quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O jornalismo estúpido da Record

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Durante as últimas eleições, o papel da Rede Record de Televisão foi, em certo sentido, visionário. Destoando do monólogo usualmente estabelecido pelos principais meios de comunicação no Brasil (vulgarmente chamados de "PIG", uma sigla bem-humorada para "Partido da Imprensa Golpista"), com seu apoio integral às forças políticas liberais (na época, representadas mais diretamente pelo candidato José Serra), a emissora protagonizou uma cobertura mais favorável à candidatura Dilma Rousseff. Caiu, dessa forma, nos braços de boa parte da esquerda pró-PT.

Ao ignorar o fato de o alinhamento político-ideológico da emissora ser meramente circunstancial - e pautado por interesses próprios, que podem se alterar em outros contextos -, muitos passaram a proteger a rede do milionário Edir Macedo, evitando tecer críticas relevantes a posturas  condenáveis.Extasiados com a atuação de jornalistas histriônicos como Paulo Henrique Amorim, com sua (justíssima, de modo geral) cruzada contra a hipocrisia de tucanos e "democratas", e com reportagens pautadas em denúncias contra o "poderoso chefão" do futebol, Ricardo Teixeira, e contra a Revista Veja (saco de pancadas de todos os que tenham um mínimo de bom senso), muitos dos que adotam uma postura de oposição a emissoras como a Rede Globo isentam a Record do mesmo linchamento moral. Parece que os apontamentos feitos pelo aclamado documentário "Muito Além do Cidadão Kane", desenvolvido pela BBC de Londres, tornam a Globo a única "vilã" significativa entre as redes de comunicação brasileiras - e qualquer concorrente comercial torna-se automaticamente "heróina" da batalha contra o Golias da mídia nacional. 

De fato, os constantes conflitos entre a toda-poderosa Rede Globo e a TV Record são notórios. Em 2009, por exemplo, a rivalidade entre as emissoras transpareceu na cobertura jornalística de ambas, que recorreram a mútuas campanhas de difamação. Os ânimos atuais estão menos inflados; ainda assim, as redes continuam a a competir pela audiência, mesmo que a liderança da Globo ainda seja inquestionável (na ampla maioria dos horários).

Apesar de sua postura de contraposição à corporação da família Marinho, acompanho a avaliação de alguns jornalistas, menos entusiasmados com os atuais alinhamentos políticos da Record,  de que sua cobertura jornalística é, em muitos aspectos, AINDA pior e mais manipuladora do que a de outras redes, incluindo a Globo. Os críticos da emissora do velho bispo Macedo já perceberam sua disposição pela imitação descarada do formato da emissora da família Marinho; mesmo os nomes dos programas são extremamente similares. O "Domingo Espetacular" é uma imitação descarada do velho "fantástico"; o "Repórter Record" copia o "Globo Repórter", e o "Hoje em Dia" inspira-se no "Bom Dia Brasil", entre outros nítidos exemplos. 


Mas esse não é o maior dos problemas. Nem mesmo critico (ao menos nessa postagem) o fato de a emissora Record ser gerenciada por um magnata religioso. O assunto do dia é o próprio "método" de comunicação com o telespectador. A despeito de suas eventuais atuações políticas de conteúdo, em geral o dia do jornalismo da Record parece um Cidade Alerta sem fim. A todo momento, o telespectador é bombardeado por notícias policiescas cotidianas - desde o jornal matinal até os que preenchem o horário do fim de noite. Mesmo em programas matinais que misturam bate-papos descontraídos com proto-celebridades, receitas de bolos e dicas de estética, costumam-se vincular notícias sobre atropelamentos e até brigas de vizinhos como se fossem casos de repercussão internacional!

Na emissora, parece que a vida cotidiana torna-se, mais do que nunca, um grande espetáculo, de caráter nefasto na maioria dos casos, quando assassinatos e situações mais escabrosas são explorados à exaustão. É claro que notícias mais relevantes ao conjunto da sociedade, como as de caráter político e econômico, são as primeiras a perder tempo e espaço com a ênfase exagerada no micro cotidiano. Afinal, como o modismo dos "realities policiais" (em que as ações das forças de segurança estaduais são registradas e exibidas aos telespectadores) aponta, é muito mais interessante e "rentável" para a televisão destacar a vida como um exitante e dramático filme de ação, suspense e terror, narrado por preocupados e indignados apresentadores de telejornais. Há aqui algo ainda mais digno de nota na abordagem jornalística da Record: reparem que, no momento em que as notícias são transmitidas, os apresentadores fazem-nos o "favor" de serem "representantes" de nossos sentimentos, indignações e agonias. Ao fim de cada narrativa de uma mãe que afogou o filho ou de um rapaz que assassinou a namorada e estourou os miolos em seguida, as graciosas apresentadoras do Jornal da Record balançam suas cabecinhas em um sinal de reprovação, seguindo uma frase do tipo "que horror, né gente?" (apenas para que sua colega abra um sorrisão, anunciando a entrada da Rodada do Brasileirão na pauta do Jornal). Ao telespectador, não resta sequer tecer suas próprias emoções, após uma interpretação mínima da situação apresentada, sendo-lhe já fornecida a forma mais "apropriada" de manifestação emocional.

A equipe do Jornal Nacional, da Rede Globo, já foi criticada por tachar o telespectador médio brasileiro de "Homer Simpson", em referência ao ignorante e facilmente manipulável personagem criado por Matt Groening. Mas o que pensa de seu público uma emissora que, além de mastigar a notícia de modo a torná-la mais "digerível" por esse suposto "telespectador médio", manipulando e mascarando a  realidade em suas transmissões, ainda enxerga-o como incapaz de até mesmo manifestar suas próprias emoções de modo minimamente autônomo?

Pedro Mancini


terça-feira, 30 de agosto de 2011

Os potenciais comunicativos da Internet

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Dia desses, estive em um Simpósio de Comunicação promovido por uma faculdade particular de São Paulo. A apresentação foi um pouco bisonha para os padrões acadêmicos brasileiros (a platéia teve que cantar o Hino Nacional, e houve um sorteio de livros da editora da instituição no final das falas), mas as duas exposições foram bastante inspiradoras. Hoje, trago algumas reflexões a respeito  do primeiro dia desse Simpósio, que podem  auxiliar na compreensão da própria capacidade do blog de promover discussões e debates significativos. Mas já aviso que não sou especialista na área da comunicação, e minha discussão pode parecer especialmente superficial para quem o seja.

Discutindo o conceito de "comunicação", o palestrante Ciro Marcondes Filho questionou até que ponto nossa sociedade - usualmente tida como "da comunicação" - comunica-se de fato. Para essa análise, distinguiu a ação comunicativa da simples emissão de sinais, em primeiro lugar, e da informação, em segundo.

Para uma simples emissão de sinais romper suas limitações e alcançar o status de informação, faz-se necessária a atenção do outro. Assim, alguém que utiliza os sinais emitidos por outro para um dado fim (após uma busca pontual na internet, por exemplo) transforma-os em uma informação para ele. Trata-se, portanto, de algo que não existe em si mesmo, sendo um conceito relacional: depende tanto de um emissor quanto de um receptor, e só pode ser entendido sob a perspectiva da utilização desse último.

Porém, ainda não basta informar para comunicar: segundo Ciro, no processo comunicativo algo acontece com as partes envolvidas:  emissor e receptor se transformam com a ação, sendo tocados em seu desenrolar. Nesse sentido, faz-se necessária uma espécie de "abertura ao novo" por parte dos dois, uma propensão a transformar-se com os sinais emitidos por seus interlocutores.

É nesse ponto que o palestrante diferenciou a capacidade comunicativa de interações do tipo face a face, físicas, daquelas virtualmente tocadas: no primeiro caso, haveria a possibilidade, em tempo real, de percepção de transformações ocorridas no interlocutor. Mudanças repentinas de opinião, concordâncias e discordâncias, insights inesperados, alterações na expressão facial e na postura corporal e outros sinais menores: pode-se notar o quanto o indivíduo foi tocado pela conversa no momento mesmo em que ela ocorre, pela simples observação da face do outro e pela dinâmica da própria conversação.

Já a grande maioria das formas de comunicação virtual - por exemplo, das típicas redes sociais, como os murais do Facebook - não permitiriam um controle apurado sobre os impactos causados pelos sinais emitidos. Aquele que escreve um tweet ou atualiza seu mural com alguma informação, própria ou compartilhada, têm uma capacidade fortemente limitada de percepção sobre possíveis transformações que tenha causado nos leitores dos sinais. Depende, por vezes, de respostas simplórias às suas ações online, previamente programadas, como a marca do "curtir" do Facebook - que, na realidade, diz-nos muito pouco a respeito. E o que pensar quando nossos amigos online NÃO curtem, compartilham ou comentam nossas mensagens? Há total ausência de resposta, como se discursássemos no escuro, sem saber se alguém nos está ouvindo - ou, mais profundamente, se esse mesmo alguém está sendo "tocado".

De todo modo, parece que, por muitas vezes, não é exatamente isso que importa; grande parte das intenções de uso das redes sociais parece condicionada à mera emissão de sinais unilaterais, e não a uma real comunicação, capaz de estender um diálogo relevante, com potencial de transformação individual. Alguém que escreve sobre seu dia-a-dia, sobre seus hábitos mais íntimos, por exemplo, parece suprir uma outra necessidade: a da auto-afirmação, do simples "aparecer", do mostrar-se vivo, existente, em uma sociedade que "apaga" aqueles que não se esforçam ativamente para aparecerem da algum modo. Nesse sentido, e evitando-se generalizações, pode-se afirmar que muitos usuários da internet dela apropriam-se para compensar malogros existenciais, colocando-se em evidência em um contexto de ausência de sentido das ações pessoais, cotidianamente sentida no mundo tido como "real".

