quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Beleza Sociológica

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Semana passada, assisti mais uma vez um de meus filmes favoritos: "Beleza Americana". Embora não possa ser considerado um grande fã do cinema americano, admiro a contra-cultura estadunidense, que consegue fugir da obviedade hollywoodiana costumeira.
Nesse caso, tal tarefa não é cumprida sem pregar algumas peças, correndo o risco de ser mal interpretada; já ouvi críticas ferrenhas saírem de mais de uma boca sobre esse filme em especial, que o interpretaram como a simples defesa do estilo de vida adotado por um "tiozão" maconheiro e depravado, sem a menor noção de sua situação social de provedor familiar e "quarentão".
Segundo minha leitura, não é essa, em absoluto, a mensagem que o diretor visou transmitir. O fato de a personagem principal se apaixonar por uma linda e aparentemente pervertida adolescente, amiga de sua filha, é relevante, mas centrar a atenção nesse fato isolado impede o desenvolvimento de uma visão mais ampla dos aconteceimentos complexos que assolam a trama.
A figura da jovem é tratada como um símbolo tosco e superficial de um modo de vida distinto daquele levado pelo protagonista antes de seu "processo de conversão": um estilo libertário de vivência, intenso, que foge das previsibilidades e do tédio existentes em seu casamento desgastado e cheio de cerimônias de falsidade. Tanto que a cena de sexo mais esperada no filme, entre o marido já libertado e "bombado" do final da trama e a jovem rebelde, não acontece - por decisão desse "tiozão tarado". Explicação: descobre-se que a garota, tal qual a esposa neurótica, também representa um papel diante da sociedade - em uma tentativa patética de construção de uma identidade "para os outros" diferente, em essência, de suas características verdadeiramente pessoais. Em outras palavras, a garota representava o papel de uma ninfeta depravada, mas, em verdade, era uma virgem assustada, desesperada por um pouco de aceitação.
O sociólogo Claude Dubar já discorreu sobre esse fenômeno de "dissociação do Eu", que pode acompanhar o processo de socialização: "entre um 'eu' que implica necessariamente um esforço de conformidade ao grupo para se fazer (re)conhecer e um 'eu' que corre sempre o risco de ser anulado e desconhecido pelos outros, o Eu (self) em construção arrisca-se a ser dissociado entre a identidade coletiva sinônima de disciplina, de conformismo de de passividade e a identidade individual sinónima de originalidade, de criatividade, mas também de risco e de insegurança" (Em "A Socialização": Construção das Identidades Sociais e Profissionais", pág. 94).

Assim, o filme sucinta inúmeras discussões a respeito de temas como individualidade, identidade e socialização. Trata-se de uma crítica à forma pela qual tais questões são manipuladas em meio à cultura americana; especificamente, à utilização, por esta, de máscaras sociais demasiadamente distonantes com as características "reais" dos indivíduos, explicada por um certa obsessão por uma socialização bem-sucedida.

Mesmo assim, o filme não consegue escapar de uma tendência sociológica clara, que assola as sociedades contemporâneas: a busca pela individualização absoluta, pelo direito pessoal em ser diferente de todos os demais, uma certa fuga da equalização - tarefa impossível de ser absolutamente concluída, já que, se levado ao extremo, tal processo não anula que ao menos ALGO resiste de igual entre todos os representantes da Humanidade: justamente essa capacidade de distinção (o que, para Durkheim, ocorre naturalmente com o progresso da divisão social do trabalho). Conforme a sociedade torna-se mais complexa, afinal de contas, mais especializadas são as funções sociais apropriadas pelos indivíduos - e, em decorrência, maior o grau existente de heterogeneidade, inclusive no que tange às construções identitárias.

A defesa ideológica da diferenciação individual, pelo filme, esconde, em realidade, a sujeição a um processo inerente ao "inconsciente coletivo" (de acordo com o ponto de vista durkheimiano) americano. Essa opção aparentemente "livre" pode ser enxergada em diversos momentos, podendo ser melhor representado pela relação entre Ricky Fitts - o filho de um disciplinado simpatizante nazista - e Jane Burnham, filha rebelde de Lester Burnham ( o dito "pai tarado").
Justos, eles chegam a bater boca com a linda e fútil Angela Hayes, que chega a chamar o jovem pretendente de sua melhor amiga de "anormal". Nesse momento, questiona-se: o que vale mais, a dita "normalidade social", obtida mediante representações quase teatrais de identidades e repressões de desejos pessoais, ou a fuga da socialização pela realização dos desejos presentes em nossas personalidades? O que é melhor, viver de fato ou "fingir viver" e se contentar com uma aceitação pautada em identidades manufaturadas, em detrimento de nossa constituição mais íntima?
Ao propor tal debate, o filme age como representante de um fenômeno social quase imperceptível a olhos nus, além de inaceitável àqueles que acreditam se constituirem por sua própria conta, sem quaisquer determinações sociais. A valorização de uma suposta "liberdade individual", que inclui a possibilidade de diferenciação, esconde muito mais do que essa possibilidade, se realizando, verdadeiramente, como uma IMPOSIÇÃO SOCIAL; somos diferentes, mas porque somos COMPELIDOS a nos diferenciarmos, por uma forma de poder que, em oposição à métodos anteriores, não apenas repreende o indivíduo, como uma força exterior a ele, mas o MOLDA de acordo com seus interesses, o incluindo em sua lógica de operação. Não mais submete suas vítimas pela pura coerção física, mas fazem-lhes revelar seu interior "por livre e espontânea vontade" - ou, em outras palavras, nos faz acreditarmos que falamos de nós mesmos de forma absolutamente livre quando, em verdade, tal iniciativa é inteiramente construída e manipulada.
Como filhos da Sociedade Disciplinar enxergada por Michel Foucault, somos geridos, desde o primeiro instante, de modo a nos sentirmos "únicos" sobre um determinado ponto de vista - e assim, acabamos cúmplices da sutil ilusão da liberdade individual perante relações de poder que, protegidas por esse manto de ignorância, exercem-se com uma notável perfeição.



