando me sentindo uma salsicha em conserva na condução, em um trânsito totalmente parado: "Pôxa, por que esse pessoal não se revolta? Por que não sai às ruas, exigindo condições MÍNIMAS de sobrevivência, para que não se estresse mais na viagem de ida e volta ao trabalho, do que no próprio trabalho?" E concluo que o nosso sistema é tão opressivo, que arranca qualquer vontade de ação da grande massa dos trabalhadores urbanos mais vulneráveis. 

Pois bem. Dia desses, na USP, assisti um debate muito interessante, a respeito de um novo artigo do ilustre ex-porta voz da República, André Singer, intitulado: "As raízes ideológicas e sociais do Lulismo", com a presença do próprio autor, que me ajudou a desenvolver melhores reflexões sobre o tema. A despeito de suas análises sobre o Governo Lula, o que mais marcou em sua fala, para mim, foi sua interpretação a respeito da aversão da grande massa (daquilo que ele chamou de "sub-proletariado", resgatando interpretações marxistas), à qualquer forma direta de confrontação política.

Segundo essa idéia, os componentes desse sub-proletariado, que abrangeria uma série de tipos sociais como desempregados, trabalhadores informais, sub-empregados e micro comerciantes, como camelôs, dentre outros, são por demais vulneráveis para poderem arriscar as condições mínimas que já conquistaram. Assim, os sub-empregados, por exemplo, sem contarem com sindicatos ou outras forças de proteção coletiva, ficam à mercê de seus patrões de uma forma muito mais clara do que um empregado estável e sindicalizado, que possui instrumentos bem arquitetados de luta social ao dispor de sua categoria profissional.

Desse modo, os sub-proletários percebem que ganham muito mais negociando e barganhando com seus patrões, do que enfrentando diretamente as formas de autoridade que os circundam -- inclusive nosso Estado que, como sabemos, assume um caráter particularmente repressivo quando lida com movimentos sociais que possuem pouco capital social e político. Viria daí o espírito conciliatório dessa massa de sub-empregados de nosso capitalismo periférico sub-desenvolvido, que muitos atribuem a um "conservadorismo" particular.

Acredito, então, que podemos generalizar essa situação típica dos sub-proletários para outros aspectos de sua existência, como a falta de reações mais enfáticas contra situações desesperadoras, tais como as já apontadas: trânsito, baixas condições de moradia, falta de qualidade e acesso a serviços públicos essenciais, entre muitas outras. Antes de ser uma atitude conservadora - pois, acredito eu, esse pessoal QUER melhorar de vida e luta para isso -, trata-se de um comportamento cauteloso, adotado pela população mais fragilizada e vulnerável à ações punitivas seja do Estado, seja do mercado de trabalho a que está submetida.

Segundo Singer, as políticas sociais nas quais o Governo Lula investiu tendem a reverter essa situação, na medida em que melhoraram as condições de vida das classes menos favorecidas (a multidão componente das classes "D" e "E" que passaram à chamada classe "C"), inserindo-as, em massa, no mercado de trabalho formal. Se essa ascensão social se reverter, de fato, em uma situação de maior proteção social a  esses trabalhadores, com a sindicalização em massa e maior estabilidade profissional, por exemplo, acredito, como André Singer especula, que poderá haver um acirramento da luta de classes no Brasil (com relação a um aumento da luta institucional por melhores condições, é bom dizer, e não com perspectivas de uma revolução marxista -- como, por incrível que pareça, muitos ainda acreditam ser possível nos anos vindouros!). Porém, mesmo com todo meu otimismo, custo a acreditar que isso ocorra tão cedo, se considerarmos que não podemos desprezar a contínua difusão de mecanismos neoliberais de controle sobre mercado de trabalho, como a terceirização e a criminalização dos movimentos sociais, que continuam a fragilizar a classe trabalhadora de forma absoluta e inquestionável.

Pedro Mancini

sábado, 20 de março de 2010

Big Brother e os machismos camuflados de cada dia

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Pois é. Com tantos assuntos dignos de comentário nessa semana, como o trágico assassinato de Glauco e as representações sociais criadas para compreender a mente de seu assassino, escolhi discutir as banalidades do "espetaculoso" Big Brother Brasil. Isso porque percebi uma série de mensagens machistas camufladas em alguns de seus acontecimentos mais... "importantes".

Como bem sabe quem me conhece, não costumo assistir ao BBB - embora, impossível negar, sempre tento me manter informado, de forma indireta, das maiores polêmicas por ele geradas, como um interessado crítico da sociedade contemporânea. É óbvio que se trata de uma fonte riquíssima de fatos e representações reveladoreas de nossa sociedade. 