Mas seria possível uma superação do mero papel da internet enquanto "prova de existência" dos indivíduos nela imersos? Seria ela capaz de fomentar uma real comunicação, possibilitadora de mudanças nas mentes dos internautas pela promoção de debates de substância? Ciro Marcondes, demonstrando certa limitação ao propor, tão somente, um retorno ao "encanto" das interações face a face e um "freio" na agitada vida contemporânea, não consegue analisar a fundo alternativas mais viáveis. Uma idealização das interações físicas pode beneficiar aqueles capazes de refletir sobre a utilização de seu tempo de vida, mas ignora os potenciais trazidos por essas novas formas de "comunicação", além de inviabilizar um olhar crítico, porém realista do futuro.

Assim, algumas questões permanecem sem resposta pelo palestrante: como utilizar as novas ferramentas disponibilizadas pela tecnologia para fomentar uma real comunicação, sem cair no simplismo de descartá-la de antemão, idealizando um modelo inalcançável? E em que medida certas formas de emissão de sinais já em operação no mundo virtual são capazes de fomentar essa comunicação transformadora? Quais as reais limitações dessa capacidade?

É nesse ponto que retomo a análise sobre o papel dos blogs. Interpretações simplistas - otimistas ou pessimistas - poderiam ser tecidas a respeito de seu potencial: considerando o sentido positivo que muitos lhes atribuem, eles seriam naturalmente capazes de promover importantes debates políticos, sociais e filosóficos; uma interpretação que seguisse a linha de raciocínio exposta por Ciro, por sua vez, resolveria a questão apontado que, assim como outros modos de emissão de sinais à distância, os blogs seriam incapazes de garantir uma real comunicação, ao invalidarem a possibilidade de percepção a respeito das transformações causadas nos leitores. Os modos de resposta às postagens - comentários e votos sobre a qualidade dos textos escritos - exporiam muita pouca informação a esse respeito, em comparação com as interações face a face, mais "palpáveis".

Saliento, uma vez mais, que essas visões simplistas deveriam ser evitadas. Desprezar ou idolatrar a comunicação online de antemão pode ser extremamente fácil; difícil é notar seus reais alcances e limitações. Ademais, os dias atuais tornam quase impossível fugir das novas tecnologias.

Pessoalmente, ainda acredito que vale a pena investir, apesar dos percalços, em tentativas de promoção de discussões no âmbito da virtualidade. Mas não escondo que torna-se mais fácil acreditar em tais potenciais comunicativos, em especial do chamado blog, quando há possibilidade de diálogo na seção de comentários: só ela (ou um encontro físico com um leitor) pode provar, ao menos em alguma medida ínfima, que não sou apenas mais um internauta discursando no escuro para uma platéia ausente ou inteiramente desinteressada.

Pedro Mancini















segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Retomada!

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Levou muito mais tempo do que eu gostaria; mas consegui, enfim, retomar um estado de quase-normalidade, de modo que poderei voltar a publicar vez ou outra nesse meu abandonado xodó.

Conforme pensamentos de urgência se esvaem, espaços da mente são abertos  para reflexões que podem merecer algumas postagens...  e com a energia retomada, pretendo voltar à ativa, de vez, já nessa semana.

Tentarei, aproveitando esse momento de retomada, colocar em prática algumas mudanças de estruturação das postagens, que me foram sugeridas por amigos. Especialmente, tentarei me forçar a escrever menos sobre os assuntos que me proponho, de modo que sobre muito mais espaço para uma reflexão autônoma do leitor. Afinal, esse não deve ser um simples espaço de auto-afirmação de pensamentos, mas de debate de idéias sobre temas relevantes. Quero superar a limitação expressa pela maior parte do uso das redes sociais e de blogs pessoais: a mera massagem de egos, sem uma comunicação séria com os interlocutores.

Por essas e outras que não costumo utilizar esse espaço para descrever nuanças sobre minha existência particular: meu estado de espírito, humor, afazeres domésticos. Sei que o potencial desse tipo de informação tem em incitar reflexões e debates é mínimo. Continuarei a focar questões que eu acredito serem de interesse público, quase sempre polêmicas, e que podem sempre ser abordadas sob várias perspectivas; e o farei sempre tendo em vista que escrevo sob uma dessas muitas perspectivas, não tendo a intenção de esgotar o debate (mas de fomentá-lo).

Com esses objetivos em mente, espero aumentar os comentários recebidos não tanto em termos de quantidade, mas de profundidade. Afinal, só saberei o quanto fui bem-sucedido em estabelecer uma real comunicação com meus escassos leitores conforme eles me dêem alguma resposta indicando que ficaram instigados a refletir e a participar ativamente dos debates propostos por minhas postagens.

Pedro Mancini


segunda-feira, 16 de maio de 2011

Estação Angélica, Churrascão e os falsos argumentos de seus opositores

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Resolvi sair de meu recesso auto-imposto por um instante para emitir minha opinião sobre o protesto ocorrido na Avenida Angélica, no último sábado


Muitos já escreveram sobre as razões dessa mobilização: o recuo do Governo do Estado de São Paulo da decisão de construir a Estação Angélica, supostamente devido à pressão de um grupo de moradores do bairro de Higienópolis (em meio a alguns comentários altamente preconceituosos). Mas hoje quero dar ênfase à  outra questão: as formas que a intolerância e o preconceito se revestem, camuflando-se com argumentos que, quando postos à prova, se dissolvem facilmente. 

Isso pode ser percebido não somente quando alguns dos contrários à estação do metrô insistem sobre a falta de necessidade da mesma, alegando, erroneamente, que há estações suficientemente próximas a serem utilizadas (se visitarmos qualquer metrópole européia que esses mesmos indivíduos provavelmente elogiam, veremos estações separadas por distâncias  muito menores do que as presentes). Podemos notar a transmutação do preconceito, igualmente, quando analisamos os discursos contrários à própria manifestação organizada pelo Facebook

Como se sabe, vários jovens revoltados com o recuo do Estado organizaram, via redes sociais, uma manifestação inusitada para protestar tanto junto às autoridades, quando contra os posicionamentos de representantes de moradores do bairro. Veio daí a idéia do "Churrascão da Gente Diferenciada", em referência às declarações de uma senhora moradora de Higienópolis que demostrava medo em imaginar seu bairro coberto de "drogados, mendigos" e afins

Algumas manifestações tímidas na internet condenaram essa atitude espontânea dos organizadores do evento, imediatamente taxando-os de "vândalos" que queriam causar "baderna" em um bairro nobre de São Paulo. Muitos dos contrários ao "Churrascão" quiseram deixar claro não ser contrários à implantação do metrô, considerando injusto serem "responsabilizados" pela manifestação preconceituosa de alguns moradores azedos; outros apareceram com o argumento de sempre, segundo o qual "o espaço público não deve ser ocupado por manifestantes"; outros, por fim, insistiam que apenas os habitantes do bairro tinham o direito de decidir sobre o futuro dos arredores, devendo ser sua opinião respeitada e acatada pelos demais. 

Bem, a própria forma como a manifestação decorreu já anula os receios desesperados dos que acusaram-na de "puro vandalismo": absolutamente nenhuma ocorrência violenta foi registrada, em uma manifestação bem-humorada, que contou com bem menos adeptos do que o esperado (menos de 1.000 estiveram presentes), a maioria composta por jovens das classes média e alta. É claro que não acho que as características da mobilização desqualificam suas intenções ou mesmo seu sucesso: é sabido que o número de pessoas que confirmam presenças em eventos pelo Facebook sempre é bem maior do que as que comparecem de fato. Além disso, a manifestação foi programada para um sábado, dia em que os trabalhadores do bairro, que  seriam os principais beneficiados pela construção da estação, por lá não trafegariam. E uma grande parte da população das classes mais baixas ainda não utiliza o Facebook e outras redes sociais como o Twitter com tanta frequência para participar em massa de um evento por lá arquitetado. De todo modo, foi um pequeno, porém firme passo, de forte conteúdo simbólico, em direção a um futuro pautado por mobilizações e protestos coletivos pela cidade, organizados via Internet.


Mas voltando às argumentações contrárias à referida mobilização.Qualquer um com um mínimo de senso crítico pode detectar algumas contradições graves nesses discursos. De alguns, vi partir tanto o argumento de que cabe aos moradores de Higienópolis decidir sobre a construção da estação, quanto a idéia de que a via pública não deveria ser ocupada por manifestantes. Mas vejam: ou consideramos Higienópolis uma região privada, ou pública! A contradição é evidente quando reivindicamos se tratar de uma via pública, mas que detém autonomia para tomar suas próprias decisões, indiferente à opinião de moradores de outros bairros que frequentam, por motivos profissionais ou pessoais, a região do entorno da Avenida Angélica. Higienópolis não é um feudo, meus caros.

E é evidente que cada um dos argumentos em isolado também pode ser desmantelado. Em primeiro lugar, a Cidade de São Paulo não pode ser vista como um conjunto de pequenos reinos independentes entre si, do mesmo modo que não podemos falar, em tempos de globalização, de uma nação absolutamente isolada das demais. Estamos falando de um emaranhado urbano complexo, em que moradores de um bairro distante precisam se deslocar por quilômetros para alcançar seus locais de trabalho, onde nos deslocamos para comparecer a consultas médicas, e para muitos outros fins. Assim, nenhum bairro é "propriedade" de seus moradores, sendo apenas uma parcela de um espaço público uno e indivisível.  A decisão a respeito da construção do metrô não concerne apenas aos moradores de Higienópolis, portanto (que também seriam beneficiados, obviamente), tampouco a um conjunto pouco representativo dos mesmos (apenas cerca de 6% dos moradores do bairro assinaram a petição contrária ao Metrô), mas ao conjunto de habitantes da cidade. 

