terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A reflexividade do reveillon e balanço do blog

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Quem me conhece, sabe que estou longe de gostar de dias comemorativos baseados, tão somente, em uma tradição - especialmente quando vinculadas a motivações religiosas, como o Natal. Mas não irei, hoje, criticar as comemorações do suposto dia de nascimento de Cristo. A crítica ao Natal, moda nas redes sociais, não me motiva a ser mais um a falar, por exemplo, sobre as contaminações capitalistas da data ou a falta de veracidade histórica do dia que teria sido, na verdade, escolhido para concorrer com festividades pagãs.

Falarei, na verdade, sobre uma outra data comemorativa, que valorizo muito mais do que o Natal ou outros eventos religiosos tradicionais, e que ainda está por vir: o ano novo. Embora também tenha sido estabelecido pela sociedade a partir de critérios arbitrários, a cerimônia do reveillon ocidental possui a grande vantagem de poder ser apropriada individualmente. Todos os demais feriados que me lembro têm a função única de acentuar solidariedades de dados agrupamentos sociais - tanto os feriados católicos quanto, por exemplo, os de cunho étnico ou racial,  que visam solidificar os laços de união dos componentes da mesma comunidade de pessoas. Já o ano-novo é um feriado que possuiria como função principal a difusão da reflexividade em vários níveis de existência: planeta, país, grupo social, instituição, etc. Todos são convidados a pensar sobre sua atuação e os principais acontecimentos que os afligiram em um período de (salvo exceções que nunca compreendi totalmente) 365 dias. Refletimos sobre o mundo e o país, com ajuda dos programas televisivos "retrospectivos"; grupos em que estamos envolvidos, como empresas e outras agremiações sociais ou políticas, desenvolvem "balanços" sobre seu desempenho no ano; e, no que tange às histórias individuais, a reflexividade está presente no interior de cada "pulador de ondas" do dia 1º de janeiro, por meio de promessas para o próximo período e meditações, de várias espécies, centradas na interpretação dos avanços e retrocessos ocorridos durante o ano prestes a findar.

Nesses momentos, podemos repensar cada passo do ano, de forma racional e secular, mesmo ignorando todas as superstições típicas da época (usar roupas brancas, comer lentilhas, pular sete ondas, etc., etc., etc.). Essa característica reflexiva do ano novo é muito bem objetivada na já mencionada "lista de promessas", por muitos elaborada horas antes da virada; por mais que as promessas ali feitas não sejam cumpridas no ano vindouro, ela nos dá as balizas para "manobrarmos" durante a nova jornada anual, estabelece objetivos a serem focados, capazes de orientar nossas ações e decisões de conseqüência a médio e longo prazos.

Pondo em prática minhas crenças pessoais, de que pensar reflexivamente sobre as próprias ações têm seu lado positivo, possibilitando um desenvolvimento contínuo, aproveito esse momento para fazer um "balanço" anual do blog.

Para começar, vemos que a produtividade de meu blog aumentou substantivamente em 2010: de apenas 10 postagens em 2009, atingi 45 no ano presente. Número simbolicamente infeliz, por sua associação político partidária, mas que representa um aumento de 350% no número de postagens. Em comparação com um ano mais produtivo, 2008, o aumento também foi enorme: de 24 para 45, 87,5% a mais. Uma maior diferença  pode ser vista na média mensal de postagens: em 2009, praticamente não escrevi durante todo o ano; publiquei apenas uma postagem nos meses de Janeiro de Julho, e 8 vezes (um recorde para meu blog) apenas durante o mês de dezembro. Essa elevada produtividade nos últimos momentos do ano anunciaram o que se podia esperar de 2010: um elevado número de publicações. A média, então, elevou-se de 0,83 postagem por mês para 3,75 - quase atingindo minha meta de 4 publicações por mês, ou uma postagem por semana.

Além de aumentar a produtividade, mudei, substancialmente, a aparência do blog. Por várias vezes, fiz pequenas alterações visuais para melhorar a experiência do eleitor, até o blog ficar do jeitinho atual, com o qual ingressará no novo ano.Claro que no meio do caminho tropecei algumas vezes, inclusive porque não sou nenhum especialista em edição de blogs; chegaram até a puxar minha orelha, pela dificuldade em ler as postagens, quando o blog adotou uma aparência mais escura. Mas, no fim, acredito que mudamos para melhor.

Todas essas alterações, aliadas à aplicação de estratégias de divulgação nas redes sociais, fizeram com que meu blog passasse da categoria "lido por ninguém" ou "ligo apenas pelos dois melhores amigos" para a categoria "ligo por QUASE ninguém" ou "lido por meus amigos e mais alguns cidadãos curiosos e interessados". Mas a verdade é que nunca cheguei a investir pesado na propaganda: recusei vários métodos de divulgação que achava intrusivos ou "malandros" demais. Quando acho que publiquei algo que não é de interesse geral, por exemplo, não costumo divulgar a postagem entre minha rede de contatos (como não farei com a postagem atual). Valorizo manter poucos leitores que verdadeiramente interagem com o blog, mais do que contar com muitos visitantes que acharão meu espacinho virtual desinteressante e nunca voltarão ou participarão das discussões. Por isso, acredito que consegui avançar na medida certa, sem expandir o blog demasiadamente, de modo que não poderia controlá-lo e mantê-lo minimamente interessante. É claro que, conforme fique seguro sobre a qualidade das minhas postagens, poderei investir em mais estratégias de propaganda. Vejamos se isso se realizará no ano de 2011.

Agora, algumas palavras, justamente, sobre a contribuição dos leitores. Contei 53 comentários nessa ano de 2010, mas os meus próprios estão incluídos na conta (respostas aos comentários dos visitantes): Uma média de 1,17 comentários por postagem. Se, por um lado, fico muito feliz em ter suscitado alguma discussão, por outro admito que esperava que os debates ocorressem em maior número, e que fossem mais extensos. Não é muito boa a sensação de que a escrita do blog não passa de um exercício narcisista, em que um monólogo é estabelecido, antes de um real intercâmbio com os visitantes; desde o início, deixei claro que a intenção de meu blog pessoal era a difusão do livre debate de idéias. Parte dessa falta de participação se dá por problemas típicos da sociedade da informação, acredito, onde a real discussão é muito prejudicada, em detrimento do exercício egoísta e fragmentado de exposição pura e simples de opiniões. Mas estou esperançoso de que essa tendência poderá mudar aos poucos, e conto com um diálogo muito mais intenso entre editor e leitor nos próximos meses. E farei de tudo para promovê-lo, na medida do possível.

Digo "na medida do possível" porque, como os mais próximos de mim sabem, esse ano será "paulera".Além da procura por um emprego, deverei me dedicar à redação final de minha dissertação de mestrado. Temo que isso, inevitavelmente, prejudique minha produção; mas meu amor pelo blog permanece, o que permite que eu lute com todas as minhas forças para mantê-lo muito ativo.

Quero registrar meu obrigado a todos que me honraram com sua visita. Segundo meu contador, vocês fizeram meu número de visitantes subir para mais de 2000; um número bastante humilde em meio à blogosfera, mas que, dada a natureza do blog, me enche de felicidade. Valeu mesmo! E que venha 2011...

Pedro Mancini 



quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O "pior dia do ano": lamentos pouco justificados

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Hoje, utilizarei o espaço desse blog de uma forma um tanto distinta da habitual: descreverei o dia que considero, sem muitas dúvidas, o pior do ano para mim. A partir daí, pode ser até que desenvolva algumas reflexões mais amplas, sobre a vida na metrópole (explícitas ou implícitas); mas o principal objetivo é mesmo, admito, o puro desabafo.

O dia já começou mal, antes mesmo do sol raiar: tomado pelo calor, tive grandes dificuldades para dormir. E tinha que acordar cedo, para me deslocar até o centro e solicitar, em um prédio do SUS, um remédio de alto custo. Para mim, o local era desconhecido e quase inacessível: perto do Largo do Glicério. Pois bem, fui até a Praça da Sé e, de lá, andei uns 20min até o local; lá chegando, peguei uns 40min de fila para solicitar cadastro de solicitação de remédios, apenas para descobrir que tinha um documento faltando. Bem, pensei, ao menos já me informei de todos os detalhes burocráticos sobre o procedimento. Da próxima vez, não haverá falhas. Mas é claro que o dia estava apenas começando: percebi o quanto ele seria longo quando me vi um tanto perdido entre os viadutos do Largo do Glicério, procurando algum metrô nas proximidades. Senso de localização nunca foi meu forte, afinal.

 Atravessando um desses viadutos, então,o fato mais marcante do dia me atingiu: um sujeito, vindo em sentido contrário, tira algo como uma comprida chave de fenda de um saco preto, e ameaça "me furar todinho" caso eu não lhe entregue todo o dinheiro de minha carteira. Estava bem no meio do viaduto, isolado da "terra firme", com pouco espaço para realizar qualquer manobra evasiva. Notável é que estava, também, sem dinheiro (com apenas R$2,00 na carteira), e tive provar essa "pobreza" ao assaltante. A seguir, mandou-me entregar o que tinha nos bolsos: mais uma vez, disse que nada possuía. Enfim, mandou-me entregar o meu aparelho de celular.

Nesse momento, admito que tentei, no calor do momento, pensar em alternativas que escapassem das ações  mais óbvias que se esperariam dessa interação social entre "assaltante" e "vítima": mediante ameaça, o assaltado entrega o objeto requerido pelo assaltante, que, consumado o roubo, cessa a interação e deixa o local com velocidade. Ao invés, tentei me esquivar do rapaz... mas tive uma sorte, travestida, inicialmente, de azar: o assaltante reagiu aos meus pensamentos e avançou com a arma branca que portava. Segurei a mesma, mas, agindo racionalmente, verifiquei que corria muitos riscos com a reação que esboçava. Eu tinha chances de conseguir escapar do assalto, de fato; mas, caso ele tivesse a chance de me ferir, estaria no meio de um elevado, com uma mureta me separando dos veículos que passavam na pista, e não poderia contar com nenhuma ajuda por um tempo considerável. Não valia a pena todo esse risco por um simples celular (que nem era dos melhores ou mais atuais), mas a idéia estúpida de reação realmente passou pela minha cabeça na exata hora do assalto. Burrice minha, mesmo - e sorte por não ter sido furado, afinal.