Pedro Mancini

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Por que criei esse blog

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Pelo pouco que sei a respeito de blogs e fotologs pessoais, boa parte deles são excelentes meios de exposição de intimidades. São alguns dos meios técnicos, portanto, capazes de realizar uma vontade que foi imposta aos homens contemporâneos: acompanhando os processos concomitantes de privatização da esfera pública e de publicização da esfera privada (e íntima), utilizamos a internet, esse meio de comunicação abarrotado de oportunidades de uso, para revelarmos parte de nossos desejos mais secretos, nossas vontades, nossas angústias - em uma forma desesperada de provar ao mundo "nossa individualidade", nosso valor único. Nós PRECISAMOS disso - em um mundo que destrói todas as instituições coletivas, inclusive a já tão privatizada "família", somos compelidos a desenvolver e demonstrar nossa identidade pessoal - ironicamente, agindo exatamente igual a inúmeros outros "desesperados" - por nossa própria conta e risco. Em suma, enquanto podemos, hoje, nos dar ao luxo de rejeitarmos sermos definidos por sujeitos externos a nós mesmos, como nossos pais, em contrapartida perdemos qualquer referência fixa de autodefinição. Os blogs surgem, aqui, como uma dessas opções de autodefinição - via a publicização daquilo, afinal, que temos de mais individual: nossa intimidade.

Dito isso, minha tentativa, aqui, não deixará de reproduzir tal função social do Blog - função de individualização, criação e desenvolvimento de identidades e decorrente socialização. É claro que eu também tenho a necessidade de "me conhecer", e acredito que a escrita seja um bom meio para eu reencontrar um pedaço da minha identidade que se encontra atualmente perdida. Mas tentarei escapar da lógica da "exposição da intimidade" no sentido conferido até aqui. Não estou interessado, necessariamente, em narrar como foi meu dia, como era o pão com manteiga da padaria da esquina, como sou infeliz ou como minha vida não tem nenhum propósito.

Se procurarei praticar minha identidade, será por meio de minhas opiniões sobre acontecimentos reais; sobre o que eu vivenciei durante o dia, as notícias que me afetaram, os filmes que me abalaram, e que trazem à tona questões que acho a pena desenvolver. Que trazem REFLEXÕES - sobre política, sobre sociedade, ou até mesmo sobre meu ponto fraco, o artístico. Não é a vontade de exposição de meu COMPORTAMENTO íntimo que me orienta, mas antes a necessidade de um espaço em que possa desenvolver minha opinião crítica - sem que absolutamente ninguém deva concordar comigo. Enfim, sou orientado pelo puro desejo de aplicação da diversidade de pensamento, de AÇÃO. Este será, enfim, o espaço reservado para eu mostrar ao mundo - por menor que seja esse "mundo" que irei atingir, e acredito que não é isso que importa - que sou diferente não porque sou mais ou menos triste, não porque gosto disso ou daquilo, ou me visto de forma "x" ou "y" - mais porque ajo e penso de forma determinada, sem ser mero reprodutor das opiniões alheias.

Isso não quer dizer, em absoluto, que sou dono da razão - não tenho essa pretensão, e acho que o mundo está ferrado, em grande parte, por muitos agirem dessa forma. Mas é justamente o fato de o meu entorno social estar cercado de pessoas que vêem suas (suas?) opiniões como absolutas que me obriga a buscar um espaço virtual onde estar "certo" ou "errado", simplesmente, não importam sob a ótica maior da possibilidade de exposição daquilo que seria mais próximo do que REALMENTE se pensa, sem moldagem, sem adaptações absolutas às vontades de outrens. O que não sigifica, também, que estou isento de manipulações; nenhum de nós está, de forma absoluta, "agindo por conta própria", como sabe todo sociólogo que se preza. Mas poucos são os que mastigam aquilo que ingerem, sem serem meros reprodutores de opiniões fechadas da mídia ou de outros agentes sociais.

Por fim, como já disse que não estou agindo por absoluta conta e risco, devo mencionar que não pensaria o que penso e não escreveria o que escrevi acima se não fossem algumas contribuições específicas de leitura: "A condição humana", de Hannah Arendt; "Individualização", de Ulrich Beck; e "O declínio do Homem Público", de Richard Sennett foram as mais relevantes para essa reflexão (embora tenha lido essas obras há um tempo razoável).
Imagem: Peter McLane



Pedro Mancini