Com isso, resolvemos a questão de a Avenida Angélica constituir-se como espaço público ou como ambiente privado dos moradores do entorno. Mas, considerando que falamos de um espaço público e de interesse social, como avaliar uma mobilização que interrompe o seu fluxo, prejudicando a livre circulação de moradores e trabalhadores pela região? Como espaço público, a Avenida poderia ser apropriada dessa forma por um punhado de manifestantes inconformados?

Novamente, entramos em uma falácia sustentada por fraquíssimos alicerces. Se retomarmos o conceito fundamente da noção de espaço público, veremos que a ele concerniam os interesses coletivos da cidade, sendo ele indissociável da noção de política. Desse modo, não faz nenhum sentido reclamar da apropriação política do espaço público: é para isso que ele serve! No caso específico que discuto, para viabilizar uma manifestação por melhores condições de transporte para o conjunto da população paulistana. Trata-se de um movimento com uma autenticidade e legitimidade evidentes, não se resumindo à defesa de interesses privados, seja de empresas, seja de categorias profissionais - sendo que mesmo elas, já aproveito para afirmar, também têm o direito de se manifestar pela defesa de seus direitos. Uma democracia não deve se resumir à atividade eleitoral, corrompida e relativamente deslegitimada há tempos; para se aproximar de forma mais efetiva de seu tipo-ideal, mobilizações como a que ocorreu no sábado último são fundamentais, possibilitando a expressão efetiva - e não meramente formal - de anseios da sociedade, e a pressão produtiva das autoridades competentes. É claro que moradores de Higienópolis têm o direito de manifestar-se contra a instauração do Metrô em seu bairro (pois mais torpe e preconceituoso que seja o motivo); mas igual direito possuem outros indivíduos moradores de São Paulo. 

Com isso, volto à questão original: boa parte dos argumentos contrários à mobilização pelo Metrô na Angélica, oriundos de alguns moradores da própria região de Higienópolis, não passam de mecanismos para mascarar seus reais posicionamentos, muitas vezes pautados por um bairrismo tacanho ou por um  preconceito puro, fundado em uma idéia fabricada de usuários do transporte público como miseráveis e "delinquentes" (digo fabricada, pois a heterogeneidade dos usuários desse transporte é gritante, perpassando todas as classes sociais). Se ao menos  mais moradores preconceituosos e bairristas (vejam que não generalizo, pois sei que se trata de uma minoria) fossem como aquela suposta senhora que assumiu seu repúdio à "gente diferenciada", ao menos teríamos uma elite mais sincera, que não esconderia seu lado obscuro pelo uso de argumentos tão dissolúveis. 

Pedro Mancini





terça-feira, 19 de abril de 2011

Precisando de Fôlego

Um comentário:
Desde o ano passado, consegui manter um ritmo razoável de postagens: uma por semana, em média. E comecei o ano mantendo essa produtividade, motivado por comentários e alguns elogios de meus (poucos) leitores. Porém, como em qualquer caminhada, é preciso tomar um fôlego de tempos em tempos. Simplesmente não tenho dado conta de mesma produtividade, e com a mesma qualidade; sendo mais uma vítima daquilo que pretendo descrever (como as agitações, pressões e ansiedades geradas pela sociedade contemporânea), sofro com "fantasmas mentais" que exigem que eu escreva toda semana, e muitos outros fantasmas que me ordenam estudar, trabalhar, e gerir minha vida sob muitos outros aspectos. Percebi que devo abrir mão de algumas coisas - por mais doloroso que isso possa ser, a princípio.

Mas essa não é uma postagem de despedida, para adquirir um teor tão macabro; trata-se apenas do anúncio de uma pausa para reflexão e readaptação. Continuarei escrevendo, mas controlando minha própria pressão sobre isso: não estabelecerei nenhuma meta, desenvolvendo postagens em um ritmo que seja confortável para minha atual condição. Quando minha  mente estiver menos povoada, tendo retomar a produção - e, quem sabe, possa retornar muito mais inspirado e decidido? 

Disso, não posso ter certeza. De toda forma, só tenho que agradecer a todos que me acompanharam até esse ponto. Valeu!

Pedro Mancini

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A decadência da humildade em tempos de fragmentação social

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Em minha última postagem, estabeleci um paralelo entre a paixão juvenil e a experiência pessoal, para apontar como a primeira é mais valorizada nos dias atuais; hoje, traço um raciocínio semelhante para ressaltar que a questão de "fechar a mente para a vida" não é determinada pela idade, e que existem outros fatores a se levar em consideração.

Acho que uma das grandes ironias da sociedade contemporânea é que, conforme cresce a fragmentação social - e, conseqüentemente, as inseguranças individuais - mais uma parcela dos indivíduos radicaliza seu modo de pensar. Kenneth Gergen é um dos autores que escreve sobre o processo de fragmentação da realidade e do próprio “eu” contemporâneo – que ele qualificou como “saturado”. Para ele,

 “A condição pós-moderna, de modo mais genérico, é marcada por uma pluralidade de vozes competindo pelo direito à realidade – de serem aceitas como expressões legítimas da Verdade e o Bem. Enquanto as vozes aumentam em poder e presença, tudo que parecia apropriado, bem-pensado e bem entendido é subvertido. No mundo pós-moderno nos tornamos cada vez mais conscientes de que objetos sobre os quais falamos não estão ´no mundo´ tanto quanto são produtos de perspectivas” (GERGER, Kenneth: “The Saturated Self: Dilemmas of Identity in Contemporary Life”, p. 7. Nova Iorque: BasicBooks, 1991).

Gergen aponta, portanto, que ao contrário da modernidade, em que algumas poucas perspectivas totalizantes sobre a realidade competiam pelo domínio ideológico, hoje fica mais difícil detectar um número pequeno e bem constituído de "vozes" sobre a sociedade em que vivemos; temos, ao invés disso, inúmeros sussurros espalhados pelo espectro social, que competem entre si e povoam nossas mentes, saturando-as de informações e pontos de vista. 


Uma outra conseqüência dessa fragmentação de modos de encarar a realidade  é a difusão da insegurança: não podemos mais contar, afinal, com uma "grande muleta" ideológica para nos sustentar - ao menos, não com uma muleta maciça e resistente. Não existe uma única religião dominante, uma única ideologia hegemônica, indiscutível, que nos ampare; temos que nos contentar com múltiplas perspectivas incertas, continuamente contestadas, vítimas fáceis da ironia. Sua religião, sua posição política, não passa de mais uma entre dezenas de outras possíveis - e como ter a certeza de que se joga do lado certo?  


Ora, é difícil lidar com a erosão das certezas instituídas, apontada por Gergen. Para aqueles que detém sabedoria suficiente para conviver com aqueles que pensam de modo distinto, essa é uma ótima chance de se desenvolver - de aprender com a voz discordante, aceitando, com humildade, as prováveis limitações de sua própria perspectiva. Já para os mais carentes de certezas, uma alternativa menos indolor e, infelizmente, usualmente adotada é a de agarrar-se a uma dessas perspectivas de forma extrema, a ponto de desconsiderar todas as demais -  e, em último caso, pregar a aniquilamento daqueles que se situam no "outro lado". Agarrar-se a uma ideologia extremista para ser uma saída possível à fragmentação social, portanto.

É nisso, em boa parte, que se baseia a difusão de movimentos fundamentalistas de toda sorte em plena sociedade ocidental. Alguns países não mais se surpreendem quando um gay é espancado na rua, ou um jovem afetado por anos de bullyng rebela-se contra a sociedade a ponto de cometer assassinatos em massa. Todos esses “anti-heróis” procuram agarrar-se em “verdades absolutas”, estejam elas em uma ideologia político-social – como o nazismo, ainda capaz de seduzir jovens “saudosistas” de uma sociedade “organizada” e “pura” – ou em um santuário totalmente pessoal (indivíduos com o ego inflado, que se veem como “gênios incompreendidos” em uma sociedade fria e insensível às suas necessidades). Wellington Menezes de Oliveira seria somente mais um exemplo do último caso, como os grupos de recistas e homofóbicos  - tão ativos  atualmente- exemplificam o primeiro. Ainda há que se considerar, evidentemente, a filiação de indivíduos a grupos religiosos pautados pelo fanatismo e pelo ódio às diferenças - alguns de seus porta-vozes costumam, também, aproveitar qualquer oportunidade para revelar posturas agressivas.

Acredito que o processo de negação da diversidade e de supervalorização de uma perspectiva determinada sobre todas as demais não pode ser vislumbrado apenas nas situações extremas: terrorismo, movimentos neonazistas, homofobia, racismo, etc. Vemos a tentativa de se agarrar em certezas em várias situações cotidianas que pareceriam inofensivas. Muitos, por exemplo, enclausuram-se em uma visão superestimada de sua própria imagem. São os “convencidos” ou “metidos”, que se transformam nos próprios objetos de adoração. Hoje, eles parecem se multiplicar a uma forma alucinante – alimentados pelas possibilidades de auto-promoção trazidas pelas tão faladas redes sociais. Alguns comentários do Facebook e do Twitter são verdadeiros deleites nesse aspecto, mostrando claramente como alguns indivíduos se deslumbram com a ilusão de estarem fixados em um pedestal que os mantém acima dos “cidadãos comuns”.