A história poderia ter acabado assim: perdi o celular, mas minha vida foi poupada, assim como minha carteira e minha mochila. Rapidamente liguei para pessoas próximas, solicitando que bloqueassem meu celular. A única preocupação que teria seria a de comprar outro aparelho - me conformei rapidamente com o fato de que nunca iria recuperar o meu antigo. Mas outro fato - infelizmente, como ficará claro - realimentou provisoriamente minhas esperanças. No momento em que eu adentrava o Metrô Term. Pedro II, um motoboy buzinou, chamando minha atenção. Disse que havia testemunhado a ação, e embora não pôde fazer nada no exato momento, seguiu o assaltante em fuga, e, avistando um carro da polícia, o acionou. Os policiais chegaram a abordar o sujeito, o revistaram, mas o mesmo estava limpo: já havia se livrado dos objetos que o  incriminariam, o celular e o objeto pontiagudo. Mesmo assim, achei que se eu mesmo falasse com a polícia, teria chances de recuperar meu aparelho. No que estava pensando?

Chamei, então, os agentes policiais. Após 40min de espera, liguei novamente e descobri que a viatura não me localizou; passaram do outro lado do Terminal. Aguardei mais uns 45min para eles me encontrarem de fato. Nesse ponto, já havia novamente perdido qualquer esperança de reverter a situação; e a polícia também estava cansada de me procurar. A única coisa que fez, então, foi me levar até a delegacia mais próxima, a primeira de São Paulo (1ºDP), perto do Paraíso. Lá, mais um martírio: um flagrante atrapalhou o atendimento, e esperei mais de três horas para conseguir fazer o B.O. E, ansioso com toda a situação, ainda consegui grampear meu próprio dedo enquanto ditava as informações ao policial (tenho mania de mexer em tudo que se encontra ao redor quando estou nervoso). Um temperinho final para meu dia de aventuras.

Por fim, como não poderia faltar, mais de 2h de trânsito. Ao todo, mais de 5h para resolver um simples caso de roubo de celular... sem direito a refeições durante todo o período. Após esse alvoroço, bem descansado, alimentado e banhado, penso que não sou um grande desafortunado. No final, não passo de mais um jovem "pequeno-burguês" me achando o maior dos azarados apenas por um dia ruim, em comparação com minha rotina ordinária; mas quantos não passam por uma situação igual, similar ou mesmo bem pior, muitas e muitas vezes ao ano, quiçá na maioria dos dias? Em uma análise fria, fui mesmo muito sortudo, comparativamente falando: poderia ter perdido todos os documentos e despender muitas horas a mais cancelando cartões e solicitando segundas vias; poderia ter sido morto ou ferido; poderia morar a três ou mais horas de ônibus do local; ou poderia, até mesmo, ser um sujeito tão excluído que seria capaz de assaltar um transeunte apenas para conquistar mais alguns minutos de felicidade hiper-real, pelo consumo de alguma droga pesada - correndo todos os riscos de ser apanhado e destruído pelo sistema durante a tentativa. E eis que, de repente, minha desgraça pareceu minúscula e patética.

 Pedro Mancini


quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Maiores desenvolvimentos sobre a postagem anterior

Um comentário:

Minha última postagem rendeu algumas críticas ferozes sobre meu posicionamento a respeito dos conflitos no Rio. Claro que críticas são sempre esperadas quando escrevemos sobre assuntos tão polêmicos, e, em especial, quando almejamos nos esquivar de interpretações mais casuais. Mas elas não costumam surgir de forma tão direta - o que dificulta o debate, impossibilitando o desenrolar de melhores explicações, justificativas e até contra-ataques argumentativos. Ou seja: comentem, por favor! Nada alimenta mais um blogueiro do que a participação dos seus leitores (de preferência, uma participação que não se limite à avaliação das postagens publicadas).

Nas próximas linhas, dedicarei-me a esclarecer alguns pontos sobre o raciocínio aplicado na última postagem. Além disso, tecerei uma crítica sobre a postura que vejo presente em parte das análises sobre situações ocorridas no contexto brasileiro atual.

Para começar, os esclarecimentos. Ao focar-me na incompetência do Estado em gerir a situação carioca, não me referi à ineficácia do governo atual; apontei que se tratava de um problema de natureza muito mais profunda, que escapa à resolução de uma simples gestão temporal. Na verdade, é óbvio que a situação exigia uma ação forte do Estado (para além de seus aparatos policiais) e que o Governo, tanto estadual quanto federal, agiu, a princípio, do modo que lhe cabia. Tomou decisões, na verdade, que mostraram uma coragem e vontade política que esteve ausente em governos passados, baseadas em critérios razoáveis: compensando a história ausência de aparatos estatais na periferia, criou um programa de polícia comunitária -as UPPs - que poderia intermediar a entrada de escolas, saneamento básico e vários outros serviços nas regiões mais afetadas pela desigualdade e, conseqüentemente, pela violência urbana. É claro que, por trás das intervenções policiais mais clássicas, encabeçadas pelo BOPE, estava sub-entendida uma concepção de criminalização da pobreza, uma simplificação de que os moradores da favela devem ser tratados como bandidos, concretamente ou potencialmente; mas esse é um problema histórico de representação social em vigência no Brasil, e não se pode esperar que um simples governo temporal cause grandes mudanças nesse pensamento.

Infelizmente, contudo, continuo sendo pessimista no que tange à possibilidade de o Estado resolver definitivamente a questão da segurança pública da capital fluminense com o tipo de ação visto nas últimas semanas. O "oba-oba" exibido pela mídia, que obscurece a possibilidade de plena apreensão da questão, mascara a necessidade de iniciativas mais profundas, que ataquem diretamente a questão da desigualdade e da exclusão sociais, eliminando a criminalidade pela raiz. O problema é muito mais sério do que os jornais fazem parecer, e, antes de uma comemoração antecipada, é necessário um aprofundamento das ações de penetração do Estado em comunidades periféricas. E temo que isso não ocorra pela perpetuação da imagem de "plena vitória", aplacada por vários setores pela grande mídia, como se o Rio já estivesse totalmente livre de seus males graças à atuação "heróica" do BOPE, em ações de intervenção que suportam a atuação das UPPs.

Continuo achando, ainda, que existem interesses que validam essa representação (da vitória incontestável das forças de segurança sobre a criminalidade). Temo que nisso, porém, tenha sido mal interpretado: não vislumbro uma "conspiração" na apreensão clássica do termo, com um grupo social específico exercendo secretamente seu poder sobre todo o resto da sociedade. Acredito, na verdade, que estamos imersos em uma enorme teia de interesses múltiplos, que, por vezes, convergem pelos mesmos objetivos táticos. Nesse caso, vemos algumas forças políticas com interesses articulados por vender uma representação de resolução absoluta sobre uma séria questão de segurança pública. 

Talvez, portanto, tenha deixado as palavras pesarem além da conta, chamando as ações no Rio de "grande farsa"; de fato, elas ocorreram, e provavelmente colaboraram para que a situação carioca melhore a curto, médio e longo prazos. Mas esses atos policiais foram, sem dúvida, super explorados - e até mesmo superestimados - pela mídia e pela sociedade. Possivelmente motivados pela ânsia de mostrar que "a vida imita a arte", trazendo os efeitos desenvolvidos em Tropa de Elite 1 e 2 para uma dada exibição sobre a realidade cotidiana, o dia-a-dia de policiais e moradores do Complexo do Alemão foram exibidos à exaustão, antes, durante e após a "invasão final e definitiva". Misturavam-se cenas da "Tropa de Elite real" com um gigantesco Big Brother, com a vigilância contínua do dia-a-dia dos cidadãos do Complexo em meio aos conflitos armados. E, sinceramente, não acredito que toda a comoção desencadeada seja neutra de significado: atende a demandas e interesses de certos setores sociais (pelo jeito, muitos, e muito relevantes). O maior problema, como já afirmei, é que o excesso de atenção à "imagem" do que ocorreu no Rio de Janeiro pode bloquear uma visão real dos fatos, que vislumbre as condições reais da proliferação da violência na periferia urbana.

Agora, um outro ponto: parece-me que um simples comportamento mais "pessimista" desperta uma série de associações político-ideológicas que nem sempre são verdadeiras. Graças à minha última postagem, sofri a comparação - talvez alimentada por resquícios da radicalização vivida pelo país nas últimas eleições - entre meu pensamento e a postura eleitoral de 2006 de Geraldo Alckmin, que procurava, a todo custo, argumentos para atacar o Governo Lula. Bem, faço aqui uma crítica a respeito da postura de boa parte da massa otimista com o governo atual: em sua ânsia por rebater a ferocidade da oposição, que agiu de forma extremamente violenta nos últimos meses, os lulistas e dilmistas mais radicais, ainda pensando de forma maniqueísta, desqualificam qualquer apontamento mais negativo sobre a realidade brasileira atual. Parece sempre um "papinho" da oposição, desesperada em agredir o governo presente.

Ora, é evidente que, mesmo se considerarmos os incontestáveis pontos positivos da administração petista - em especial, sua competência na aplicação de medidas de combate à exclusão social mais absoluta - vários problemas ainda afligem o país, não podendo ser facilmente resolvidos por um simples governo temporal. Além disso, havemos de manter o senso crítico, apontando os erros da administração de Lula e da futura presidenta Dilma  -  que, até então, não foram poucos. Houve falhas admistrativas de grandes proporções, que escapam do simples "blá-blá-blá" vomitado pela mídia em momentos eleitorais. Há, em suma, que "se colocar os pingos nos ´is´": Sim, o governo atual é mais competente no combate a problemas críticos da sociedade brasileira, em comparação com governos passados; e não, ele não consegue eliminar todos os problemas estruturais do país, e ainda está sujeito a graves insuficiências, que devem ser apontadas, sem se menosprezar os avanços alcançados. A militância não deve ser apagada por sua própria fidelidade ao governo; deve apenas ser melhor direcionada, mais precisa.

