domingo, 30 de janeiro de 2011

O amor alienado por São Paulo

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No começo dessa semana, a cidade de São Paulo comemorou mais um ano de existência. Foi uma excelente oportunidade para muitos paulistanos expressarem o "grande amor" que sentem pela "terra da garoa" (embora devesse perder esse título há tempos - devendo ser chamada, talvez, de "terra das tempestades e dos calores absurdos"). Mas como compreender tal amor por um verdadeiro inferno urbano como esse, com seu caos viário, sua poluição, violência, desigualdade extrema e anos de incompetência administrativa - que resultam, por sua vez, em enchentes devastadoras e recorrentes?



Só consigo pensar em duas hipóteses: uma alienação compensadora, que também poderia ser chamada de "auto-enganação"; e uma alienação deveras conveniente, resultante de posições privilegiadas, em especial no que tange ao uso do espaço urbano. 

No primeiro caso, falo das pessoas que sofrem verdadeiramente com o caos urbano paulistano e, ainda assim, amam a cidade. Adoram-na apesar dos pesares, a despeito de todo o mal que lhe causam - valorizando, por sua vez, suas qualidades, tais como: as oportunidades de trabalho, o cosmopolitismo e a agitada vida noturna. Para mim, impossível não vir à mente a imagem da "mulher de malandro": aquela que apanha todo dia, mas que "ainda ama o marido", dizendo aos demais e a si própria, por exemplo, que "ele é uma boa pessoa quando não bebe... o problema é que ele bebe demais, e aí acaba me batendo. Mas depois ele pede desculpas, me dá um buquê de rosas e fica tudo bem! Até o dia seguinte..."

A comparação pode parecer um pouco exagerada, mas quando, por exemplo, passo um total de 4h30min dentro de  ônibus lotado a 33ºC, como na sexta-feira, ou quando dois dos ônibus em que embarco se envolvem em acidentes nas movimentadas ruas de São Paulo (como na quinta), não tenho vontade de dizer que "amo essa cidade", mas sim de abandoná-la permanentemente. E o que dizer dos sujeitos que encaram situações iguais ou piores que essas todos os dias, embarcando em trens abarrotados por horas até alcançar o conforto do lar? E dos milhares de moradores de rua que sofrem uma intensa luta cotidiana, apenas para comer decentemente? E aqueles que perdem tudo que possuem toda a vez que chove com alguma intensidade? Como ainda amar a cidade??? Seria porque, no fim-de-semana, podemos "beber para esquecer" os males urbanos, escolhendo entre as milhares de opções de lazer esparramadas pela cidade? Ou porque ela nos oferece a "oportunidade" de nos escravizarmos junto ao mercado de trabalho, de modo que possamos "usufruir" de todos os aspectos negativos do tráfego cotidiano?



Assim, entre aqueles que vivenciam os problemas cotidianos de São Paulo e ainda a amam, só consigo vislumbrar uma alienação de seus aspectos negativos em prol daqueles positivos. É claro que há muita riqueza cultural na cidade, mas ela não pode compensar todos os seus males, a não ser pela inevitável desvalorização da qualidade de vida enquanto valor: considerar que São Paulo vale à pena, para mim, é nivelar por baixo a própria vivência humana tolerável. 

Mas existe outra espécie de "amante" da cidade: aquele que não se apropria, por suas condições espaciais, de seus pedaços menos simpáticos - vias mais congestionadas, áreas afetadas por enchentes, etc. É particularmente fácil (e conveniente) "adorar" São Paulo quando se vive em áreas residenciais de alto padrão, por exemplo, tais como: Alto de Pinheiros, Itaim Bibi, Jardim Europa, Higienópolis, entre outras. Situação que se agrava quando o indivíduo em questão trabalha em uma região próxima de casa, enfrentanto uma situação de trânsito cotidiana bem menos caótica do que aquela vivida por uma grande massa de paulistanos.