Parece que a "humildade", valorizada em tempos pré-modernos, é hoje considerada um defeito, algo a se evitar; antes de mais nada, a ordem é “amar-se”, valorizar-se, vender uma imagem positiva de si próprio, ter orgulho e auto-estima elevados. É evidente que esse movimento possui grandes vantagens, além de ter cumprido um importante papel histórico. Valorizar-se como indivíduo destacado do "social" contém elevado teor libertário, protegendo e armando o sujeito contra opressões externas; a partir do momento em que nos valorizamos, tornamo-nos mais imunes a imposições sobre nosso comportamento. Desse modo, as relações de dominação, outrora dependentes de uma imposição externa, conquistada pela espada, devem hoje se concentrar bem mais em uma "submissão voluntária" de seu público. Uma interiorização da ideologia dos dominantes entre os dominados, embora sempre tenha existido, nunca foi tão necessária às relações de dominação. Assim, as grandes marcas devem mais do que nunca "conquistar" seu público-alvo, e até torná-lo seu próprio porta-voz (difundindo a marca nas redes sociais, por exemplo). O consumidor deve adorar o "estilo de vida" vendido pela Coca-cola e pelo McDonalds, e não mais ser um simples comprador de mercadorias.

Mas voltemos ao assunto principal. Ao mesmo tempo em que adquire forças libertárias em outros contextos, um maior amor-próprio, quando alimentado pelas profundas inseguranças trazidas pela fragmentação social, pode resultar em um aterrorizante radicalismo individualista: buscando refúgio em um mundo individual de certezas, em geral fantasioso, o indivíduo corta qualquer comunicação real com o mundo exterior. A outra opção, como já sugerido, não é menos assustadora: a filiação a grupos radicais de caráter comunitário, como bandos de skinheads ou fanáticas facções religiosas. Seja superestimando sua imagem individual e seus conhecimentos no mundo virtual, seja filiando-se a grupos radicais, ou invadindo uma escola armado até os dentes, o cidadão em questão possui uma profunda certeza de que está "absolutamente correto", acima de todos os demais "seres mortais". Quando alimentado pelo sentimento de vingança contra opressões sofridas, como o trágico caso da escola de Realengo, o indivíduo amedrontado pode tornar-se um agressor impetuoso do status quo que tanto teme e demoniza - por “não compreendê-lo” nem fornecer respostas claras e justas para a vida. Rancoroso, deixa de aproveitar a possibilidade de crescimento a partir do diálogo com o Outro, para se fechar em um mundo de ignorância e convencimento, protegendo-se, de dentro de sua bolha, da maldade vista no mundo externo. Acaba iludindo-se com a idéia de ser um Deus entre os homens. Não passa, na verdade, de um ser humano, dentre muitos outros, apavorado com a possibilidade de ser mais um componente da massa. E isso, em meio a um ambiente onde um único ponto de vista não é mais fornecido de antemão como "o correto" ou "verdadeiro". Por baixo de sua carapaça, o mais feroz terrorista não passa de um ser contaminado pelos efeitos mais nefastos da contemporaneidade.




Pedro Mancini 

quinta-feira, 31 de março de 2011

Juventude versus Experiência

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Admito que parece idiota estabelecer uma comparação entre a experiência dos mais velhos e a paixão da juventude: além de a maioria das pessoas não poder ser definida como apenas “experiente” ou apenas “apaixonada”, havendo muitas posições intermediárias, cada um dos lados do espectro possui suas vantagens e desvantagens – nenhum é absolutamente bom ou ruim. Muitos dirão até que os dois lados da moeda são complementares por suas características, auxiliando-se mutuamente. A experiência sem a curiosidade e paixão da juventude parece vazia e sem propósito, e a paixão e o espírito de descoberta dos jovens é muito desperdiçado quando na ausência absoluta da experiência para direcioná-los apropriadamente.

Mesmo assim, arrisco-me a elaborar algumas comparações. Tive experiências, como todo mundo, tanto com pessoas mais jovens e apaixonadas, quanto com baluartes de sabedoria, que haviam adquirido massivos conhecimentos em sua luta cotidiana. Encantei-me com os dois lados; a paixão dos jovens é contagiante, e parece ser a essência da própria existência humana. Sedentos em provar seu valor a si mesmos e à sociedade, os jovens apaixonados dedicam-se às suas atribuições com uma vontade sincera, até mesmo agressiva - embora, muitas vezes, de modo ingênuo e pouco focado. 

Mais velhos, por sua vez, sempre têm algo a nos ensinar - mesmo quando já perderam boa parte de sua paixão juvenil, calejados pelo enfrentar de duros obstáculos. Podem não se dedicar às tarefas com tanta vontade quanto os mais jovens, mas utilizam todo o conhecimento adquirido para realizá-las com maior perfeição técnica. E, mais importante, em geral são capazes de transmitir sua sabedoria aos jovens, que sempre podem recheá-la com a sua paixão  peculiar.

Voltemo-nos, porém, aos principais problemas que encontramos quando levamos os dois lados da moeda ao seu extremo: a juventude apaixonada absoluta, de um lado, e a máxima sabedoria dos mais experientes, de outro. O que pode haver de pior em um e noutro caso? O que existe no “experiente desapaixonado” e no “inexperiente apaixonado”?

Ao meu ver, a pior conseqüência, no último caso, é a ignorância – a ausência de sabedoria que ocasiona em tomadas de decisão equivocadas. Embora esse seja um problema irritante, não é insolúvel; muito pelo contrário, é o pressuposto de todo o aprendizado: errar para aprender, desenvolver-se a partir dos próprios erros. É claro que a paixão pode obscurecer a necessidade de admitir os próprios erros (alguma sabedoria é necessária para isso, aliás), mas, em geral, esse grande “defeito” dos inexperientes é a própria solução para a superação de sua condição de ignorância. Com um mínimo de experiência que o tempo fornece, um jovem pode rapidamente aprender a minimizar sua ignorância, admitindo seus próprios limites.

É o oposto, porém, que me incomoda mais: os "experientes" que perderam qualquer intenção de aprender, apegando-se e isolando-se naqueles conhecimentos que a vivência lhes trouxe. Convencidos de sua superioridade prática, pelo tanto que viveram e pela relevância de suas experiências, vêem os jovens, heróis do presente, como idiotas pretenciosos; qualquer argumento que os últimos exponham pode ser rechaçado como “ignorância juvenil”, como um efeito colateral de sua falta de experiência. Por mais que muitas vezes possam ter razão nesse tipo de crítica, o simples fato de sempre se protegerem com ela é sintoma de seu fechamento para o mundo e suas novidades. Não reconhecendo o valor dos mais jovens, desprezam o próprio presente, deixando-o de compreendê-lo, para idealizar um passado que dominavam. São velhos desapaixonados pelo presente, dominados por um puro saudosismo.

É comum encontrar indivíduos dessa espécie por aí – nem sempre velhos, mas sempre com ferrugem em suas mentes -, nos mais variados ambientes. Profissionalmente, acreditando já deter pleno conhecimento de sua área, repetem frases de efeito e impõe sua perspectiva para compreender o mundo que o cercam - em um exercício com uma alta dose de narcisismo; aquilo que não se enquadra em seu modo de pensar é sumariamente ignorado, tal como a realidade em si. É cego perante a profundidade da existência alheia, já que acredita que dela nada mais pode aprender, afundado na ilusão de que já está cansado de conhecê-la. Desprovido da paixão e da necessidade por reconhecimento (muitas vezes já conquistado em lutas pregressas), torna-se relaxado. Sua experiência, acredita, já valida suas ações, a ponto de viver do “improviso” – entre aspas, pois não se trata de agir com espontaneidade, mas apenas repetir o que disse e fez mil vezes seguidas.

Uma associação interessante pode ser estabelecida com a ocorrência de acidentes de trânsito: os piores, que redundam em mortos e feridos graves, são ocasionados, em geral, por aqueles mais seguros na direção - e não por “neuróticos”, medrosos, que vão pensar mil vezes antes de pisar fundo em alguma rodovia. Aqui, entramos novamente na questão da idade: é óbvio que há muito mais jovens que se acham “bons de volante”, muito experientes e habilidosos, e acabam se matando por esse excesso de segurança na própria habilidade, do que pessoas de idade mais avançada. O “fechamento para o mundo”, decorrente de uma ilusória confiança nos próprios conhecimentos, aflige quase todas as idades (a exceção, talvez, seja a primeira infância). De modo similar, o conceito de “juventude” deve ser relativizado – não se trata de uma fase temporal determinada da vida, mas sim de uma forma de encará-la, que requer uma abertura ao mundo, uma curiosidade e uma humildade para sempre estar disposto a aprender (sem nunca de apegar profundamente aos conhecimentos que adquire, como se fossem absolutos e irrevogáveis).

Vale apontar que, pelas características próprias da sociedade contemporânea, pautada pela inovação constante, a "filosofia de vida" juvenil se torna ainda mais fundamental; os tempos em que a mera experiência e o apego às tradições provinham as melhores características pessoais para uma boa vivência social ficaram nos séculos passados, entre as chamadas “sociedades tradicionais”. Na era das redes sociais, dos smarthfones e iPads,  o papel do apego à experiência pregressa pode se limitar ao de verdadeiro grilhão para a adaptação social.  

Pedro Mancini


segunda-feira, 14 de março de 2011

A queda do muro das redes e a a reunificação das identidades virtuais

3 comentários:
Em outras ocasiões, já escrevi sobre como as novas formas de sociabilidade online estimulam uma percepção de fragmentação das identidades pessoais. Precisando administrar inúmeros perfis virtuais, com suas redes de contato específicas, o indivíduo inserido em relações sociais intermediadas pela internet precisa demonstrar grande competência na arte de administrar papéis e ferramentas interativas: Facebook, Twitter, Orkut, Skype, MSN, e-mail - várias formas de comunicação são utilizadas simultaneamente, cada  qual com seus instrumentos particulares.A autora Sherry Turkle já estabeleceu um paralelo entre essa fragmentação do self e a própria dinâmica do sistema operacional Windows, da Microsoft: de forma similar a esse último (e, em partes, para adaptar-se a ele), o indivíduo precisa administrar várias "janelas" autônomas, com diferenças de micro-segundos de troca entre elas.