Atualmente, foi bastante difundido o caso do preconceito sexual inculcado em um tal de Dourado e em meio a sua torcida pessoal. Mas esse rapaz é um alvo fácil demais... até Pedro Bial já percebeu sua óbvia homofobia,  expressa, entre outras declarações, pela brilhante constatação de que "apenas gays contraem AIDS". Como disse, não quero chutar alguém que já está sendo tão linchado (e, ao mesmo tempo, tão defendido por homofóbicos de toda espécie).

Ao invés disso, reflito a respeito de demonstrações menos óbvias, mais cínicas e disseminadas de machismo no programa televisivo. O que me chamou a atenção para essa abordagem, em especial, foi a provocadora capa da nova edição da Revista Playboy, mostrando a ex-BBB Tessália com o rosto molhado, em uma clara apologia à sua "atuação" no Big Brother. Para quem não sabe, a garota ficou marcada (e muitos a isso atribuem sua saída do BBB) por, supostamente, praticar sexo oral em seu companheiro de casa, o também ex-BBB Michel, por baixo dos lençóis. 


A partir desse momento, a figura da Tessália passou a ser automaticamente associada a "boquete", a ponto de "fazer uma Tessália" se tornar um sinônimo bem humorado de tal prática. Como se não bastasse, ela ficou MAL VISTA por alegrar o seu colega, enquanto o último, pelo pouco que vi durante sua eliminação, ficou marcado apenas como um "grande amigo" do BBB. Em nossa sociedade machista, afinal de contas, o homem que "recebe" prazeres de uma mulher é um "fodão" ou um sortudo, enquando a mulher que fornece tais prazeres (mais ainda por tê-lo feito em rede nacional), é simplesmente uma vagabunda.

E isso tudo, apesar de Michel, o "sortudo" haver traído sua namorada fora do BBB, enquanto Tessália era SOLTEIRA fora da casa - logo, não devendo fidelidade a ninguém de fora. Como é possível notar, tais circunstâncias não fizeram muita diferença na hora de associá-la à figura de puta boqueteira, enquanto, por sua vez, não fez com que Michel fosse associado à figura de um traidor ou um "puto".

Por fim, ainda assistindo à eliminação do "sortudo" Michel, o "amigão", também notei o machismo do próprio Bial, que logo contou ao primeiro que sua namorada, nada contente com a traição de seu parceiro, "não tardou a posar semi-nua para uma revista". Ora, o tom de voz de Bial deixou bem claro, ao menos para minha cabecinha poluída, o seu desprezo pela atuação dessa ex-namorada, vista como "aproveitadora" da situação de traição de seu namorado.

Mais uma vez, só a mulher é vista como puta barata, traidora, vulgar, etc. O garotão é visto como "vítima" de uma namorada que não só não o compreendia, como, no fundo, era uma "vagabunda" em busca de fama e fortuna. Ora, e o que seria Michel, recebendo boquete de uma colega de casa, com sua namorada do lado de fora, possivelmente assistindo a cena em pay-per-view????

Para piorar mais ainda, o fato de as próprias vítimas se aproveitarem de sua má fama para cultivar sucesso faz com que os machistas em geral justifiquem sua posição. Isso vale tanto para Tessália, que aceitou explorar sua fama de boqueteira na Playboy, quanto para outros casos, como a da "Geyse da Uniban" - cuja super exposição posterior, na mídia, só serviu para que os machistas que as xingaram na faculdade dissessem, orgulhosos: "Tá vendo?? Olha só como ela realmente é uma puta!!!""

Bem, embora eu discorde que mulheres como Tessália e Geyse decidam encaixar-se no estereótipo para elas criado, passando, aos olhos do público, a se reduzirem às suas ações mais polêmicas, isso não pode ser utilizado, de forma alguma, para justificar qualquer espécie de machismo. Uma mulher tem todo o direito de transar ou de se vestir como queira, dentro de limites extremamente flexíveis, e isso não deve contar para definir toda a sua personalidade, reduzindo-a a um estereótipo vulgar.

Pedro Mancini


quarta-feira, 10 de março de 2010

Minhas experiências no Carnval 2010 - Parte II

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Sei que o Carnaval já passou há um tempo e que o assunto que irei tratar, a princípio, está meio batido, mas, mesmo assim, vou me arriscar.

Na primeira postagem sobre o Carnaval, me limitei a uma pacata análise sobre meu deslocamento nessa data, além de descrever minhas impressões sobre o Desfile das Escolas de Samba. Hoje, descreverei um pouco das minhas experiências com a própria população que vivenciava o espírito do Carvanal, especificamente nas areias da maltratada Praia Grande.