É claro que não podemos generalizar, pois ainda existem muitos que habitam áreas mais favorecidas, e mesmo assim enfrentam grandes intempéries no dia-a-dia; mas, além de serem apenas uma parte dos casos entre os favorecidos, é evidente que paulistanos de diversas classes e regiões são afetados em diferentes graus pelas mazelas da cidade; logo, os prejuízos na qualidade de vida do funcionário que se desloca de sua residência em Pinheiros para uma empresa na Berrini  são bem menos significativos do que de alguém que desloca-se a cada dia do Itaim Paulista, extremo leste da cidade, para uma região central.

Similarmente, é óbvio que o acesso a serviços e aparatos de lazer é extremamente desigual - tanto no que tange às diferenças de renda, quando das de localidade. E essas diferentes formas de apropriação do lado "bom"da cidade também podem trazer consequências distintas para a avaliação da mesma: aqueles com fácil acesso às regiões de Pinheiros, Bela Vista, Vila Madalena, Moóca, ou Tatuapé (para aquela "cervejinha do happy-hour"), podem ter uma avaliação mais positiva sobre sua cidade do que aqueles que não possuem tal acesso.

De todo modo, o ponto que almejo destacar é o seguinte: inevitável que aqueles que "amam" São Paulo, entendida enquanto um complexo urbano com algum sentido unificado, está agindo de forma mais ou menos alienada. Sua alienação pode ser fruto de um sistema individual de defesa, em que precisamos nos "enganar" de que moramos em um bom lugar para esquecer onde vivemos de fato; mas também pode derivar de uma posição confortável na cidade, que permite um simples ignorar de suas condições negativas.  Não vejo problemas em gostar de sub culturas ou locais específicos de São Paulo, mas apreender de modo positivo uma visão generalizada da mesma não passa de um excesso de miopia.

Durante minha vida pré-acadêmica, um professor de Geografia do Cursinho Objetivo - o Professor Nogueira -, com todo o jeito de "animador de torcida" típico dos professores dessas instituições preparatórias para o vestibular, dizia uma coisa interessante: "Não entendo essa coisa de 'orgulho' ou 'vergonha' de ser brasileiro. Nós não escolhemos em que país nascemos! Ninguém diz: 'Eu tenho orgulho de ser um vertebrado! Simplesmente nascemos assim". Por trás dessa idéia, está a noção de que só devemos sentimentos de orgulho ou vergonha aquilo que concerne às nossas próprias decisões individuais - e não aquilo que nos é imposto externamente. Isso não significa, porém, uma simples indiferença com relação às condições a que estamos submetidos contra nossa vontade; em verdade, permite-nos um olhar realista e afastado dessas situações, um reconhecimento de suas qualidades e defeitos com um menor número de ilusões. Acredito que o mesmo possa ser dito sobre São Paulo: ao invés de cultivarmos sentimentos enganadores de simples "orgulho", "amor", "raiva" ou "vergonha", devemos nos afastar minimamente dessas intempéries emocionais e apreender com algum realismo as condições da cidade, com seus prós e contras. Apenas mediante esse exercício de afastamento e choque de realidade, os paulistanos poderão abrir os olhos para as condições sub humanas a que muitas vezes estão submetidos, APESAR das boas formas de apropriação urbana possíveis, cada dia mais raras e menos reconfortantes.

Pedro Macini

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Estratégias interativas e o convívio familiar saudável

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Viagens de férias: sempre ótimos momentos para exercer a chamada "observação sociológica de boteco". Especialmente quando há presença de familiares.

A despeito de ser visto, por vezes, como a "ovelha negra" da família (ao menos no quesito ideológico), tentei interagir com a mesma em minhas férias, quando fui convidado a passar uns dias na casa de praia de minha tia.