Há dois anos, porém, a revista Wired previu que a fragmentação da internet em várias redes sociais estava condenada: apostou que os muros que separam essas redes seriam diluídos em pouco tempo. Até hoje, essa previsão não se cumpriu: a maior promessa feita nesse sentido, o Google Wave, foi um fiasco e, por mais que o Facebook  disponibilize vários aplicativos de integração com outras redes (como o Twitter), essa relação não parece "natural", estando sujeita a bugs e imprecisões (re-twitadas, por exemplo, não são reproduzidas pelo aplicativo do Facebook). Reportagens, blogs e sites de vídeos também disponibilizam ferramentas de compartilhamento entre redes, mas ainda há um considerável caminho a percorrer. Continuamos a administrar redes sociais quase em isolado, preenchendo nossos dados em cada uma, dialogando com pessoas diferentes, e refazendo o procedimento de postagem de  fotos, textos e vídeos.

Talvez todo esse trabalho estimule o ciclo "ascenção-queda-estagnação" das redes sociais: sendo tão difícil administrar todas ao mesmo tempo, opta-se por priorizar apenas uma, a rede "do momento", e passa-se a desprezar as demais. Orkut, Second Life e Twitter, pelo menos, já passaram por esse processo - e ainda não há evidências de que o Facebook não terá o mesmo destino, decaindo e estagnando após um período de sucesso absoluto. Hoje, embora o Twitter continue a manter muitos adeptos, vislumbra-se um processo de evasão, e as vozes dos que ficam não parecem superar a muralha que cerca essa rede. Ainda há pouco diálogo entre tal micro-universo virtual e todos os demais.

Mesmo assim, acho que a previsão da Wired nunca esteve tão perto de se cumprir. A eclosão de aplicativos de compartilhamento mostra que a exigência por integração continua a crescer - partindo tanto de usuários, que utilizam tais aplicativos com maior freqüência,  quanto das próprias empresas, que melhor poderiam administrar as informações de seus usuários se essas fossem absolutamente integradas, ao invés de fragmentadas em comunidades independentes.

Enfim, acredito que a destruição dessa muralha trará grandes conseqüências para o papel da internet na constituição e experimentação de identidades. O estímulo ao exercício de modos diferentes de ser sofrerá limitações, uma vez que o indivíduo não mais falará para públicos diferentes em plataformas distintas, mas sim para a mesma rede de contatos - que terá ligações cada vez mais explícitas com os contatos do mundo físico. Assim, enquanto em um universo virtual repleto de redes sociais particulares podemos assumir papéis variados (um personagem para o Twitter, outro para o Facebook, e assim por diante), em um contexto em que o que escrevemos ecoa em todos os locais, inclusive no próprio ambiente físico, tendemos a assumir um único papel, o mais coerente possível com o assumido nas relações face a face. É impossível prever o quanto relações virtuais baseadas no anonimato ainda deterão importância nesse contexto, mas acredito que elas não representarão um grande contraponto à tendência pela "unificação" das identidades virtuais.

De toda forma, difícil crer que esse movimento resultará em uma redução do uso das redes, ou em uma banalização desse uso, com a eclosão de uma sensação de mesmidade e tédio entre os usuários: creio, pelo contrário, que disso resultará um novo patamar do uso da internet, onde os indivíduos serão tentados a produzir muito mais informações a respeito de si mesmos, e com mais freqüência. Já vemos, principalmente no Facebook e no Twitter, esse tipo de pressão, em que a exibição de informações pessoais, o compartilhamento de vídeos, fotos e notícias, as re-twitadas de trend topics e o uso da própria ferramenta "curtir" (do Facebook) são usadas para medir o grau de participação pessoal na rede e a popularidade individual do sujeito. Com o fim da necessidade de gerenciar mil comunidades concomitantemente, acredito que sobrará mais tempo e disposição para muitos entrarem nesse engalfinhamento competitivo por mais "produção pessoal" e popularidade, resultando em um aumento massivo na participação virtual.

É claro, aos meus olhos, que mesmo que esse movimento represente uma redução do fomento  à multiplicidade identitária no uso da internet, ainda há uma compatibilidade entre ele e o processo de difusão de identidades plásticas entre os indivíduos imersos na sociedade contemporânea (de acordo com argumentação presente nos textos mais recentes do filósofo Vladimir Safatle). Em outras palavras, embora menos múltiplas, as identidades exercidas na internet tenderão a se tornar mais flexíveis do que nunca, adaptando-se com grande velocidade às tendências e modismos globais e locais, por meio da alimentação contínua de informações, tanto nos perfis quanto nas caixas de diálogo público das contas dos usuários das redes.

Pedro Mancini






sábado, 5 de março de 2011

A devassidão da Sandy e a lógica da sociedade de consumo

4 comentários:
Dia desses, um novo comercial sacudiu as redes sociais: uma campanha desenvolvida pela cervejaria Devassa, em que um suposto modelo de pureza e bom-mocismo, Sandy, aparecia revelando um suposto lado "devasso". Exibindo um penteado diferente, a cantora simula uma lap dance em um palco, perante uma grande platéia masculina.



Não tardou para que várias pessoas discutissem a atuação da ex-sertaneja e o conteúdo simbólico do comercial. Entre as principais reações, destaca-se a falta de convencimento da representação de Sandy como "devassa": sua imagem de pureza parece ter penetrado tão profundamente no inconsciente de seu público, que ele simplesmente não engole quando ela foge do papel. Apontam que ela própria não estava convencida da personagem, incorporando com pouquíssimo sucesso a safadeza que lhe foi imputada. Na reportagem a seguir, chegam a contestar a "habilidade" da garota com o copo:



Outros discutem a triste adaptação da imagem da Sandy a um padrão formatado de submissão ao prazer masculino - a incorporação da artista à lógica machista, igualmente presente em populares revistas "femininas", como a Nova (que recomendam às mulheres explorar, de forma absolutamente técnica, habilidades e comportamento que servem especificamente para maximizar os prazeres do parceiro sexual). Como exemplo dessas críticas, indico a última postagem de Tica Moreno.

Mas há outro modo de compreender a utilização do "lado devasso" da artista em um comercial de cerveja. A interpretação que ofereço não é de todo antagônica à visão feminista: não há dúvidas de que a intenção da cervejaria era associar um padrão específico de mulher (que serve aos interesses carnais masculinos mais  banais) ao consumo de cerveja propriamente dito.

Mas se a intenção era somente exibir um padrão de sexualidade adaptado ao prazer masculino, por que escolheriam uma garota que é comumente associada à pureza, virgindade e ao bom comportamento (à submissão sem graça às regras masculinas e ao modelo de "Amélia", portanto)? Não era mais fácil manter a Paris Hilton como garota-propaganda, ou adotar outra modelo-atriz com uma devassa reputação pregressa?

Na verdade, o comercial diz mais sobre a sociedade contemporânea do que os primeiros comentários a seu respeito fazem supor. E o fato de escolherem a Sandy como garota-propaganda é a chave para compreendermos a estratégia de marketing da empresa: explorar uma imagem de ambivalência e de cinismo,  em que são reveladas formas múltiplas de existência, que simulam uma transgressão da norma vigente. Assim, a idéia parece ser de, por meio de uma figura santificada como a da Sandy, explorar o lado "perverso" de cada um de nós, um aspecto que contradiz - sem excluir - o lado bonzinho, que segue um padrão fixado de conduta moral. Sandy não é, assim, uma figura de pura devassidão, mas uma pessoa múltipla, em certo sentido bi-polar, que possui tanto um lado santo, quando um lado "pervertido", por assim dizer. Norma e "transgressão da norma" em uma mesma representação social.

Em uma sociedade capitalista em que os vínculos com os objetos são frágeis, é sábio aproveitar-se dessa fragilidade. Com a redução da importância e da capacidade de convencimento e de identificação de conteúdos normativos, as formas de publicidade que exploram imagens "típico-ideais" de sujeitos (como os antigos comerciais de margarina, que mostravam a típica família nuclear americana - um casal branco feliz, com um casal de filhos e um cachorro, morando na praia) caducam, sendo substituídas por propagandas que exploram, muito mais, o caráter ambíguo ou múltiplo dos indivíduos. Conseguem, assim, atingir um público muito mais amplo: não só aqueles que identificam-se a um padrão, como os que "rebelam-se" contra ele. A negação das velhas estratégias de publicidade acaba, então, sendo igualmente colonizada pelo sistema publicitário.



Assim, a Sandy parece transgredir a sua própria imagem ao agir de modo "devasso"; enquanto outros comerciais chegam a aproveitar-se da retórica da revolução para difundir sua lógica consumista nada revolucionária (lembram-se do comercial "revolução dos dedos", da Vivo, ou da "revolução da esfiha" do Habibs? O último, ainda consegui puxar do YouTube...). Vende-se a idéia, dessa forma, de que estaríamos "transgredindo" a sociedade ao consumir alguns de seus produtos.