O que fiz, portanto, não foi nenhum exercício de oposição míope ao Governo. Em primeiro lugar, porque reconheço que as medidas tomadas foram corajosas e necessárias, concentrando minhas críticas à posterior imagem, criada e alimentada pela mídia, a respeito da situação carioca. Com todas as limitações a que estão sujeitos, os governos municipal, estadual e federal fizeram a parte deles. Em segundo lugar, porque critiquei, igualmente, uma questão que vejo como estrutural na sociedade, consolidada nas instituições e nas representações sociais em vigência, e que escapam de um combate governamental direto. Problemas de Estado e de "consciência coletiva", para utilizar a terminologia do velho Durkheim; não de governo ou de indivíduos que se unem com objetivos conspiratórios, simplesmente. Tratei, dessa forma, de preconceitos arraigados entre vários setores e explorados pela mídia em exaustão, e formas de pensar e agir que se atrelam ao Estado de forma absolutamente parasitória, contaminando sua gestão. Os governos terão muito mais trabalho no combate a esses inimigos do que tiveram, em aparência, na luta contra o tráfico do Alemão...

Pedro Mancini










quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Rio de Janeiro: entre a incompetência arrastada e a grande farsa

13 comentários:
Mais uma vez, depois de algum tempo, tive que abandonar o blog por uns dias. Explico-me: o fim-de-semestre foi realmente conturbado, e tive de lidar não só com uma certa "correria acadêmica", como com uma série de outros problemas, inclusive de cunho técnico-informático. 

Embora o pior já tenha, aparentemente, passado, ainda não estou 100% recuperado dessa "ressaca" de fim de ano; mas já devo estar bom o suficiente para escrever algumas coisas - o que, inclusive, me serve como um bom remédio contra meu atual estado de letargia 

Estou minimamente apto, portanto, a tecer algumas reflexões bem superficiais sobre o que aconteceu - e ainda acontece - na cidade do Rio de Janeiro. Perdoem-me, porém, por imprecisões e indecisões: nesse meu isolamento do mundo virtual, afastei-me igualmente de análises mais pormenorizadas sobre a situação carioca, pautando-me, tão somente, em impressões pessoais obtidas mediante uma análise mínima sobre reportagens vinculadas na mídia tradicional.

Primeiramente, admito que já estive entre aqueles um pouco mais otimistas: achei a idéia por trás das chamadas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) muito interessante, buscando uma integração entre agentes estatais de segurança e comunidade local e aliando ações de cunho repressivo a medidas de desenvolvimento de outros aparatos institucionais do Estado nas regiões ocupadas (escolas, saneamento básico, postos de saúde, etc). Evidente que, como a maioria dos projetos, difícil levar a idéia para a prática com toda a eficácia inicialmente planejada; mas, enquanto tipo-ideal, as UPPs são realmente curiosas e inovadoras - Especialmente como contraponto ao bárbaro BOPE, voltado única e exclusivamente à mais brutal repressão, com uma ideologia de total separação não só entre o policial e a comunidade, mas entre seu papel social de "caveira" e sua própria humanidade interior.

Vista sob esse prisma, a série de ataques articulada pelo crime organizado, que resultaram na intervenção de várias forças de segurança no Rio de Janeiro, seriam reações desesperadas ao sucesso da implementação das UPPs - além, é claro, à sinistra ocupação de várias comunidades por milicianos anti-tráfico, bem retratada pelo filme "Tropa de Elite 2". O crime organizado, em suma, perdera terreno, e tinha que mostrar, de algum modo, que ainda estava no controle, e que o Estado (e "adjacências" ilegais, como as milícias) não avançaria mais um passo sem lidar com forte resistência. 

Após retaliação dos criminosos, com a queima de veículos por toda a capital fluminense, o Estado resolveu agir com vigor. Pela primeira vez em décadas de combate contra facções criminosas que dominam as favelas cariocas, vários órgãos de segurança do Estado, bem como múltiplos setores da sociedade, uniram-se por uma mesma causa: a remoção do Rio de Janeiro do seu estado de anomia social, com os constantes embates entre facções, milícias e policiais. O contexto prometia uma solução permanente para a problemática da violência urbana carioca.

A cobertura da mídia sobre a ação da Polícia e do Exército no Complexo do Alemão representou muito bem esse caráter de "momento decisivo" da luta contra o crime e de união de toda a "sociedade civil" em torno dos mesmos propósitos; pela primeira vez após o radicalismo ideológico fomentado pelas eleições presidenciais, a sociedade brasileira parecia falar em uma só voz. Uma voz de apoio incondicional às ações do BOPE, mais uma vez convocado para as batalhas mais difíceis, e de esperança quanto a uma solução  não-paliativa.

Em uma dada semana, as principais revistas semanais de notícias reproduziram esse pensamento: Veja, IstoÉ e ÉPOCA retrataram o momento carioca pelo viés da luta do BOPE contra o "mal" dos traficantes, e com um tom de otimismo com relação ao futuro da cidade. Nos discursos do cotidiano, também era difícil encontrar vozes distoantes. Todos os que vêem o caos carioca de longe parecem pensar de forma razoavelmente parecida, qual seja:  interpretando a situação como uma simplória luta entre o "bem" e o "mal". Com esse raciocínio, elimina-se a crítica à brutalidade do BOPE, por exemplo: nesse momento de crise, deixa de ter importância uma análise sobre a moralidade de sua atuação, e ele é simplesmente categorizado como compondo o "lado do bem", lutando pelo "cidadão" que o Estado tanto gosta: ordeiro, aceitando a exploração pelo mercado de trabalho, ao invés de rebelar-se contra o mesmo.






Por fim, a mídia noticiou o pleno sucesso da operação de ocupação do Complexo. As facções foram desmanteladas de modo muito mais rápido e fácil do que previsto pela maioria, senão por todos. Agora, só resta perseguir os prováveis fugitivos e encontrar armas e drogas deixadas para trás. O crime organizado sofrera uma derrota humilhante.

Fujo, porém, das interpretações mais casuais sobre a atuação do Estado mediante os últimos acontecimentos: ao invés de me parecer um sucesso óbvio, a operação serviu para confirmar uma grande ineficácia das instituições brasileiras, ao menos em sua apreensão racional, baseada nos preceitos ocidentais da justiça e da igualdade de todos perante a lei. Uma ineficácia não do  governo atual, mas muito mais profunda, de Estado mesmo. Afinal, das duas uma: ou o crime estava bem menos articulado do que o previsto, e poderia ser vencido há muito tempo - e o teria sido, se não fosse conveniente ao Estado mantê-lo e permitir seu desenvolvimento; ou, e essa é a alternativa mais terrível, o crime está muito mais emaranhado na realidade social do que aparentava, e todas as ações dos últimos dias não passaram da mera simulação de uma batalha épica contra um inimigo muito mais poderoso, de atuação capilar.

Pensando sob a última perspectiva, o problema da segurança pública não foi diretamente atacado. Tudo não passou de ilusões e manipulações, de uma grande farsa, alimentada por uma rede de "interesses escrotos" (palavras utilizadas pelo Capitão Nascimento para caracterizar o "sistema" que combate em ´Tropa 2´). Continuo defendendo, portanto, que não existe algo como uma "opinião pública" homogênea, com um só interesse: as últimas ações policiais beneficiaram certos setores em detrimento a outros (e não estou falando de uma mera dicotomia "cidadãos de bem" X "bandidos"), como toda decisão política, por mais que a imagem de uma unidade de pensamento tenha sido formada. Alguns dos interesses por detrás dessa farsa parcial podem ter vindo da preocupação com a imagem da cidade que sediará eventos das Olimpíadas e da Copa do Mundo de Futebol, nos próximos anos. Mas acredito que muitos outros interesses escusos estejam envolvidos.

Se essa visão se confirmar, vimos apenas a consumação de mais uma medida paliativa e provisória para o Rio, criada sob a máscara da "resolução final", da "luta épica contra o mal". E assim, a sujeira é mais uma vez empurrada para debaixo do tapete, de modo absolutamente conveniente para os interessados mais poderosos: enquanto alguns criminosos são desalojados, vários outros mantém seus domínios, inclusive os milicianos, em plena re-expansão. E o pior: os problemas sociais reais, que afligem as comunidades periféricas, não são manejados; a polícia aparece, espanta os traficantes e, após o furor sócio-midiático inicial, se recolhe, se corrompe ou ambos. As preocupações iniciais das UPPs, de trazer o Estado inteiro (e não sua parcela repressiva, exclusivamente) esvanecem no ar. A exclusão social se mantém, mas apaziguam-se os ânimos mais acirrados da população e da mídia, sedentas por um frágil estado de paz imediata.


Pedro Mancini 


quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A re-radicalização ideológica da política nacional

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Passado quase um mês desde as últimas eleições, podemos apreender, com maior clareza, suas principais conseqüências sobre o comportamento político dos brasileiros e suas agremiações.

Como vemos em qualquer situação limítrofe de conflito, em que temos de nos posicionar diante de circunstâncias radicais, boa parte da névoa da hipocrisia e da falsidade se dissolve; é nos momentos de tensão, em outras palavras, que os indivíduos mostram suas verdadeiras faces, suas opiniões mais polêmicas e verdadeiras, usualmente camufladas para evitar discussões mais acaloradas e para alcançar resoluções consensuais.