Esse meu interesse não surgiu do nada, é verdade; nessa altura da vida, momento de grandes transições pessoais, começo a perceber o quão importante é um vínculo comunitário, como aquele típico das relações de parentesco (e outras, que nos são "impostas" pelas circunstâncias - de vizinhança, comunidade nacional, entre outras, em que se predomina um forte caráter emotivo). Embora as relações de tipo societário (relações profissionais, por exemplo, baseadas no convívio com o diferente e pautadas por ações mais racionais que propriamente emotivas) garantam, mais plenamente, o estabelecimento da individualidade, a falta de ligações comunitárias torna especialmente difícil trafegar pelos perigosos mares da fria sociedade de indivíduos anônimos e amizades pouco profundas - hoje, expandida pelo universo das redes sociais.

Mas se comunicar, atualmente, com a família ou outros "companheiros de comunidade", em uma sociedade tão fragmentada como a nossa, exige um verdadeiro malabarismo interativo. Como cada indivíduo tende a possuir uma opinião política, religião, time de futebol, além de vínculos com grupos e instituições distintos, interagir de forma positiva, não-conflitiva, com pessoas ligadas a você apenas por um laço comunitário demanda grande esforço. É difícil, em outras palavras, dar ênfase ao que possui em comum com um grupo quanto tantas outras coisas possuem de diferente. Qualquer deslize na interação, e inicia-se uma acalorada discussão sobre temas polêmicos, com resultados potencialmente catastróficos para os relacionamentos sociais envolvidos (ao menos a curto prazo). É claro que existem arenas específicas para que idéias antagônicas se enfrentem frontalmente, administradas pelas capacidades argumentativas dos envolvidos; mas não acredito que o ambiente praiano, onde a maior intenção seria o apaziguamento pessoal das agitações da vida urbana, seja o palco mais indicado para esse embate de idéias.

Assim, caso exista a vontade de passar um tempo agradável com a família, é de vital importância saber lidar com todas as estratégias e ritos de interação que regem nossa sociedade moderna - muito bem analisados, no que tange à sociedade americana, pelo canadense Erving Goffman (em obras como "A representação do Eu na vida cotidiana", "Relations in Public" e "Interaction Ritual").

Talvez a estratégia mais indicada, para esses casos, seja a da "evitação": simplesmente "fugir" de conversas polêmicas, que, sabidamente, podem fazer os ânimos se exaltarem. Sabendo que ninguém na casa compartilhava meu posicionamento político, evitar falar sobre o assunto protegeria tanto a minha face (já que eu não posaria como "radicalóide" ou "comuna fétido") perante a família, quanto a face de meus familiares - que não seriam acusados de "elitistas" ou "reacionários". Estabelece-se, assim, uma trégua político-ideológica, em prol de um convívio familiar apaziguado.

Aqui, cabe tecer dois comentários paralelos:

Em primeiro lugar, por que se esforçar tanto para fugir de polêmicas? Como já disse no começo da postagem, acredito que todos nós precisamos de algum suporte comunitário para suportar as pressões exercidas pela sociedade em seu aspecto mais impessoal - dependente de escolhas que são, com freqüência, acompanhadas de riscos. Mas há algo a mais a considerar: somos todos seres múltiplos, exercendo inúmeros papéis sociais simultâneos - não temos uma identidade fixa e pré-estabelecida, mas "exercemos" identidades diferentes, de acordo com as circunstâncias (ou, em outras palavras, com o ambiente de interação em que estamos imersos). Assim, eu sou um blogueiro, esquerdista moderado, filho, universitário, amigo, namorado, entre muitas outras coisas. E, por mais que os atores de cada grupo em que me relaciono - colegas de faculdade, namorada, parentes - possam conhecer mais de um aspecto de minha personalidade, é impossível expressar todos os meus aspectos em cada arena de interação.

Desse modo, não só é possível, como "natural" exibir apenas aspectos específicos de nossa personalidade àqueles com quem dialogamos. No caso de minhas férias, concentrei-me em revelar minha identidade de parente, desabilitando todas as características que poderiam me ligar ao "ativista político", em especial. Aspectos não tão polêmicos, como os inerentes à minha posição de sociólogo, não foram tão evitados - me dei o luxo, por exemplo, de analisar criticamente os vícios de meus parentes pelo Big Brother e pela novela das nove.