Essa percepção foi importada do filósofo uspiano Vladimir Safatle, que estuda, justamente, a publicidade contemporânea e a retórica do consumo. Assim, a estratégia da Devassa não é tão nova, mesmo se considerarmos esse aspecto da bipolaridade, e é bem menos ousada e criativa do que as inicialmente desenvolvidas com a intenção de explorar essa ambivalência (como as marcas Versace e Calvin Klein, especialmente em suas campanhas das décadas de 1990 e 2000). A diferença, com relação à marca brasileira, está em que os dois pólos de ambiguidade explorados são baseadas em imagens machistas: a mulher pura e submissa, de um lado, e a "gostosa" e perversa, boa de cama, por outro. Pureza e safadeza na mesma pessoa (uma santa na rua, uma puta na cama) - a imagem da "mulher perfeita" para o homem comum.Mesmo assim, vende-se a representação de uma marca que costesta a lógica operante da "boa-sociedade", representada pelo bom-mocismo da cantora, violado pelos poucos segundos de duração do comercial. Uma contestação de fachada, que revela, na verdade, um outro padrão de conduta baseado no prazer masculino (mas que pode, contraditoriamente, estar presente na mais comportada das mulheres). Algo bem menos ousado do que a ambiguidade sexual explorada no passado recente pela Versace, que

"(...) se resume a fotos de um casal na cama ou em um quarto com decoração carregada e pretensões de luxo. (...) Nós sempre sabemos quem é um dos parceiros (um homem ou uma mulher bem vestidos em posição de autoconfiança, tédio e domínio da situação), mas nunca sabemos quem é o outro, já que sempre aparece sem rosto, jogado em um canto para denotar que foi usado em um jogo sexual, com roupas íntimas femininas e traços de corpo masculino. Implicações de um lesbianismo lipstick, de homossexualismo e de ambiguidade sexual são evidentes. Note-se que este apelo ao embaralhamento de papéis sexuais não é direcionado para um target homossexual. O target da Versace é composto basicamente de mulheres com mais de 30 anos" (SAFATLE, 2006, p. 61).

Vejam um exemplo dessas propagandas:

De toda forma, e apesar da limitação e teimosia brasileira em continuar a explorar uma imagem machista sobre a mulher, o objetivo dessas campanhas e daquela da Devassa tem suas similaridades: a busca por uma flexibilização de padrões de identificação. Mais uma vez citando Safatle, 

"A publicidade contemporânea e a cultura de massa está repleta de padrões de condutas construído através de figuras para as quais convergem disposições aparentemente contrárias. Mulheres, ao mesmo tempo, lascivas e puras, crianças, ao mesmo tempo, adultas e infantis, marcas tradicionais e modernas.(...) Uma época como esta permite que marcas tragam, ao mesmo tempo, a enunciação da transgressão e da norma. Até porque os sujeitos estão presos a esta lógica de ao mesmo tempo aceitar a norma e desejar sua transgressão. A publicidade compreendeu isto. Daí porque atualmente ela fala a eles visando este ponto em que transgressão e norma se inbricam" (ibidem, p. 59-60)

É uma pena que a transgressão da norma, para nós, tenha sido tão falsificada a ponto de se resumir à imagem de uma mulher que recusa-se a se limitar à figura machista de santa, apenas para explorar o aspecto igualmente impositivo da mulher enquanto objeto devasso para um puro consumo masculino. Cabe a nós, meros mortais, mostrar o verdadeiro significado da transgressão (se é que ela ainda existe),quando nem a norma, nem a sua suposta "violação" nos parece justa - submetendo-nos, ao invés de nos libertar, aos aspectos mais opressivos da lógica do consumo. 



Pedro Mancini

domingo, 27 de fevereiro de 2011

O sublime momento da partida

2 comentários:


Quem me conhece, sabe que não sou nenhum crítico de cinema - muito longe disso. Mas existem alguns filmes sobre os quais não consigo deixar de comentar. Um deles é o japonês "A Partida", de 2008, dirigido por Yojiro Takita.

O grande mérito desse filme está em tratar de um tabu fortíssimo que, me arrisco a dizer, possui grandes chances de ser universal: a morte. Ora, alguns irão pensar, mas ela é muito explorada por outros filmes;  vários personagens, protagonistas e coadjuvantes, costumam morrer nas telinhas, afinal. Acontece que o tratamento que o diretor japonês dá ao término da existência humana é altamente diferenciado: ele é visto de perto, em close up,  pelos olhos das pessoas próximas ao falecido - aquelas que, de fato, sofrerão por sua ausência. Aqui, a morte não aparece banalizada, mas é elevada à uma posição sublime. Um momento extremamente valorizado, cujo caráter mágico é objetivado pela execução de um ritual de exumação, característico da tradicionalidade japonesa. O morto, por lá, parece merecer uma deferência muito maior do que alguns seres vivos de nossa sociedade ocidental.

Isso pode parecer chocante, mas é, ao mesmo tempo, o que fornece ao filme japonês seu caráter profundamente marcante e emocionante. O sentimento passado é o de tristeza  - mas não uma tristeza trágica, pesada, da qual, em geral, fugimos no dia-a-dia mas sentimos, de forma controlada, em um filme melodramático típico. Trata-se de uma tristeza amena, tranquila, até mesmo um pouco "alegre" - por mais paradoxal que pareça. Não deixa de ser uma metáfora da própria idéia de morte passada pelo filme: uma transição pacífica, que não precisa, necessariamente, ser encarada com uma tristeza violenta ou um inconformismo raivoso. A idéia que o filme parece vender é a de uma submissão às leis da vida e da existência, que permite, em última análise, o estabelecimento de uma relação mais saudável com o fato da morte de nossos semelhantes.

Claro que o filme possui, também, os seus defeitos: em geral, parece um tanto forçado e "maquiado"; as representações são um tanto artificiais.  A intenção não é, afinal de contas, trazer os podres físicos da morte aos olhos do espectador: a putrefação da pele e órgãos, a vazão dos fluídos corporais etc.; nesse ponto, reproduz uma parte da evitação da morte presente no senso comum, e seus detalhes materiais não são exibidos.

Mas de uma exposição banal da morte, as telas já estão cheias: filmes de terror e de ação não de cansam de mostrar corpos dilacerados, e isso está longe de significar uma valorizção da morte ou uma superação de sua banalização - ela aparece apenas como a transição do homem a um emaranhado de carne sem vida e sem face. Antes de lidar com nossa relação com esses detalhes físicos repulsivos, "A Partida"  busca dialogar com o tabu psicológico do contato com o corpo, e com a própria forma usual de enxergar o processo da passagem à pós-vida (seja qual for o lugar de chegada). O desespero familiar no momento da despedida do ente falecido é que detém destaque - algo totalmente ignorado, de forma geral, em filmes policiais, de ação e de terror (onde os mortos servem apenas para contabilizar o grau de "sanguinolência" de heróis e vilões).

De todo modo, os pontos passíveis de crítica ficaram longe de minar as intenções do filme: dissecar um assunto visto com tanta repulsa, medo e evitação, como a morte, e torná-la uma das coisas mais belas da vida - contra todos os sentimentos inconscientemente perpetuados pelo senso comum.

Pedro Mancini








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domingo, 20 de fevereiro de 2011

Multiplicidade: por Senban Babii

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Depois de muito tempo, trago novamente uma tradução de uma postagem sobre a temática de dentidades pessoais em meio à sociedade contemporânea, do ponto de vista de novos ambientes virtuais de sociabilidade. No caso, a autora (da qual já publiquei uma tradução) é usuária da realidade virtual Second Life (a qual estudo em meu mestrado), e desenvolve reflexões muito interessante sobre o caráter de multiplicidade de identidades estabelecidas atualmente - fragmentadas no uso de inúmeres redes sociais e ambientes de interação.

Como não são muitos aqueles que conhecem as nuanças da realidade virtual em que a autora está imersa, pode ser difícil entender alguns termos e comentários. Os "avatares" são as representações visuais adotadas pelos indivíduos usuários, e Sanban Babii é o nome do avatar da autora, e não seu nome físico "real" (Lauren Jones). Tendo isso em vista, já se tornba um pouco mais fácil aos pouco conhecedores entender a postagem a seguir, que, na verdade, tece relexões que escapam, em larga medida às limitadas especificidades do Second Life.
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Multiplicidade

"Ah, se apenas um mundo pudesse conter multiplicidade... Em nossa cultura, infelizmente, a multiplicidade é freqüentemente interpretada como duplicidade e, em uma era de roubo de identidade, checagem de antecedentes criminais e detectores de metal, não querer enganar não parece contar muito". 

Quem sou eu? Isso não depende de minha concha física, mas sim de onde estou, com quem e sob quais circunstâncias. 

Imagine que eu já ao meu local de trabalho amanhã e me identifique como Senban Babii quando atenda o telefone. Isso seria uma mentira? Bem, na verdade não seria. mas poderia ser considerado o eu "errado" para a situação, e seriam baixas as chances de ser reconhecida. As pessoas também poderiam pensar que sou estranha, em algum sentido.

No mundo físico, conceitos tradicionais de self e da percepção dos selves dos outros foram restritos pelo fato de normalmente existir apenas um de nós. Então, qualquer coisa que escape da norma histórica é freqüentemente vista como incomum e usualmente percebida como enganosa, psicologicamente anormal ou como simples jogos infantis de "faz de conta". "Por que você não pode simplesmente ser você mesmo?" é o grito das massas tentando segurar-se em seus modos tradicionais e confortáveis de perceber o mundo. Tentam amarrar-nos a um só "self", e, quando possuímos múltiplos pseudônimos ou auto-expressões, buscam juntá-los em vastos bancos de dados de redes sociais como o Facebook. Na verdade, visam amarrar-nos a um único self para seu próprio benefício, e não o nosso.  

Claro que a multiplicidade não é uma coisa nova. O conceito de um pseudônimo ou um nome de guerra tem séculos de existência, por exemplo. Mas historicamente, como cultura, associamos multiplicidade a pessoas bigâmicas ou vigaristas, indivíduos que se empreendem para enganar; e assim, como cultura, somos obcecados a encontrar quem realmente está por trás de um codinome, ao invés de perceber que o codinome não é necessariamente um modo de disfarçar intenções, mas sim um rótulo para designar o elemento do self descentrado de uma pessoa. Ajudaria a me conhecer melhor se você soubesse que meu nome real é, de fato, diferente?  Causa-lhe incômodo, quando você pensou ter descascado uma camada de identidade, que de fato a próxima camada em si também era uma casca que separa você do núcleo? O truque é parar de pensar em camadas que circundam um self central nuclear, e perceber que a identidade é feita de uma nuvem; amorfa, fluída, simultaneamente digital e progressivamente dispersa.