Roberto DaMatta, em seu “Carnaval, Malandros e Heróis”, nos traz um exemplo interessante a respeito da revelação da realidade social mais obscura em certos momentos tensão: quando indivíduos não são reconhecidos pelo Outro como pessoas a quem se deve tratamento diferenciado, os primeiros podem revelar, de modo claro e agressivo – como pelo uso da fatídica frase “Você sabe com quem está falando?” – aquilo que realmente pensam sobre as regras morais em vigência. Nesse momento da interação face-a-face, a máscara da “igualdade de direito” e da “democracia” se esvai, revelando-se, em seu lugar, o caráter profundamente personalista e hierarquizado da sociedade brasileira. É o caso, por exemplo, de um cidadão que evita ser autuado pela polícia, ao revelar ser uma pessoa "importante", e não um "pobre coitado" qualquer.

No universo político, essa lógica não é menos verdadeira; assim como o mito da democracia racial se esvai em situações limítrofes, que convidam os indivíduos a revelaram seus preconceitos mais obscuros, uma eleição tão radicalizada quanto a última convida a dissolução da representação de uma sociedade brasileira apaziguada, que superou a divisão entre “direita” e “esquerda” e que consegue conviver, sem conflitos, com o diferente.

É claro que a redução da hipocrisia também pode trazer irritações; assim, desaponta saber que certas personalidades, que posavam como ideologicamente “neutras”, revelam uma faceta ideologicamente carregada , possuindo idéias que não compartilhamos. Mas esse auto-desmascaramento possui, também, seu lado bom, especialmente para o desenvolvimento da democracia brasileira: os posicionamentos político-ideológicos ficam mais evidentes, e com isso, mas fáceis de lidar, mais ponderáveis. Sinal de amadurecimento político-ideológico, talvez.

A direita, por exemplo, releva-se enquanto tal, em oposição àquela direita que esconde ser direita, que já atormentou o país por tanto tempo. Assim, dinossauros ideológicos, como a TFP, saem de seu torpor para apoiar candidatos e posturas políticas; faculdades suportadas pela Igreja, como o Mackenzie, revelam sua repulsa a leis seculares, como a que condena a homofobia.

Logicamente, não se trata de um movimento linear: não é a primeira vez que ocorreu, na história brasileira, uma segmentação clara e radicalizada entre direita e esquerda. Especialmente durante o período da Guerra Fria, o Brasil foi contaminado severamente pela dicotomia global entre o “socialismo real”, representado e exportado pela União Soviética, e as potências capitalistas e liberais encabeçadas pelos EUA. Desde o período Vargas até os anos finais da Ditadura Militar, a sociedade brasileira viveu momentos de profunda radicalização ideológica, com mobilizações nas ruas a favor de ambos os lados, movimentos armados e interferências da Igreja em assuntos de responsabilidade do Estado.

Finda a polarização ideológica entre Oriente e Ocidente, porém, a esquerda brasileira, seguindo a mundial, sofreu um doloroso processo de descrença sobre seu modelo de sociedade e de reformulação de sua atuação. A direita, desprovida de um rival ideológico à altura, também se arrefeceu, dominando a realidade brasileira com maior tranqüilidade, e de forma mais velada – mantendo aspectos mais radicais de sua ideologia escondidos debaixo do tapete. Junto com os Comunistas, os anti-comunistas também debandaram, provisoriamente, da política nacional.

A Nova República, obtida mediante um pacto conservador com as elites que compuseram o Regime Militar, sentiu-se livre para aplicar os mandamentos neoliberais impostos pelo “Consenso de Washington”; à esquerda, sobrou o papel de pura crítica ao modelo dominante, obtendo poucas vitórias e derrotas colossais – pagando o preço, enfim, por seu autoflagelo e por sua falência ideológica pós-URSS.

Reorganizada em torno da figura carismática de Lula, a esquerda finalmente voltou ao cenário político brasileiro conquistando, por voto, seu cargo mais importante. O PT, a partir daí, impôs sua própria agenda como “a” agenda esquerdista para o país, com todas as suas limitações – como a ausência de uma grande ruptura quanto às práticas mais nefastas de corrupção e fisiologismo. Direita e esquerda, porém, são posições relativas, e os petistas geriram um governo que aplicou medidas mais direcionadas ao combate à pobreza extrema e à desigualdade, dois dos maiores problemas estruturais do país; fizeram escolhas que, de fato, os distanciaram de políticos anteriores, especialmente os de orientação neoliberal. Contestaram o velho e conhecido discurso, presente inclusive nos militares, de “fazer o bolo crescer” antes de distribuí-lo, e decidiram já cortar uns pedacinhos desse bolo em prol dos mais famintos, inserindo-os no mercado consumidor.

A prova maior de que o Governo Lula-Dilma pode ser inserido na disputa ideológica mais ampla entre os espectros Direita-Esquerda, e que essa dicotomia não está de modo algum ultrapassada, é essa re-radicalização da política, que apontei inicialmente. Com a queda da supremacia de uma visão de mundo – a direitista, seja ela ultra liberal, seja ultra conservadora -, vista como “natural” desde o fim do Regime Militar, e o surgimento de visões antagônicas de gestão do Estado, como a proposta e aplicada por Lula, Dilma e aliados, as discussões de cunho ideológico saem dos bueiros e voltam a borbulhar. O medo de soluções anti-institucionais às disputas aflora, é claro: esteja esse pavor presente em uma hipotética atração dos governistas por um regime censor, ou vinculada à chance de antigos coronéis e novos perdedores eleitorais se aliarem por um golpe de Estado. Mas ainda prefiro esse estado de permanente tensão, do que um em que a forma de governar não pode ser contestada, sendo vista como “evidente”, imune à crítica e à competição com outras perspectivas; um estado social de apatia, dominado por um “mito” da vitória absoluta de uma direita mundialmente orientada.

Pedro Mancini

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Possibilidades de interpretação crítica sobre as relações mediadas por novas tecnologias

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Complementando a postagem anterior, exemplificarei algumas possibilidades de interpretação crítica sobre as relações sociais virtualmente consolidadas. É claro que, como já apontei, muitas das críticas tecidas contra as interações virtuais são preconceituosas e catastróficas, sem um aprofundamento real sobre os problemas que elas nos colocam; mesmo assim, apontam questões que merecem ser abordadas, embora usualmente ignoradas pelos defensores mais "fanáticos" das novas tecnologias.

É possível, por exemplo, questionar o conteúdo das relações estabelecidas e mantidas por ferramentas tecnológicas mais recentes. O sociólogo Dominique Wolton é um dos que pensam nesse sentido, considerando que vivemos em uma "sociedade individualista de massas", potencializada por redes sociais como o Facebook. Negando a idéia segundo a qual a internet fomentaria um debate democrático, com o convívio de indivíduos que pensam de modos distintos, estimulando, portanto, a formação de sociedades virtuais globais, Wolton considera que as redes sociais e outras ferramentas de interação mais recentes fomentam modos comunitários de associação - formados por indivíduos que pensam de forma equivalente e possuem interesses comuns. De fato, o Twitter, por exemplo, têm se manifestado como um exemplo típico dessa forma de sociabilidade: pessoas "seguem" aqueles que pensam como elas, e criam verdadeiras "panelinhas comunitárias", agredindo aqueles que pensam de forma distinta, ao invés de conviverem pacificamente com eles. O período eleitoral salientou essa característica do Twitter, e cultivou sementes de discórdia que ainda perduram - como as últimas manifestações xenófobas contra nordestinos, encabeçadas por jovens de classe média do Sul e Sudeste do país. Essas formas de intolerância comunitária encontram nas redes sociais a possibilidade de propagação, dada a convivência de indivíduos que compartilham de suas opiniões (inconfessáveis em público), e um ambiente propício para exercitar seus dogmas (por meio de agressões verbais contra adeversários, vistas, de modo ilusório, como imunes à punição legal). 

O sociólogo francês vai mais longe: pontua que as formas de interação virtuais não fomentam relações de profundidade, "verdadeiras"; pelo contrário, estimularia aquilo que ele chama de "solidão interativa", onde a conectividade exagerada convive com uma falta de laços sociais significativos. Pontua, ainda, que a comunicação "de fato", aprofundada, é escassa nas relações virtuais, dado que esta exigiria não apenas a emissão unilateral de opiniões, como um retorno da recepção - uma resposta dos interlocutores. Nesse momento, me identifico com o pensador, já que percebo essa situação em meu próprio blog: por mais que eu publique, não consigo fomentar muita discussão entre meus leitores, que raramente comentam meus escritos. E essa é uma situação muito comum, ao menos entre os blogs menos famosos. 

Como já indiquei, contudo, não temos que mergulhar de cabeça nessas críticas nefastas sobre as relações estabelecidas pelas novas tecnologias; temos, ao contrário, que problematizá-las, retirando delas o que fizer mais sentido - e repudiando os exageros e deficiências de apreensão. Assim, é passível que crítica que o sociólogo não qualifique as relações virtuais, taxando-as, simplesmente, de "falsas" ou pouco profundas. Que espécies de relações se formam e se mantém nas redes sociais? Esse questionamento foi evitado pelo pensador (ao menos nesse texto introdutório que linquei), que parte de um conceito ideal daquilo que seria uma relação social "verdadeira" ou "profunda". Assim, as relações virtuais resumem-se a uma "não-relação", por não cumprirem os requisitos imputados pelo autor (de profundidade e constância). 

Além disso, não podemos ignorar que a difusão das novas tecnologias também acarretou em claros benefícios: hoje em dia, um blog pessoal, por exemplo, pode ter alcance global, e a informação acaba sendo muito mais difundida. É claro que essas formas de comunicação mais modernas são passíveis de críticas - boatos, preconceitos e outras informações danosas são tão ou mais espalhadas pela internet do que informações úteis -, mas o que necessitamos é de um entendimento mais aprofundado sobre as formas e conteúdos típicos desses meios. 