Importante ressaltar que isso não se trata, para mim, de uma falsidade ou mentira: não neguei, nem ocultei absolutamente, minhas posições político-ideológicas. Apenas não deixei que minha identidade política prevalecesse, supressando  seu exercício em meio ao ambiente familiar. Só com isso pude evidenciar aspectos pouco trabalhados de minha psiquê, como minha identidade enquanto parente, desnuda da influência de outros aspectos pessoais.

O segundo comentário relevante - que também ajuda a negar a falsidade de meu comportamento-, diz respeito à diferença entre o silêncio subserviente e a disciplina interativa. O fato de eu escolher atuar, apenas ou principalmente, como um parente, não significa que anulei totalmente outras características de minha personalidade. Felizmente, existem estratégias de interação que permitem que mostremos nossas diferenças e demonstremos nosso orgulho sem, por isso, ameaçarmos fortemente o bom convívio social; provocações pontuais, brincadeiras e "alfinetadas" permitem-nos evitar a subserviência, deixando claro que não concordamos com aqueles que interagimos - mas, antes, encontramo-nos em um provisório estado de trégua. É como se disséssemos: "Olha, estou sendo diplomático, mas isso não significa que concorde com você".

Assim, minhas opiniões político-ideológicas, assim como as de meus parentes, puderam extravasar na forma de micro-provocações, xistes e "tiradas". Graças a essas ferramentas comunicativas, mantivemos tanto nosso orgulho (com demonstrações claras de que não vendemos nossos posicionamentos) quanto a viabilidade de uma interação saudável. Em outras palavras: não foi necessário "entrar no tapa" (física ou verbalmente). Essa é uma façanha que não seria facilmente alcançada em fases anteriores, em que a única coisa que importava, para mim, era consolidar-me enquanto um indivíduo com idéias políticas próprias - alguém que colocava a boa convivência familiar abaixo da auto-validação identitária. Ou seja: talvez só estejamos aptos à convivência comunitária pacífica, em um contexto de ampla diferenciação social, se tivermos desenvolvido suficientemente nossa identidade, a ponto de deixarmos de lado, por um momento, a nossa fome por aprovação social.

Pedro Mancini


segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O estresse contemporâneo e o declínio da tolerência ao sossego

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Incrível como o ritmo frenético da sociedade contemporânea é capaz de disciplinar nossos corpos e mentes. Tive uma demonstração clara disso em minha pequena viagem de férias (algo que não fazia há tempos). 

Há anos sentia falta de uma viagem com a família, em um ambiente tranqüilo, para esquecer um pouco as agitações da vida cotidiana.  Mas não achava que seria tão difícil me adaptar a uma rotina diferente, depois de tanto tempo em um ambiente que tolhe profundamente minha produtividade com suas múltiplas demandas: durante dois ou três dias, depois que cheguei ao meu destino, meu próprio corpo mostrou dificuldades me se adaptar, estranhando os novos ares de tranqüilidade. No primeiro dia, problemas gástricos me afligiram; no segundo, acordei com a boca inexplicavelmente inchada. E ainda tive uma forte dor de cabeça entre o segundo e o terceiro dia de viagem.

Não pude deixar de pensar que meu corpo simplesmente rejeitava o novo ambiente, adaptando-se com grande lentidão às novas circunstâncias. Como ele poderia entender que, de uma hora para outra, havia abandonado um clima nocivo e com inúmeras distrações, e ingressado em uma área mais pacífica e amena, onde eu poderia encarar minha própria alma sem ser ter a visão obscurecida por toda espécie de obstáculos?

É claro que, eventualmente, acabei por me adaptar de forma plena. No quarto dia, minhas férias atingiram o seu ápice: minha noite de sono foi perfeita, acordei disposto como há tempos não ficava, e aproveitei o dia ao máximo: tomei sol, passeei, e até interagi com meus pequenos primos de segundo grau, com quem passei horas jogando baralho e jogos de tabuleiro. No fim, meu corpo aceitou todos os prazeres que aquelas férias lhe podiam proporcionar.