Em alguma medida, a multiplicidade pode ser uma forma de auto-proteção (mas agora, a multiplicidade incorpora um necessário caráter de duplicidade), conforme ingressamos na era da conexão em redes. Considere a inclusão recente de "nomes de exibição" no Second Life. No passado, éramos capazes de manter um firewall ou talvez uma porta corta-fogo entre avatares alternativos, simplesmente mantendo esses avatares sem conexões entre si para serem rastreados. Agora, a idéia é ser encorajado a possuir um único avatar com nomes múltiplos, adotados de acordo com as circunstâncias ou escolhas.; mas por baixo disso ainda há o mesmo avatar, e então, para alguém com a motivação e as ferramentas adequadas, é possível juntar os pontos que ligam nossos selves descentrados. Claro que nada impede que alguém crie, mesmo assim, avatares alternativos, mas culturalmente começamos a ser guiados a "um avatar-múltiplas expressões", de modo que um avatar se torna um ponto fixo para as pessoas se prenderem. Também é digno de nota considerar como todo elemento de nossas vidas se torna vagorosamente conectado e "lincado" por companhias como o Google que, em teoria, amarram nossos endereços de e-mail para que possamos simplificar o acesso a eles - mas, na realidade,  trabalham para que organizações possam juntar nossos dados a fim de melhor comodificar nossas vidas.

É interessante, aqui, considerar o conceito "transmundial", a idéia de manter uma identidade por múltiplos espaços e plataformas. Em certa medida, eu gosto dessa idéia, e você poderá encontrar Senban Babii em vários lugares diferentes. Mas a verdade é que ela é a mesma pessoa, ou melhor, o mesma expressão de um aspecto de  meu self nesses lugares. Nesses espaços, é correto trazer o aspecto Senban Babii para a dianteira, mas pode não ser apropriado trazê-lo parta o ambiente de trabalho. Então, mesmo que eu ache que o conceito transmundial possua mérito, não creio que ele se mantém, necessariamente, como uma filosofia.

Poderia ser argumentado, ao invés disso, que apesar das múltiplas identidades, permanecemos o mesmo indivíduo por detrás dos olhos. Em algum nível, realmente concordo com isso, mas com algumas ressalvas que eu devo esmiuçar em um blog futuro. Na verdade, continuaremos sendo nós mesmos. Mas talvez a multiplicidade nos permita explorar aspectos isolados de nossos selves. E isso não nos leva novamente para a idéia de avatares sendo objetos com os quais podemos pensar?

Traduzido de: Senban Babii 

 Por: Pedro Mancini

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A tolerância desigual de Simmel e a "carteirada" de DaMatta

3 comentários:
Hoje, trago uma  reflexão desenvolvida pelo famoso sociólogo Georg Simmel, em fins do século XIX, mais que ainda me parece bastante atual. O enxerto é de um dos artigos que compôs a coletânea "A Filosofia do Amor", com vários textos tratando somente da temática amorosa - de um ponto de vista sociológico, trabalhado, de modo brilhante, em forma de ensaio. Recomendo a leitura para todos os públicos: é um livro que aguça diretamente nossa capacidade de observação crítica da sociedade, com a apresentação de pontos de vista extremamente ousados para a época. O artigo de onde extraí o parágrafo a seguir trata, especificamente, da temática da prostituição; creio, contudo, que as perspectivas que apresenta podem ser levadas à compreensão de outros fenômenos (como, por exemplo, a criminalidade em si), mesmo nos dias presentes:


"É um caráter constante de nossa sociedade cobrar as mais elevadas exigências, em matéria de firmeza de caráter e de resistência às tentações, precisamente daqueles a quem ela mais priva das condições da moralidade. Ela pede ao proletário faminto mais respeito pela propriedade de outrem do que aos barões da Bolsa ou aos pilantras da nobreza; e exige do trabalhador uma modéstia e uma simplicidade máximas, enquanto lhe põe cotidianamente diante dos olhos a tentação do luxo de todos os que ele fez enriquecer; ela se horroriza muito mais com a criminalidade das prostitutas do que com a de qualquer outra categoria, sem pensar que deve ser muito mais difícil para o excluído superar a tentação de agir mal do que para aquele que se acha confortavelmente instalado em seu seio". 


Mais interessante é pensar como essa visão se adaptaria à realidade brasileira e suas especificidades, de acordo, por exemplo, com a perspectiva que Roberto DaMatta, apresenta em "Carnavais, Malandros e Heróis". Será que o fenômeno exposto por Simmel não se agravaria em um ambiente altamente estratificado como o brasileiro, em que os mais favorecidos utilizam-se de seu status para obter vantagens diretas de instituições que deveriam tratar a todos com igualdade? Será que não somos ainda mais tolerantes com comportamentos "desviantes" dos privilegiados, em comparação com os assumidos pelos excluídos?

É claro que, em muitos meios, borbulham indignações quanto aos privilégios de que políticos e "autoridades" se munem (como promotores de justiça que se envolvem em acidentes com a certeza de não serem propriamente punidos). Mas podemos pensar até que ponto, e para muitos, essa indignação não passa de certa "inveja" cultivada por aqueles que não podem deter os mesmos privilégios, ao invés de uma indignação ampla e consolidada sobre as desigualdades desse sistema personalista em que nos encontramos. Afinal, como as pesquisas mostram, os brasileiros adoram dar suas "carteiradas" e aplicar "jeitinhos" - ou o famosos "você sabe com quem está falando?" - na primeira oportunidade que têm, ao mesmo tempo em que não se comformam com as carteiradas e os jeitinhos aplicados por outrens.

De todo modo, essa relação especial do brasileiro com o jeitinho e outros privilégios de status parece casar perfeitamente com a visão de Simmel, ao menos em uma primeira olhadela.

Pedro Mancini








domingo, 30 de janeiro de 2011

O amor alienado por São Paulo

7 comentários:
No começo dessa semana, a cidade de São Paulo comemorou mais um ano de existência. Foi uma excelente oportunidade para muitos paulistanos expressarem o "grande amor" que sentem pela "terra da garoa" (embora devesse perder esse título há tempos - devendo ser chamada, talvez, de "terra das tempestades e dos calores absurdos"). Mas como compreender tal amor por um verdadeiro inferno urbano como esse, com seu caos viário, sua poluição, violência, desigualdade extrema e anos de incompetência administrativa - que resultam, por sua vez, em enchentes devastadoras e recorrentes?



Só consigo pensar em duas hipóteses: uma alienação compensadora, que também poderia ser chamada de "auto-enganação"; e uma alienação deveras conveniente, resultante de posições privilegiadas, em especial no que tange ao uso do espaço urbano. 

No primeiro caso, falo das pessoas que sofrem verdadeiramente com o caos urbano paulistano e, ainda assim, amam a cidade. Adoram-na apesar dos pesares, a despeito de todo o mal que lhe causam - valorizando, por sua vez, suas qualidades, tais como: as oportunidades de trabalho, o cosmopolitismo e a agitada vida noturna. Para mim, impossível não vir à mente a imagem da "mulher de malandro": aquela que apanha todo dia, mas que "ainda ama o marido", dizendo aos demais e a si própria, por exemplo, que "ele é uma boa pessoa quando não bebe... o problema é que ele bebe demais, e aí acaba me batendo. Mas depois ele pede desculpas, me dá um buquê de rosas e fica tudo bem! Até o dia seguinte..."

A comparação pode parecer um pouco exagerada, mas quando, por exemplo, passo um total de 4h30min dentro de  ônibus lotado a 33ºC, como na sexta-feira, ou quando dois dos ônibus em que embarco se envolvem em acidentes nas movimentadas ruas de São Paulo (como na quinta), não tenho vontade de dizer que "amo essa cidade", mas sim de abandoná-la permanentemente. E o que dizer dos sujeitos que encaram situações iguais ou piores que essas todos os dias, embarcando em trens abarrotados por horas até alcançar o conforto do lar? E dos milhares de moradores de rua que sofrem uma intensa luta cotidiana, apenas para comer decentemente? E aqueles que perdem tudo que possuem toda a vez que chove com alguma intensidade? Como ainda amar a cidade??? Seria porque, no fim-de-semana, podemos "beber para esquecer" os males urbanos, escolhendo entre as milhares de opções de lazer esparramadas pela cidade? Ou porque ela nos oferece a "oportunidade" de nos escravizarmos junto ao mercado de trabalho, de modo que possamos "usufruir" de todos os aspectos negativos do tráfego cotidiano?



Assim, entre aqueles que vivenciam os problemas cotidianos de São Paulo e ainda a amam, só consigo vislumbrar uma alienação de seus aspectos negativos em prol daqueles positivos. É claro que há muita riqueza cultural na cidade, mas ela não pode compensar todos os seus males, a não ser pela inevitável desvalorização da qualidade de vida enquanto valor: considerar que São Paulo vale à pena, para mim, é nivelar por baixo a própria vivência humana tolerável. 

Mas existe outra espécie de "amante" da cidade: aquele que não se apropria, por suas condições espaciais, de seus pedaços menos simpáticos - vias mais congestionadas, áreas afetadas por enchentes, etc. É particularmente fácil (e conveniente) "adorar" São Paulo quando se vive em áreas residenciais de alto padrão, por exemplo, tais como: Alto de Pinheiros, Itaim Bibi, Jardim Europa, Higienópolis, entre outras. Situação que se agrava quando o indivíduo em questão trabalha em uma região próxima de casa, enfrentanto uma situação de trânsito cotidiana bem menos caótica do que aquela vivida por uma grande massa de paulistanos.