Trafegando pela vertente frankfurtiana, o filósofo alemão Christoph Türcke, por sua vez, analisa a sociedade contemporânea pela perspectiva da sensualidade inerente a seus mecanismos. Para ele, a sociedade do pós-guerra transformou-se em uma "sociedade da sensação", imersa em um excitamento contínuo, com efeitos similares ao das drogas.

Nesse sentido, as ferramentas tecnológicas aparecem como fonte de injeções sensuais, alienantes e entorpecentes, que inculcam em seus usuários, com toda essa "magia" hiper-real, uma relação de dependência. Diz o filósofo, em entrevista para a Folha:

Vício como fenômeno particular --como dependência física de certas substâncias (drogas)-- está modificando um fenômeno geral, pois a máquina audiovisual também vicia.

Quem presta atenção à tela se dedica a ela, vive uma dependência crescente dela, vincula suas expectativas, sua economia emocional e intelectual a ela.

Assim como o drogado aplica injeções de heroína, uma sociedade que depende da tela se expõe a bilhões de choques imagéticos.

O choque singular é mínimo, quase imperceptível e não faz mal. Bilhões, no entanto, destroem justamente a atenção que elas atraem magneticamente.

Mais uma vez, as análises ultra-ácidas sobre a tecnologia devem ser relativizadas. Manuel Castells, com suas limitações, demonstrou que a taxação do uso da internet como "vício", embora fácil, não é tão verdadeira assim; os indivíduos, para ele, não deixam de se relacionar socialmente por conta de sua imersão nos mundos virtuais. Pelo contrário, tenderiam a interagir com maior freqüência com seus amigos e familiares mais íntimos, pelo uso das ferramentas comunicativas mais recentes. 


Entre os dois analistas, um catastrófico e outro otimista, fico, novamente, com um meio-termo: o indivíduo usuário das tecnologias virtuais não está isolado do mundo, alienado de sua própria existência material; antes, está consideravelmente mais ligado a esse mundo do que no passado - ao menos em termos quantitativos, pelo número de relações e contatos estabelecidos. Por outro lado, devemos nos questionar: como o indivíduo se relaciona com seu universo, quando esse relacionamento é mediado por  novas tecnologias? Podemos simplesmente falar de uma "não-relação", ou podemos, ao contrário, explorar mais a fundo esses novos tipos de interação, sem recair em reducionismos simplistas - vinculados ora a um otimismo, ora a um pessimismo desmedidos?

Pedro Mancini

sábado, 13 de novembro de 2010

As análises rotineiras sobre o virtual: entre o catastrófico e o maravilhoso

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Mudando um pouco da temática política, hoje pretendo discutir brevemente sobre a sociabilidade nas redes sociais - e as formas mais correntes de pensá-la. Tenho peculiar interesse nesse tema, uma vez que estudo as regras de interação próprias de uma realidade virtual, o Second Life

Movido por esses interesses, assisti, no último sábado, a uma mesa de debate promovida pela Nextel, que contou com a presença de Contardo Caligaris (psicanalista), Xico Sá (escritor e jornalista) e Maria Isabel Botticcelli (executiva do site Metade Ideal). Realizado no auditório do Museu da Imagem e do Som, o debate tinha como título: "Mais do que Tecnologia, é o que Você Faz com Ela - Tecnologia e Relacionamento". Seu objetivo era tecer algumas reflexões sobre os modos como relacionamentos pessoais e amorosos se desenrolam, quando mediados por experiências tecnológicas. Ganharam destaque a sítios de relacionamento e ao uso de "sms", como formas de comunicação e estabelecimento de relações de intimidade.

Sem dúvida, o debate foi interessante, levantando considerações curiosas e importantes sobre os relacionamentos ditos virtuais. Caiu, todavia, em um pecado que vejo como corriqueiro, entre aqueles que ousam discutir a "questão tecnológica": pensando de modo maniqueísta, os debatedores concentravam-se muito mais em fazer uma defesa eufórica e acrítica da virtualidade, do que em subsidiar um debate de fato, pontuando seus prós e contras - ou, ao menos, problematizando um pouco as relações possibilitadas pelas novas tecnologias.

O debate virou, dessa forma, um espaço de divulgação das maravilhas promovidas pela tecnologia, sem grandes questionamentos a respeito de seu caráter ou da forma e conteúdo dos relacionamentos tecnologicamente mediados: cada crítica, usualmente elaborada por alguém da platéia, era imediatamente rechaçada ou compensada com um verdadeiro arsenal elogioso direcionado às interações virtuais. 


Caligaris chegou a dizer que era "preferível" findar um relacionamento via torpedo sms do que prosseguir com um relacionamento "zumbi" - sustentado artificialmente, estando "morto" em essência.  Ora, longe de mim discordar desse posicionamento, quando pensamos de modo maniqueísta, ou seja, se pensarmos que ou terminamos um relacionamento por mensagem instantânea, ou mantemos um relacionamento "zumbi". Mas, além de o mundo não ser assim, tão preto-no-branco, não basta nivelarmos por baixo para pensarmos a tecnologia: é preciso compreender o conteúdo e a forma de um relacionamento que acaba, simplesmente, com uma curta e fatal mensagem de texto. O que isso significa? O que diz sobre as relações interpessoais na contemporaneidade? No intento de repudiar os críticos desse modo de agir, deixa-se de lado respostas a tais perguntas.


O evento falhou, assim, por assumir um lado radicalizado da discussão, apegando-se a uma defesa ideológica da tecnologia em si mesma. Infelizmente, na maior parte das vezes os posicionamentos sobre o tema dividem-se entre essa espécie de "adepto entusiasmado" e aqueles "críticos apocalípticos". Os debatedores marcaram bem sua posição ao tecer críticas ao lado oposto do espectro - àqueles que "demonizam" a internet, vendo-a, tão somente, como fonte de alienação e de vários outros males sociais. Ao adotar a postura diametricamente oposta, contudo, associam-se a formas rasas e insuficientes de compreensão da tecnologia, que vemos, por exemplo, em sociólogos como Manuel Castells e em filósofos como Pierre Lévy.


É inegável que os autores mencionados pensam sobre as relações virtuais de modo inteiramente distinto - o primeiro nega, veementemente, que as interações com o computador isolem socialmente os indivíduos tecnologicamente inseridos, enquanto o segundo, muito mais entusiasmado em suas interpretações, diagnostica o advento de uma verdadeira (e positiva) revolução na sociedade, a partir de um novo nível de virtualização por ela alcançado. Ambos recaem, contudo, no equívoco do "deslumbramento" com essas novas ferramentas tecnológicas: a vêem de modo absolutamente positivo, menosprezando quaisquer críticas sobre elas. Castells, por exemplo, chega a afirmar que o uso do anonimato, por meio de personagens virtuais, restringe-se a usuários infanto-juvenis, que ainda "estariam estabelecendo suas identidades" para a vida. Ora, pelo que outros estudos - inclusive o meu - apontam, muitos adultos também utilizam-se do anonimato para interagirem socialmente; aliás, diversos sociólogos, desde a década de 1970, já assumiram que nossos identidades (se é que podemos utilizar essa alcunha) estão em contínua formação, adaptando-se aos vários ambientes de interação em que nos envolvemos; assim, os adultos não teriam uma hipotética "identidade pessoal consolidada" de uma vez por todas. O que a negação da importância das relações virtuais anônimas parece esconder, em Castells, é a possibilidade de compreender esse fenômeno de modo mais crítico e aprofundado, sem cair em um otimismo ingênuo.


É claro que as análises catastróficas são igualmente falhas; ao ressaltar apenas os aspectos negativos da virtualidade (seu caráter "alienante", "padronizador", "banal", "narcisista" ou "hiper-real", por exemplo), desprezam a necessidade de interpretar sua própria lógica de funcionamento - e de entender a mente dos próprios adeptos da tecnologia, que não a vêem do mesmo modo. Condena-se, de antemão, os modos de ação da população virtualmente inserida, sem tecer análises sobre suas representações simbólicas e sobre o conteúdo de seus relacionamentos informacionais. 


Em suma, vejo que temos um longo caminho a percorrer, quando se trata de analisar a fulminante propagação de relações virtualizadas. E o pior: o desenvolvimento frenético de novas tecnologias e formas de se comunicar, a cada ano, torna ainda mais difícil a missão de desenvolver interpretações atualizadas: o objeto de estudo avança de forma muito mais veloz do que o pobre cientista. Enquanto as análises puramente condenatórias ficam paradas no tempo, utilizando arsenais teóricos arcaicos, as formas mais apaixonadas de vislumbrar as tecnologias detém, em geral, a vantagem de pensar sobre as maiores novidades do ramo, desenvolvendo novas teorias e metodologias; o preço que pagam por essa atualização, contudo, é o abandono de interpretações melhor desenvolvidas sobre o fenômeno. Vislumbrando o horizonte, deixam de olhar com profundidade sobre o próprio entorno. Cabe aos pesquisadores futuros alcançar um ponto de equilíbrio, situado no espaço pouco explorado entre o "apocalíptico" e o "maravilhoso": um ponto de "realismo", menos imbuído de preconceitos (positivos ou negativos) sobre a sociedade dos relacionamentos virtuais.  




Pedro Mancini




quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A derrota (provisória e limitada) do radicalismo desconcertado

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O resultado das eleições não significou, simplesmente, a vitória de um projeto político sobre outro. Aliás, uma das críticas feitas à campanha do Serra foi, justamente, a respeito da ausência de um projeto político próprio. Creio que, para além disso, o resultado das urnas pode ser interpretado, parcialmente, como uma derrota relativa e provisória de um fundamentalismo moral, ideológico e até religioso acionado pelo próprio processo eleitoral, que buscou a desqualificação e demonização absolutos da candidata petista e de seus aliados. 

Essa vitória não foi absoluta, e nem pode ser simplificada como resultado de um simples embate entre um lado "razoável" e outro "radical": pautando-se em análises preconceituosas e sem fundamento sobre o adversário, militantes e simpatizantes do PT, como disse em minha última postagem, também tentaram desqualificar moralmente o candidato José Serra; esta foi uma tática generalizada durante o segundo turno eleitoral.