É, arrisquei-me mesmo a passar todo o feriado nessa região, apesar das inúmeras recomendações ao contrário. E tenho que admitir que, excetuando-se a companhia, me arrependi de tentar "relaxar" nessa praia. E por tudo aquilo que todos sabem: a bagunça maciça, a despreocupação generalizada da população usuária com o espaço público e o espaço do outro (manifesta pelo lixo nas ruas e na areia e pelo som alto vindo dos porta-malas de inúmeros carros, entre muitos outros exemplos), a superlotação, etc., etc., etc...

Como disse no começo, o assunto que trato aqui é meio batido: o desprezo das pessoas pelo espaço dos outros, que se manifesta com força especial durante certos feriados -- e que aparece com força particular em meio ao Carnaval. Tentarei, contudo, dar um contorno um pouco menos óbvio às minhas observações sobre o tema.

Para começar, rechaço a hipótese, muito recorrente, de que esse tipo de desprezo pelo espaço público e pelo bem-estar de outros indivíduos seria exclusivo de uma classe menos abastada, ignorante pela simples falta de educação elementar.

O que muda em cada classe social, talvez, são os momentos em que o desprezo pela vida pública se manifesta. Comportamentos mais hedonistas e desrespeitosos para com o espaço do outro são mais visíveis, talvez, quando oriundos de indivíduos de classes mais pobres: o funkeiro que escuta música alta no ônibus sem se preocupar com os demais passageiros, os funcionários de obras que fazem gracejos explícitos a garotas que transitam pelas ruas, ou a família mal educada que deixa um rastro de lixo após deixar as areias da praia.

Contudo, os "grandes cidadãos" das classes média e alta também costumam manifestar esse desprezo pelo espaço dos outros - mas em momentos mais específicos de descontração, de "fuga" do mundo racionalizado e competitivo a que estão submetidos em suas rotinas pessoais e profissionais. É longe dos ambientes públicos que esses homens mais incluídos no sistema dominante manifestam sua faceta egoísta e hedonista - e, muitas vezes, de forma extremamente agressiva. São bem conhecidos, por exemplo, os casos de crimes cometidos por playboys, influenciados por esse desprezo pelo público e pelo anônimo e por um gostinho pela humilhação alheia. Variam desde o lançamento de ovos e o espancamento de prostitutas e homossexuais, até a combustão de índios e mendigos. Mas também aparecem de modo mais sutil, em indivíduos abastados de todas as idades, por meio de atos como: sonegação de impostos, desrespeito às leis de trânsito mais básicas, e o arremesso de lixos "mais inofensivos" ao chão - como bitucas de cigarro.

Em outras palavras, acredito que o desprezo pelo espaço público, que imputamos  à uma massa amorfa de indivíduos pobres e sem estudo, é na verdade muito mais geral em nossa sociedade - atingindo, em graus  variados, todas as classes e todos os graus de instrução. O que ocorre, apenas, é que as classes mais inseridas em um universo racionalizado e burocratizado camuflam essa inclinação, manifestando-a em segredo, em momentos de descontração, isolados de seus mundinhos ordinários.

Estaria esse descaso com o espaço alheio e com o espaço público "marcado" no ethos cultural do brasileiro? Acredito que sim, ao menos em certa medida. Seja explicitamente ou "lá no fundinho", estamos "cagando e andando" para o próximo. Valorizamos os "nossos", mas desprezamos o anônimo, o excluído, o "outro" de forma geral.

 No carnaval praiano, trago outro exemplo claro: as brincadeiras de arremesso de bexigas d´água, que, acredito, já se caracterizaram como um modo lúdico de socialização entre amigos e vizinhos, e que se transformou em mera agressão ao próximo, ao indivíduo desconhecido: não se arremessam mais essas bexigas com água apenas, mas espalham-se espumas nos estofamentos dos veículos, arremessam-se excrementos, e jogam-se até mesmo cocos inteiros nas latarias dos carros que circulam pelas ruas da Praia Grande.

Infelizmente, acho que a solução para todos esses casos de descaso e de agressão ao público não se limita à mera educação formal, pois, como já argumentei, esse comportamento também se manifesta - embora com maior descrição, em muitos casos - em indivíduos do mais alto nível educacional (vide, apenas como um dos inúmeros exemplos possíveis, o caso da Uniban). Por mais que escondamos essas atitudes embaixo do tapete, pelo uso da roupagem da cidadania e da civilidade, elas teimam em se manifestar em nossos rotinas, e, em especial, em nossos momentos de distração e lazer, quando estamos mais propensos a revelar nosso "verdadeiro eu" - como no Carnaval, em que a manifestação desses fantasmas interiores torna-se especialmente justificável (é o espírito do Carnaval, arriscaria-me a dizer). Está aí um ótimo momento para manifestarmos nosso ódio mais profundo ao Outro e o desprezo pelo espaço de "todos", mascarados pela aura de "alegria" de que esse feriado se reveste. 