É claro que não podemos generalizar, pois ainda existem muitos que habitam áreas mais favorecidas, e mesmo assim enfrentam grandes intempéries no dia-a-dia; mas, além de serem apenas uma parte dos casos entre os favorecidos, é evidente que paulistanos de diversas classes e regiões são afetados em diferentes graus pelas mazelas da cidade; logo, os prejuízos na qualidade de vida do funcionário que se desloca de sua residência em Pinheiros para uma empresa na Berrini  são bem menos significativos do que de alguém que desloca-se a cada dia do Itaim Paulista, extremo leste da cidade, para uma região central.

Similarmente, é óbvio que o acesso a serviços e aparatos de lazer é extremamente desigual - tanto no que tange às diferenças de renda, quando das de localidade. E essas diferentes formas de apropriação do lado "bom"da cidade também podem trazer consequências distintas para a avaliação da mesma: aqueles com fácil acesso às regiões de Pinheiros, Bela Vista, Vila Madalena, Moóca, ou Tatuapé (para aquela "cervejinha do happy-hour"), podem ter uma avaliação mais positiva sobre sua cidade do que aqueles que não possuem tal acesso.

De todo modo, o ponto que almejo destacar é o seguinte: inevitável que aqueles que "amam" São Paulo, entendida enquanto um complexo urbano com algum sentido unificado, está agindo de forma mais ou menos alienada. Sua alienação pode ser fruto de um sistema individual de defesa, em que precisamos nos "enganar" de que moramos em um bom lugar para esquecer onde vivemos de fato; mas também pode derivar de uma posição confortável na cidade, que permite um simples ignorar de suas condições negativas.  Não vejo problemas em gostar de sub culturas ou locais específicos de São Paulo, mas apreender de modo positivo uma visão generalizada da mesma não passa de um excesso de miopia.

Durante minha vida pré-acadêmica, um professor de Geografia do Cursinho Objetivo - o Professor Nogueira -, com todo o jeito de "animador de torcida" típico dos professores dessas instituições preparatórias para o vestibular, dizia uma coisa interessante: "Não entendo essa coisa de 'orgulho' ou 'vergonha' de ser brasileiro. Nós não escolhemos em que país nascemos! Ninguém diz: 'Eu tenho orgulho de ser um vertebrado! Simplesmente nascemos assim". Por trás dessa idéia, está a noção de que só devemos sentimentos de orgulho ou vergonha aquilo que concerne às nossas próprias decisões individuais - e não aquilo que nos é imposto externamente. Isso não significa, porém, uma simples indiferença com relação às condições a que estamos submetidos contra nossa vontade; em verdade, permite-nos um olhar realista e afastado dessas situações, um reconhecimento de suas qualidades e defeitos com um menor número de ilusões. Acredito que o mesmo possa ser dito sobre São Paulo: ao invés de cultivarmos sentimentos enganadores de simples "orgulho", "amor", "raiva" ou "vergonha", devemos nos afastar minimamente dessas intempéries emocionais e apreender com algum realismo as condições da cidade, com seus prós e contras. Apenas mediante esse exercício de afastamento e choque de realidade, os paulistanos poderão abrir os olhos para as condições sub humanas a que muitas vezes estão submetidos, APESAR das boas formas de apropriação urbana possíveis, cada dia mais raras e menos reconfortantes.

Pedro Macini

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Estratégias interativas e o convívio familiar saudável

2 comentários:
Viagens de férias: sempre ótimos momentos para exercer a chamada "observação sociológica de boteco". Especialmente quando há presença de familiares.

A despeito de ser visto, por vezes, como a "ovelha negra" da família (ao menos no quesito ideológico), tentei interagir com a mesma em minhas férias, quando fui convidado a passar uns dias na casa de praia de minha tia.

Esse meu interesse não surgiu do nada, é verdade; nessa altura da vida, momento de grandes transições pessoais, começo a perceber o quão importante é um vínculo comunitário, como aquele típico das relações de parentesco (e outras, que nos são "impostas" pelas circunstâncias - de vizinhança, comunidade nacional, entre outras, em que se predomina um forte caráter emotivo). Embora as relações de tipo societário (relações profissionais, por exemplo, baseadas no convívio com o diferente e pautadas por ações mais racionais que propriamente emotivas) garantam, mais plenamente, o estabelecimento da individualidade, a falta de ligações comunitárias torna especialmente difícil trafegar pelos perigosos mares da fria sociedade de indivíduos anônimos e amizades pouco profundas - hoje, expandida pelo universo das redes sociais.

Mas se comunicar, atualmente, com a família ou outros "companheiros de comunidade", em uma sociedade tão fragmentada como a nossa, exige um verdadeiro malabarismo interativo. Como cada indivíduo tende a possuir uma opinião política, religião, time de futebol, além de vínculos com grupos e instituições distintos, interagir de forma positiva, não-conflitiva, com pessoas ligadas a você apenas por um laço comunitário demanda grande esforço. É difícil, em outras palavras, dar ênfase ao que possui em comum com um grupo quanto tantas outras coisas possuem de diferente. Qualquer deslize na interação, e inicia-se uma acalorada discussão sobre temas polêmicos, com resultados potencialmente catastróficos para os relacionamentos sociais envolvidos (ao menos a curto prazo). É claro que existem arenas específicas para que idéias antagônicas se enfrentem frontalmente, administradas pelas capacidades argumentativas dos envolvidos; mas não acredito que o ambiente praiano, onde a maior intenção seria o apaziguamento pessoal das agitações da vida urbana, seja o palco mais indicado para esse embate de idéias.

Assim, caso exista a vontade de passar um tempo agradável com a família, é de vital importância saber lidar com todas as estratégias e ritos de interação que regem nossa sociedade moderna - muito bem analisados, no que tange à sociedade americana, pelo canadense Erving Goffman (em obras como "A representação do Eu na vida cotidiana", "Relations in Public" e "Interaction Ritual").

Talvez a estratégia mais indicada, para esses casos, seja a da "evitação": simplesmente "fugir" de conversas polêmicas, que, sabidamente, podem fazer os ânimos se exaltarem. Sabendo que ninguém na casa compartilhava meu posicionamento político, evitar falar sobre o assunto protegeria tanto a minha face (já que eu não posaria como "radicalóide" ou "comuna fétido") perante a família, quanto a face de meus familiares - que não seriam acusados de "elitistas" ou "reacionários". Estabelece-se, assim, uma trégua político-ideológica, em prol de um convívio familiar apaziguado.

Aqui, cabe tecer dois comentários paralelos:

Em primeiro lugar, por que se esforçar tanto para fugir de polêmicas? Como já disse no começo da postagem, acredito que todos nós precisamos de algum suporte comunitário para suportar as pressões exercidas pela sociedade em seu aspecto mais impessoal - dependente de escolhas que são, com freqüência, acompanhadas de riscos. Mas há algo a mais a considerar: somos todos seres múltiplos, exercendo inúmeros papéis sociais simultâneos - não temos uma identidade fixa e pré-estabelecida, mas "exercemos" identidades diferentes, de acordo com as circunstâncias (ou, em outras palavras, com o ambiente de interação em que estamos imersos). Assim, eu sou um blogueiro, esquerdista moderado, filho, universitário, amigo, namorado, entre muitas outras coisas. E, por mais que os atores de cada grupo em que me relaciono - colegas de faculdade, namorada, parentes - possam conhecer mais de um aspecto de minha personalidade, é impossível expressar todos os meus aspectos em cada arena de interação.

Desse modo, não só é possível, como "natural" exibir apenas aspectos específicos de nossa personalidade àqueles com quem dialogamos. No caso de minhas férias, concentrei-me em revelar minha identidade de parente, desabilitando todas as características que poderiam me ligar ao "ativista político", em especial. Aspectos não tão polêmicos, como os inerentes à minha posição de sociólogo, não foram tão evitados - me dei o luxo, por exemplo, de analisar criticamente os vícios de meus parentes pelo Big Brother e pela novela das nove.

Importante ressaltar que isso não se trata, para mim, de uma falsidade ou mentira: não neguei, nem ocultei absolutamente, minhas posições político-ideológicas. Apenas não deixei que minha identidade política prevalecesse, supressando  seu exercício em meio ao ambiente familiar. Só com isso pude evidenciar aspectos pouco trabalhados de minha psiquê, como minha identidade enquanto parente, desnuda da influência de outros aspectos pessoais.

O segundo comentário relevante - que também ajuda a negar a falsidade de meu comportamento-, diz respeito à diferença entre o silêncio subserviente e a disciplina interativa. O fato de eu escolher atuar, apenas ou principalmente, como um parente, não significa que anulei totalmente outras características de minha personalidade. Felizmente, existem estratégias de interação que permitem que mostremos nossas diferenças e demonstremos nosso orgulho sem, por isso, ameaçarmos fortemente o bom convívio social; provocações pontuais, brincadeiras e "alfinetadas" permitem-nos evitar a subserviência, deixando claro que não concordamos com aqueles que interagimos - mas, antes, encontramo-nos em um provisório estado de trégua. É como se disséssemos: "Olha, estou sendo diplomático, mas isso não significa que concorde com você".

Assim, minhas opiniões político-ideológicas, assim como as de meus parentes, puderam extravasar na forma de micro-provocações, xistes e "tiradas". Graças a essas ferramentas comunicativas, mantivemos tanto nosso orgulho (com demonstrações claras de que não vendemos nossos posicionamentos) quanto a viabilidade de uma interação saudável. Em outras palavras: não foi necessário "entrar no tapa" (física ou verbalmente). Essa é uma façanha que não seria facilmente alcançada em fases anteriores, em que a única coisa que importava, para mim, era consolidar-me enquanto um indivíduo com idéias políticas próprias - alguém que colocava a boa convivência familiar abaixo da auto-validação identitária. Ou seja: talvez só estejamos aptos à convivência comunitária pacífica, em um contexto de ampla diferenciação social, se tivermos desenvolvido suficientemente nossa identidade, a ponto de deixarmos de lado, por um momento, a nossa fome por aprovação social.

Pedro Mancini