Mas houve diferenças importantes na adoção dos discursos radicais pelos dois: tendo progressivamente sua imagem colada à do Presidente Lula, Dilma Rousseff rapidamente ultrapassou seu rival nas intenções de voto no primeiro turno, consolidando sua liderança na disputa. Dependente da popularidade do atual Presidente, que já lhe garantiu votos suficientes para sua eleição - embora não no primeiro turno -, a candidata não precisou partir para a baixaria tanto quanto Serra; só o fez, efetivamente, como resposta aos ataques tucanos, percebendo que os últimos surtiram algum efeito (o suficiente para impedir uma vitória avassaladora do PT). Ainda assim, recorreu mais a uma apelação com argumentações políticas programáticas (como a taxação de Serra da alcunha de "privatista"), expondo a biografia política do ex-governador paulista e de seu partido, do que a uma apelação moralmente carregada sobre características pessoais do candidato. 

Partiu de José Serra, portanto, a iniciativa de se apropriar dos sentimentos mais obscuros e primários de seu eleitorado: o ódio religioso, o moralismo, o pavor desmedido e a demonização do adversário. Percebendo que não iria conquistar muitos votos se mantivesse uma associação forçada com o Governo Lula, prendendo-se aos seus sucessos, o tucano deu uma guinada violenta em sua abordagem, e passou a fuzilar o partido rival, aliando-se aos setores mais reacionários da sociedade - a TPF e outras alas religiosas radicais, como setores  evangélicos e católicos. Trouxe à tona a questão do aborto, posando de autoridade no quesito "defesa dos costumes cristãos", e aproveitou uma velha associação entre o PT, o terrorismo, e até o narcotráfico (explorada sob a figura agressiva de Índio da Costa, vice de Serra). É claro que a figura de José Dirceu, o demonizado-mor, não poderia faltar na estratégia do medo encabeçada pela campanha tucana. Os métodos de divulgação de seus ataques foram ainda mais obscuros do que seus conteúdos: e-mails e panfletos apócrifos, com ataques pessoais e manipulações de informações das mais bizonhas.Uma verdadeira campanha subterrânea.

Nos momentos finais da campanha, a sociedade esteve fortemente dividida, graças à exploração desses temas moralistas; Serra consegui arrebanhar o ódio de alguns setores, acionando um "estado de guerra" ideológico. De fato, a sociedade segmentou-se entre direita e esquerda, mas com um forte viés irracional, emotivo e moralista - em que as visões políticas de cada classe e espectro ideológico apareceram nas sombras, fundamentando, de modo muito indireto, os preconceitos morais. A desaprovação de políticas voltadas à população mais pobre foi convertida, assim, em ódio contra um partido "imoral", fisiológico, assistencialista e populista.

O tucano perdeu as eleições mesmo adotando essa estratégia, mas estabeleceu uma trincheira de resistência contra o Governo eleito - ação que o próprio tucano atribuiu a seus militantes, em seu discurso de derrota. Nessa sua rancorosa fala pós-eleitoral, ele não deixa dúvidas: continuará se portando como o baluarte da justiça, da moral e do "bem", tentando centralizar a oposição ao Governo Lula sob sua figura. Quer manter a divisão do país, estabelecida durante sua campanha agressiva, para manter-se enquanto voz política da direita.

Parte da população apoiadora da oposição ficou ainda mais raivosa com sua derrota, e esse sentimento ampliado de ódio continuará a ser explorado pelo ex-governador de São Paulo. Apenas um dia após a vitória da Dilma, proliferaram-se, inclusive, manifestações de xenofobia, primordialmente contra os nordestinos - na suposição de que eles seriam os únicos responsáveis pela vitória do PT nas urnas. Vale lembrar: Dilma ganhou com uma margem de mais de 12 milhões de votos, dos quais 10 milhões foram do NE; ou seja, ela teria ganho o processo eleitoral mesmo se desconsiderássemos todos os votos nordestinos. Aliás, mesmo se considerássemos apenas os estados do Sul e do Sudeste. Vejamos as principais manifestações xenófobas, proliferadas pelo Twitter:



Vemos, assim, que a onda de afirmações negativas deflagradas pela oposição, encabeçada por Serra desde o início da campanha eleitoral, especialmente por vias virtuais, baseia-se em preconceitos infantis e suposições falsas e incoerentes. A manipulação de informações é a base dessa estratégia: graças à distorção de dados, podemos imputar a "máscara do demônio" em nosso adversário, ao mesmo tempo em que protegemos nossa própria imagem. A rotulação de Dilma como "terrorista" é um dos exemplos mais notáveis desse fenômeno: com a manipulação de informações sobre sua participação na resistência à Ditadura Militar, a partir de dados emitidos pelo próprio regime da época, e a camuflagem do fato de o o próprio Serra ter sido classificado como terrorista e fichado pelo militares, faz com que circule a idéia de que a Dilma seja uma "criminosa" - enquanto o Serra seria um aguerrido combatente da Ditadura. Se virmos com clareza sua ficha no DOPS, contudo, não encontraremos tantas diferenças assim entre o Serra e a Dilma de antigamente - ambos vinculados à extrema esquerda, com simpatias pelo regime cubano, e ambos tratados como revolucionários perigosos pelos dirigentes do passado.


É claro que os dois participaram do movimento de resistência de modos distintos: Serra era militante do movimento estudantil e foi um dos fundadores facção esquerdista Ação Popular, com viés católico, e conquistou o cargo de presidente da UNE apoiado pelo Partido Comunista Brasileiro. Indo para o exílio após o golpe, regressou definitivamente ao país somente em 1975. Dilma, por sua vez, militou em um movimento mais aguerrido, que chegou a desenvolver ações violentas contra o Estado - a VAR Palmares .  Foi presa em 1970, torturada nos porões da Ditadura, e liberta dois anos depois. Apesar de suas diferenças, ambos os personagens que concorreram à Presidência foram classificados como "terroristas subversivos" pelo Estado - e esse fato é absolutamente desprezado pelos difamadores de Dilma, de modo que apenas a petista seja vista como extremista e vinculada ao terror político (sendo que não há nenhuma comprovação de que tenha participado diretamente de quaisquer ações armadas).

Esse radicalismo preconceituoso é que foi momentaneamente derrotado, após ter sido conjurado pelos tucanos. Como indiquei no começo, todavia, não verificamos uma derrota absoluta e inexorável desse monstro da intolerância e irracionalidade; na verdade, seria mais correto indicar que ele foi desperto durante a campanha eleitoral, e que, embora não tenha garantido a vitória daquele que o acordou, permanece ativo, mais furioso do que nunca, com a bordoada que levou das urnas. Prova disso é a já mencionada explosão xenófoba, que ainda persiste.

O radicalismo continuará, assim, armando a oposição. Mas terá de enfrentar uma força oposta tão ou mais poderosa, que prega a racionalidade e a moderação, e que saiu forte das urnas: a mesma força que resultou em um linchamento moral e jurídico dos "twiteiros" xenófobos e na aniquilação das ambições eleitorais de Serra. Pela primeira vez na história brasileira recente, o moralismo radical encontra forte resistência na sociedade: a voz da mídia não é mais absoluta e monolítica, diversificando progressivamente seus posicionamentos, e os demonizados do passado voltam de suas tumbas para se defender das acusações regressas. (Vide o caso de José Dirceu, que, após ser moralmente linchado e até levar bengaladas de um cidadão raivoso, peita de frente jornalistas do programa Roda Viva, demonstrando grande habilidade oratória e política - independentemente de seu grau de culpa nos casos mencionados.)

É claro que esse movimento, pela volta da razão e rejeição da demonização de adversários, comporta os seus próprios riscos: no caso, o favorecimento de um conformismo racional e um aumento da banalização de práticas políticas condenáveis, como a corrupção propriamente dita. Afinal, quando neutralizamos as emoções, reduzimos nossa capacidade de nos revoltarmos contra injustiças. É preciso, portanto, saber dosar as emoções, antes de querer sufocá-las, apenas; submetê-las, permanentemente, a uma revisão crítica racional, utilizando-as de acordo com nossas crenças fundamentadas, e sem nos deixarmos dominar por elas.

Acho que temos muito mais a ganhar do que a perder, se julgarmos os participantes da vida pública de modo fundamentado, analisando seus projetos políticos e visão de sociedade, sem cair em preconceitos reducionistas - ou então na armadilha de considerar os nossos representantes como uma massa homogênea (com base no preceito do "todos são iguais"). E parte fundamental desse comportamento razoável depende de um controle relativo sobre nossos impulsos, que, quando dominam as ações, nos tornam especialmente vulneráveis a manipulações de forças políticas obscuras, além de nos cegar para uma visão mais objetiva sobre os acontecimentos. Esperemos que a consciência continue a prevalecer sobre essa barbárie, apesar dos esforços teimosos de parte da oposição em utilizar sentimentos bárbaros (de ódio e pavor, principalmente) para benefício próprio, mesmo após as combativas eleições de outubro.

Pedro Mancini 






sábado, 30 de outubro de 2010

Posicionamentos políticos em tempos eleitorais conturbados:o domínio da irracionalidade

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O nível de polarização e radicalismo atingido pela disputa eleitoral obstrui análises amplas sobre a situação política atual. Mais do que isso, deprime qualquer analista que pretenda desenvolver uma interpretação minimamente racional sobre o momento presente. A apelação constante, de todos os lados, para tingir o adversário de “mau” esgotou os humores daqueles que não se contentam em ingressar numa competição apaixonada e sem muita mediação lógica.

Além disso, em um processo eleitoral tão radicalizado, já considerado por muitos o mais baixo da história política nacional, cada indivíduo se vê obrigado a assumir uma posição relativamente constrangedora. Não existe posicionamento inteiramente livre de críticas: mesmo o não posicionamento, viabilizado pelos votos nulo e em branco, pode ser visto como ingênuo e passivo.