Mas o ritmo frenético da sociedade contemporânea não nos penetra de forma superficial; encrava-se nas entranhas de nossa alma. Assim, em pouco tempo já comecei a sentir a angústia típica de um afastamento desse mundo moderno, uma verdadeira crise de abstinência: preocupação com o tempo de produção perdido na praia, com as finanças, com questões profissionais menores, etc. Começara o declínio das férias: excesso de chuva, sobrecarga de jogos de tabuleiro, e sintomas  de estresse pela falta de estresse. Era hora de voltar à realidade.

E, realmente, parece que o ambiente conspirava a favor de todo esse meu desenvolvimento mental: agraciou-me com um excelente clima nos primeiros dias, atingindo seu ápice no momento em que meus sintomas de adequação à tranqüilidade se apaziguavam; decepcionou-me com suas variações climáticas quando fui acometido por ansiedades; e voltou a me animar com muito sol no dia de meu retorno à cidade grande. Voltei, enfim, com a impressão que descansei quase na exata medida que precisava e poderia - tendo, talvez, extrapolado um pouco a medida.

Mas meu corpo, eterno insatisfeito, iria novamente passar por um período de re-adequação. Sentindo o impacto de ser removido de um ambiente com o qual tinha acabado de se acostumar, para regressar a um local com um ritmo totalmente distinto, voltei a sentir alguns pequenos distúrbios - em especial, um princípio de gripe. No dia seguinte, é claro, já havia melhorado - o que apenas reforça a tese da adaptação.

Para resumir bem a questão, o estresse, em uma sociedade que nos conecta a inúmeras demandas concomitantes a todo tempo, envolve-nos de forma tal que coloniza até o que chamaríamos, outrora, de nosso "horário livre". Não existe mais como escapar: até mesmo em nosso descanso, somos impelidos a produzir - e a pressão materializa-se, nos poucos momentos em que somos bem-sucedidos nessa fuga da realidade, na forma de uma auto-pressão que pode se tornar insuportável. Eventualmente, após um choque de adaptação, nosso corpo pode até tolerar uns momentos de paz, é verdade; mas nossa tolerância ao sossego pode ter sido irreversivelmente reduzida ao mínimo.

Pedro Mancini

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Público, privado e íntimo no uso da internet: falência de uma promessa pós-moderna

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Desde seus primórdios até alguns anos atrás, a internet aparecia, para seus usuários, como uma espécie de "dimensão paralela", onde cada um de nós poderia "se realizar", expondo suas vontades e desejos mais íntimos. O anonimato, que tinha forte peso, protegia a imagem do indivíduo no mundo de fora das telas enquanto navegava pela rede. Os chats de encontros amorosos e sexuais bombaram, prometendo a realização de fantasias cotidianamente recalcadas. 

Assim, a internet era vista como um ambiente onde os indivíduos poderiam expor sua intimidade; de certo modo, era uma extensão da vida privada, com a grande diferença de que as relações eram voluntariamente estabelecidas (enquanto na esfera privada doméstica, por exemplo, grande parte das relações, salvo as amorosas e de amizade, era obrigatória - com os familiares, em especial). Com os contatos estabelecidos online, esperava-se um compartilhamento de interesses e intimidades similares ao de amizades e casos sexuais da vida física. 

Mas, com o desenvolvimento da internet e o engolfamento das relações físicas por ela, o caráter "íntimo" de seu uso ficou mais obscuro, difícil de discernir. Hoje, com a difusão das redes sociais e a redução da relevância do anonimato, não é mais possível garantir que as ações de um indivíduo na rede passarão incólumes em suas relações sociais de fora das telas do PC ou do celular: o seu empregador poderá saber de suas folias na noite, sua namorada poderá bisbilhotar seus scraps no Orkut e encanar com seus contatos no Facebook, fotos comprometedoras poderão se esparramar pelo mundo a uma grande velocidade, amizades poderão ser perdidas por um simples deslize. 