Pedro Mancini

quarta-feira, 3 de março de 2010

A falta do vínculo

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Já devo ter comentado aqui, e mais de uma vez, sobre o elevado grau de individualização social a que estamos submetidos, tal como sobre suas conseqüências mais negativas. Embora essa idéia de individualização não seja considerada, em muitos casos, sinônimo de individualismo ou egoísmo, acredito que exista uma relação de proximidade entre os dois, que não pode ser negada.

Em outras palavras: embora "individualização", quando se refere à transferência de responsabilidades diversas dos anteriores grupos de pertença, comunitários e societários, diretamente aos indivíduos isolados, não seja equivalente ao "individualismo" - a falta de relações sociais entre os indivíduos -, ambos podem influenciar-se mutuamente. A transferência de responsabilidades pode trazer a ilusão de que os indivíduos não precisam de ninguém além deles mesmos, enquanto os egoístas tendem a atrair a responsabilidade para si mesmos, "por vontade própria".

Como alguns autores já ponderaram, é verdade, o indivíduo contemporâneo não se encontra simplesmente isolado dos demais - pelo contrário, na maior parte das situações ele estabelece um número de relações muita vezes maior do que no passado. É evidente que o advento da Internet também permitiu a difusão de inúmeros novos modos de relacionamento. Assim, é irreal associar o período contemporâneo ao simples individualismo, entendido pela ausência de relações sociais.

Contudo, o que assistimos hoje, independentemente do número de laços que possuímos, é a insuficiência de tais laços na tarefa de dar sentido à nossa existência e nos retirar de um sentimento mais profundo de solidão. De fato, em grande medida mantemos relações efêmeras, pouco intensas; e, no final das contas, nossas "grandes amizades" ainda se reduzem a um número menor do que os dedos de uma mão - e isso, quando existem.

Desde Durkheim, na Sociologia, e não sei já há quanto tempo na Psicologia, discute-se os efeitos do isolamento dos indivíduos, determinado pela configuração da sociedade pós-tradicional. Mais atualmente, as preocupações voltam-se aos comportamentos compulsivos que, em meio a um ambiente de extrema insegurança, garantem uma segurança banal, quase patética, pela mera repetição de ações mecânicas. Pelo que noto, esses comportamentos, que não deixam de ser uma espécie de fuga das crueldades do mundo, ganham mais força e razão de existência quando nos vemos desprovidos de relacionamentos profundos, que nos trariam uma segurança a um prazo maior e imputariam sentidos mais significativos às nossas vidas.

Eu, obviamente, não sou exceção: encontrando-me sozinho, desconectado da pessoa com a qual mantenho meu maior vínculo, sou vítima fácil de minhas inúmeras compulsões. Nessa situação, o peso da responsabilidade - não só sobre minha existência, mas sobre a existência de pessoas próximas que parecem ter abandonado qualquer pretensão de responsabilidade - torna-se insuportável. A fuga para os mundinhos de fantasia do vício, para toda a espécie de comportamento maníaco, torna-se o único meio para evitar os males do mundo e banhar-se de uma segurança e felicidade banais e absolutamente provisórias. Mas esse monstro do vício, insaciável por natureza, escraviza o ser que o alimenta, barganhando por um mínimo de satisfação...

Esse monstro, é claro, pode ser camuflado entre ações de maior aceitação social. Vícios como o televisivo e o informático ainda não são encarados com tanta seriedade como os trazidos por algumas drogas, lícitas ou ilícitas. A mania de limpeza de muitas donas-de-casa também não adquiriu, ainda, o status social pleno de vício ou compulsão a ser combatida. Ou seja, esse monstro é muito mais ardiloso e presente do que se imagina, podendo estar totalmente oculto aos olhos das pessoas mais próximas.

É nesse período de isolamento, em especial, que me encontro capaz de perceber o peso da falta do vínculo, e de seu poder de nos tirar da escuridão da solidão. A companhia pode ser um remédio bem mais eficaz, ao atacar a raiz do problema, do que os comportamentos viciosos: esses, de fato, causam efeitos colaterais por vezes piores que a doença que se propõem a combater. 


Pedro Mancini