Nas linhas seguintes, tentarei estabelecer um panorama geral dos posicionamentos políticos mais relevantes durante o período eleitoral – tentando escapar, o quanto for possível, da parcialidade que também me contagia (evidentemente).

Parte do eleitorado, mais fiel ao seu candidato, o defende cegamente, rejeitando críticas a ele e direcionando pesados ataques contra o candidato rival. São, em geral, os agentes mais ativos de ataques com viés calunioso. Desconfio, porém, que essa seja uma parcela minoritária – boa parte do eleitorado não é militante “cego” de candidato X ou Y. Muitos, na verdade, acabam se posicionando em um dos lados do espectro competitivo por exclusão, ou seja, por rejeitar por completo um dos candidatos em disputa.

 Tanto Serra quanto Dilma sofrem com isso: por um lado, há uma grande massa de eleitores anti-Dilma e anti-PT, concentrados nas regiões Sudeste e Sul, unidos pelo repúdio aos projetos e posturas políticas do governo atual. Acredita que Dilma personifica tudo o que há “de mal” no país: o fisiologismo estatal, a corrupção, as negociatas com adversários políticos do passado, o apoio a movimentos sociais que “espoliam a propriedade privada”, a defesa pela legalização de “males morais” (como o aborto, as drogas e os casamentos entre homossexuais), entre outros. Obviamente, não se trata de uma massa homogenia: estão presentes, aqui, tanto religiosos radicais, quanto liberais dos mais seculares, defensores de um Estado laico, moderno (do ponto de vista neoliberal) e inserido na ordem econômica global. Há aqueles mais irracionais, que associam a imagem de Dilma à de uma criminosa terrorista (por ter se levantado contra o Regime Militar) ou “assassina de crianças” (vide a própria Mônica Serra), e aqueles que, de modo mais ponderado, se assustam com atitudes do PT governista verdadeiramente passíveis de crítica – a conivência com a corrupção, sua política de alianças, e o favorecimento de militantes na distribuição de cargos do Estado.

De outro lado, há aqueles que, embora não concordem plenamente com as propostas e posturas políticas petistas, preferem estas àquelas usualmente levadas a cabo pelos demo-tucanos. Associam o candidato José Serra a políticas de privatização e sucateamento do Estado, assim como a uma postura de intolerância aos movimentos sociais e à defesa de um Estado neoliberal policialesco, baseado na ausência de políticas públicas efetivas, no desemprego e na repressão brutal à massa empobrecida (e a qualquer um que proteste contra as políticas em voga). Essas  práticas seriam reconhecidas em governos encabeçados pelo PSDB – tanto na presidência passada de FHC, quanto nos governos estaduais. E o governo Serra em São Paulo, por sua vez, seria a maior encarnação dessa visão de Estado e de sociedade do partido tucano.

Infelizmente, porém, um debate mais detalhado sobre a “natureza” das políticas defendidas por cada lado do espectro eleitoral é enormemente prejudicado pela baixaria generalizada - que centralizou, rapidamente, as discussões da campanha política. No reducionismo e no individualismo interpretativo que transforma cada um dos candidatos no “maior dos males”, aqueles que escolhem um dos lados são imediatamente considerados fiéis seguidores de seus candidatos, sem que se considere qualquer possibilidade de existência de um “apoio crítico”: um apoio relativo, e não absoluto, em que se admite uma escolha “tática” pelo candidato “melhor” ou “menos ruim”, com base em determinados critérios.

Assim, nessa polarização infantil, qualquer um que admita o voto na candidata petista é imediatamente associado à imagem de “petista”, “burro”, ou visto como “pelego” ou uma figura que “mama nas tetas do governo”. Por outro lado, qualquer apoiador de Serra, independentemente de seus motivos, é visto como “reacionário”, “neoliberal” ou “de direita”. É possível que uma ou outra dessas classificações seja, parcialmente, verdadeira; contudo, trata-se de  categorizações precárias e maldosas que obscurecem o debate, contribuindo para a reprodução do discurso do ódio mútuo, da radicalização política e, conseqüentemente, da ausência quase absoluta da possibilidade de diálogo entre forças políticas de grande representatividade.

É claro que também existem muitos que se recusam a assumir a defesa de qualquer um dos lados, anulando seu voto. Pelo que percebo, muitos deles são de esquerda, mas não acreditam haver diferenças substantivas entre a candidata de centro-esquerda e José Serra – o próprio Plínio de Arruda assume essa visão. Desenvolvendo uma perspectiva global sobre a política nacional, não acreditam que os dois candidatos que alcançaram o segundo turno representem chances reais de mudança do SISTEMA político em vigência; posicionamento esse que lembra o do diretor José Padilha, expresso em Tropa de Elite 2.

Coloco-me, aqui, entre aqueles que contestam o idealismo presente entre os que anulam seu voto a partir desse raciocínio. Questiono-me, na verdade, se a abstenção na defesa de qualquer lado não seria o posicionamento “mais fácil” a se adotar. É claro que, como já apontei, quem age desse modo sujeita-se a ser chamado de “passivo” e “cego”, mas sofrerá críticas menos ferozes do que aqueles que escolhem um dos lados, sendo massacrados pelo lado oposto. Além disso, acho que o pensamento que impera nesses sujeitos possui algumas incorreções.

Ora, é fato que o sistema não mudará por meio das eleições; os atores dessa grande “festa democrática” já estão inseridos no sistema - tal como a “festa” em si. Mesmo assim, é cegueira total igualar os projetos políticos e visões de sociedade dos dois partidos em disputa –não são apenas diferentes na forma, como causam impactos muito distintos, reais e objetivos, na situação do país e de sua população. E posicionar-se na disputa não significa, de acordo com minha argumentação, um apoio absoluto e acrítico a um dos candidatos e seu projeto, e nem uma abstenção da luta pela mudança de todo o sistema político e social, defendida com unhas e dentes por militantes da ala mais à esquerda do espectro político-eleitoral.

Eu, particularmente, sou contra o pensamento do “quanto pior melhor”, presente em muitos desses militantes, que torcem para provar que “todos os candidatos servis ao sistema são iguais, tendendo a piorar a situação da população trabalhadora". Acho que é possível melhorar, de modo objetivo – embora sujeito a críticas sobre sua forma e alcance  - a situação da grande massa da população brasileira a partir de dentro do sistema, como demonstrou o Governo Lula. Claro que são mudanças limitadas, se comparadas àquelas resultantes de uma alteração brusca no sistema econômico, político e social;  mas só por isso devem ser menosprezadas? E mais: uma adesão pragmática à defesa de mudanças inerentes ao sistema significaria uma indiferença ou negação da luta mais ampla pela alteração dessa estrutura política, que filtra e limita possibilidades mais amplas de mudanças? O pragmatismo exclui, necessariamente, o idealismo da mente do eleitorado? Pessoalmente, acredito que não. Por isso votarei na candidata Dilma Rousseff, prestando-lhe apoio crítico,  e sem perder de vista a luta contra o sistema ao qual ela está, tanto quanto Serra, submetida (embora o PT se aproveite de sua lógica de forma mais benéfica à maioria da população do que a aliança demo-tucana).

Espero que, com o fim desse momento eleitoral tão conturbado e cheio de farpas, tenhamos maiores chances de discutir essas questões de forma minimamente ponderável. Por hora, porém, temo que a ferida aberta pela enorme agressividade entre os candidatos demorará a cicatrizar, e que essa grande irracionalidade eleitoral prossiga, no mínimo, por boa parte do governo eleito. Em meio a tal polarização, ainda será muito difícil não ser classificado como "petista roxo" por apoiá-lo estrategicamente...e talvez por isso tantos prefiram manter-se na neutralidade.


Pedro Mancini

sábado, 23 de outubro de 2010

Bolas de papel, Marcelo Tas e a falácia da neutralidade midiática

3 comentários:
Apesar da tentação em escrever diretamente sobre a patética tentativa da TV Globo em transformar uma bolinha de papel em um rolo de fita capaz de ferir um ser humano, tratarei do assunto de forma mais indireta, discutindo a falácia do discurso da "neutralidade midiática". 

Evidente que, quando falamos da Rede Globo, poucos serão aqueles (se é que ainda existem) que contestarão a parcialidade de seus jornalistas e editores-chefe. Não é à tôa que, regularmente, a emissora é execrada no Twitter por milhares de usuários, e que já tenha rendido um documentário sobre seus esforços de manipulação dos telespectadores brasileiros. Ainda assim, corre a visão, entre muitos setores da sociedade, de que a Globo seria apenas uma exceção, em termos de parcialidade da mídia (assim como a Revista Veja e, de modo similar mas não idêntico, a Carta Capital); Enquanto a cada dia menos pessoas caem no discurso neutro vendido por alguns desses órgãos, que posam como "donos da verdade" que não escolhem lados  (a Carta Capital seria uma exceção ao admitir seu posicionamento político próximo ao PT, assim como o Estadão recentemente admitiu apoio ao candidato José Serra), vários outros veículos e órgãos da imprensa ainda posam e são vistos como "imparciais" ou "independentes". Às vezes, essa pretensão é exposta no próprio slogan do veículo, como no caso da revista IstoÉ. Outro caso notório pode ser encontrado nos programas televisivos de humor, especialmente quando possuem  atuação no universo político. Para explorar um pouco essa questão, contarei sobre uma experiência pessoal recente. 

Semana passada, tive a chance de assistir a palestra de uma figura notável do universo midiático brasileiro atual: Marcelo Tas, apresentador do CQC. Sua fala tratava sobre redes sociais, daí meu interesse em assistir; contudo, Tas não deixou de comentar sobre assuntos políticos, frente a uma platéia composta por alunos do ensino médio, vindo a argumentar contra a censura da imprensa e tecendo críticas ao Presidente Lula. Os posicionamentos do apresentador, para mim, não representaram nenhuma novidade ou problema. O que me chamou a atenção foi quando ele indicou que "existem ALGUNS" órgãos de imprensa PARCIAIS, que atuam politicamente a favor de certos agrupamentos políticos. Não somente nessa fala, mas em várias outras, percebi claramente, em Marcelo Tas, tentativas de vender a si mesmo, ao seu programa e à sua emissora a imagem de baluardes de "neutralidade axiológica": Eles estariam ACIMA da sociedade, observando-a e a julgando de "fora", como positivistas à la Comte ou Durkheim (já há muito contestados por sua "ingenuidade" em buscar apreender a realidade social de forma absolutamente neutra). Portando-se dessa forma, o apresentador equilibra-se em uma tênue e pouco definida linha divisória entre a mais pura ingenuidade e a simples má fé: possivelmente, tenta enganar a si próprio e a seus telespectadores, ao posar  de "representante da sociedade civil" - e não como voz de determinados setores dessa sociedade, vinculados a certos interesses de classe. O mesmo ocorre com o CQC, programa de Marcelo Tas que, apesar de seu tratamento inovador com a política, acaba, ironicamente, abraçando o valor jurássico da "neutralidade" da atuação jornalístico-humorista. 

O tipo de visão que critico, aqui, só se fundamenta mediante a "fuga" de um a questão fundamental: a sociedade não é um "bolo disforme", representado por uma virtual "sociedade civil" que aglomera todos os interesses e fala em nome da Nação; na verdade, e isso deveria ser trivial, estamos inseridos em uma sociedade multiforme, segmentada, onde vários interesses competem e se aliam, de acordo com as circunstâncias. Ora, os órgãos da imprensa estão muito longe de escapar de tal lógica, embora vendam a imagem de fazê-lo; em  maior ou menor medida, de forma mais ou menos explícita, defendem uma certa visão, política e ideologicamente marcada,  associada as suas posições estruturais nessa sociedade multifacetária.

De todo modo, é visível que a conjuntura atual desfavorece, progressivamente, a supremacia desse aparato ideológico. A difusão de formas de comunicação e sociabilidade online - muito bem representadas pelas redes sociais e blogs pessoais - fez eclodir o acesso a novas interpretações e pontos de vista que, muitas vezes, enfrentam frontalmente as perspectivas hegemônicas dos meios de comunicação tradicionais (emissoras de TV, rádios, revistas semanais e jornais diários). Não mais detendo o monopólio sobre a informação, esses meios não conseguem sustentar a imagem de neutralidade, que rui na mesma medida  em que os posicionamentos apresentados como "fatos" se vêem confrontados com perspectivas opostas.

A crise do discurso da neutralidade chegou a um ponto, na verdade, que vemos a própria mídia tradicional se contradizer sobre os mesmos acontecimentos: assim, foi o SBT quem iniciou o processo de desmascaramento da Globo no caso na bolinha de papel; e, enquanto vemos uma "blindagem" do candidato tucano feita pela Veja, Folha de S. Paulo, Globo, etc., a revista IstoÉ - enquanto posa de independente-  destaca-se do status quo ao direcionar duas matérias de capa seguidas à condenação das estratégias eleitorais oportunistas do PSDB (em especial, o uso da questão do aborto na discussão política, já tratado em minhas postagens passadas) e às denúncias de corrupção dentro da campanha tucana (materializada no caso Paulo Preto). Como acreditar na neutalidade da imprensa, quando seus órgãos apresentam perspectivas mutuamente excludentes sobre os fenômenos, mesmo quando não admitem algum grau de parcialidade?

Ignorando a obviedade da ruína desse discurso, a maior parte da mídia insiste em sua manutenção. Acredito, porém, que o progressivo desmascaramento da neutralidade forçará os veículos à  rápida adaptação, caso queiram manter um grau razoável de credibilidade e de aceitação de seu próprio público. Creio, ainda, que esse é movimento deveras positivo para um aumento progressivo da genuína liberdade de expressão, baseada no enfrentamento - sem a hipocrisia da "imparcialidade" - de idéias assumidamente antagônicas sobre "fatos" que são, na verdade, inseparáveis de interpretações já marcadas por preferências e ideologias, mesmo relativamente ocultas à primeira vista.

Para resumir a raiz de minha argumentação, a multiplicação das fontes de informação cumpre papel imprescindível na ruptura do discurso da "mídia imparcial, soberana e independente", que, por sua vez, é inimiga (ao meu ver) da liberdade de expressão em seu caráter mais plural e libertário, fundamentada no livre acesso às interpretações múltiplas sobre os fatos, com a escolha do público sobre aquelas que se mostrarem mais  adequadas e pertinentes - que façam mais sentido para espectadores, leitores e ouvintes. Tal exercício é impossível quando a mídia de massas tem uma só voz, vendida como difusora da "verdade dos fatos" e vista como "desprovida de parcialidade". Como diria o ditado, "pior que não ler nenhum jornal é ler apenas um jornal"; e o tempo em que todas as fontes de informação detinham um só discurso, agindo como apenas um jornal, ficou no passado. À mídia tradicional, resta adaptar-se, admitindo seus posicionamentos, ou sofrer com uma contínua redução de seu público.


Pedro Mancini




domingo, 17 de outubro de 2010

Manipulações político-eleitorais sobre o aborto: o caso da Revista Veja

5 comentários:
Desculpem por me manter na temática eleitoral (e, mais ainda, na temática específica do uso eleitoral do aborto), mas, dada a última capa da Revista Veja, não pude resistir.

Trata-se, em minha opinião, da tentativa de manipulação do eleitorado mais patética e desprovida de fundamento, de fácil desmonte  por qualquer indivíduo minimamente informado sobre o funcionamento da política e sobre as diferenças entre políticas públicas, aprovações de leis e opiniões pessoais de candidatos. 

Bem, não consegui ainda a foto original da capa, mas vou descrevê-la brevemente. Ela é dividida em duas partes, uma superior e outra inferior, de modo que possamos lê-la de duas perspectivas diferentes. A Dilma aparece dos dois lados, sendo um deles com um fundo branco, e outro, com fundo vermelho. 

No lado de baixo, é exposta uma frase, atribuída à candidata petista, que revela um posicionamento supostamente pessoal, íntimo, da mesma: "Eu, pessoalmente, sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência". No lado superior, por seu turno, é revelada uma frase, da mesma candidata, repudiando a criminalização da prática abortiva: "Acho que tem de haver a descriminização do aborto. Acho um absurdo que não haja". A primeira frase foi dita em 2009, e a segunda, dois anos antes.

O argumento da revista é tão simples quanto fraco, e não deixa dúvidas sobre sua parcialidade. Vende-se que a candidata tem "duas caras", por mudar de discurso com relação à temática do aborto, teoricamente por motivações eleitorais. A  infantilidade do "erro" (para dizer o melhor) está na confusão entre opinião particular e concepções mais gerais sobre a sociedade, relacionadas com opiniões sobre a validade de determinadas leis e políticas públicas. Em outras palavras: ser pessoalmente contra o aborto não tem o mesmo significado que defender a proibição da opção de outras mulheres por sua realização. Afinal, viver em uma democracia é saber conviver com as diferenças de credo e de opinião - e um de seus pressupostos é permitir que esse outro, que pensa de modo diferente, conduza sua vida do modo que lhe bem convir, desde que essa condução não interfira na vida alheia. Isso é tão banal, que não mereceria, por si, muita discussão. Mas, infelizmente, o atual nível do debate eleitoral exige esse tipo de esclarecimento. No que tange ao aborto, na concepção de seus defensores, o direito de condução sobre a própria vida incluiria a decisão da mulher sobre um feto que ainda não poderia ser considerado um ser humano, sendo, portanto, uma parte de seu próprio corpo.

É claro que, no auge da "intimização" da política, muitos estão mais interessados nas opiniões pessoais de seus candidatos, especialmente no que tange a questões polêmicas, do que em seus programas de governo e concepções de sociedade. Por isso, eles ganham muito manipulando tais informações. Eu sei bem, por exemplo, que a Dilma é pessoalmente a favor do aborto, mas se viu obrigada a emitir outra opinião para não perder muitos eleitores. Do mesmo modo, já há a notícia de que Mônica Serra, a mulher do candidato do PSDB que disse por aí que a rival do marido era a favor da "morte de criancinhas", teria realizado um aborto no Chile; sem contar que, como já mencionei na última postagem, o próprio tucano foi o grande responsável pela implantação de normas técnicas de regulamentação do aborto em casos específicos, quando ainda era Ministro da Saúde. Hoje, porém, posa de grande figura religiosa, abraçando a bandeira de padres e pastores.

De todo modo, fico feliz ao ver que a candidata petista não tenha recuado de todo de suas opiniões sobre a descrimização do aborto, ao menos por hora, como bem mostra esse trecho do primeiro debate televisivo desse segundo turno:


* Obs: Há indícios de que o monopólio de um único candidato sobre a mídia esteja acabando: Logo após a Revista Veja publicar a matéria de capa mencionada, a Revista IstoÉ  lançou uma similar, mas com a figura de José Serra. Nela, são comparadas duas falas do tucano, uma negando conhecimento sobre Paulo Preto (que desviou mais de R$4mi da campanha do PSDB) e outra chamando o homem de "uma pessoa muito competente". Essa ousadia da Época em contestar o status quo midiático de apoio ao Serra também pôde ser vista na TV Record, que poderá pagar multa por colocar no ar uma reportagem que, supostamente, beneficiou a candidata Dilma Roussef. Juntamente com a multiplicação das fontes de informação, possibilitada pela proliferação das ferramentas de internet, e com o alcance de revistas opostas à grande mídia, como Carta Capital e Caros Amigos, novos modos de reportar o mundo político começam a destruir a visão monolítica que ainda impera nos meios de comunicação. 



Pedro Mancini