Os embricamentos entre público e privado ocorrem em vários níveis: no universo micro-social das menores interações, com diálogos privados expostos para outrens não diretamente envolvidos, e até nas vendas de informações pessoais de administradores de redes sociais para grandes corporações (vide o caso do próprio Facebook). É por isso que alguns já tem apontado para a impossibilidade de se pensar a sociabilidade das redes sociais a partir de conceitos fixos como os de "público" e "privado"; na verdade, as relações virtualmente fundamentadas se baseiam em princípios de ambas as esferas, não podendo ser classificadas por apenas um lado do espectro (as informações são, muitas vezes, compartilhadas publicamente, embora possuam conteúdo privado ou de foro íntimo). 

Muitos indivíduos já se deram conta das armadilhas inerentes a esse pensamento ingênuo, de que se pode "agir de modo livre" na internet. Usam, assim, as redes sociais de forma mais cautelosa, preocupados com a preservação de suas imagens offline, instrinsecamente ligadas ao seu comportamento virtual cotidiano. No Facebook de hoje esse auto-controle é mais visível do que, por exemplo, no Orkut de anos atrás; ainda vemos alguns deslizes graves, contudo, em redes como o Twitter (como nos casos de manifestações xenófobas, já discutidas em outra postagem desse blog - caso típico de exibição pública de opiniões privadas, que acarreta em fortes represálias para seus autores, já que possuem alcance público). Grande parte dos usuários já sabe, porém, que qualquer informação emitida poderá futuramente ser usada contra o usuário emissor, quando apropriada por um inimigo potencial ou real. A partir dessa preocupação, surgiram inúmeras recomendações de conduta online, que vão desde a previsão e prevenção de ataques pedófilos contra usuários mais jovens, até simples recomendações de etiqueta - códigos de conduta específicos para os meios de comunicação virtuais, que visam maximizar a convivência e minimizar as exposições de intimidades. Recentemente, o blog "Tec", da Folha de São Paulo, difundiu algumas dessas recomendações, objetivadas em todo um código de comportamento, apelidada de "netqueta":

"(...) E no que consiste a netqueta? É uma maneira de registrar certas condutas em redes sociais e locais semelhantes no ciberespaço, de modo que não incomode os demais.

Mais ainda, que não prejudique o próprio internauta --lembre-se: empresas checam as redes sociais em busca de “antecedentes” dos futuros profissionais ou candidatos a emprego. Já faz parte da cartilha de consultorias, e da própria internet.

Então, antes de postar aquela foto de lingerie um tanto quanto, hum, “sensual”, no seu Facebook, Twitter ou Orkut, dê uma lida rápida nas dicas dadas aqui embaixo (...):




 Evite colocar fotos simulando nudez, ou fotos de roupas íntimas. Não é sexy, é exposição demais --redes sociais também são como um encontro entre pessoas, então é como se você tirasse a roupa em um ambiente público. Lembre-se da capacidade de multiplicação da internet! Você pode se arrepender daqui a alguns anos, mas o Google pode continuar expondo essas fotos quando se busca pelo seu nome. Fotos de nudez explícita, nunca. Lembre-se: existem brechas em sites sociais que, inclusive, permitem o compartilhamento de imagens com pessoas que não são suas amigas por lá.

- Pule as descrições e pormenores de sua vida, em qualquer rede. As pessoas não se interessam por isso, e você cai no risco de ganhar um “hide” ou um “unfollow” dos seus amigos virtuais.
- Fotos de balada, fazendo pose de "poderoso", "jet-setter" ou "insider" podem dizer bem o oposto disso. Be careful!
- Não vale postar ensaios fotográficos amadores, feitos na escada de incêndio do seu prédio ou na sala de casa. Pelo simples fato de que não é bom ou bonito, é amador, por mais que você seja o Brad Pitt (ou Angelina Jolie, tanto faz)! Mas atenção: ensaios divertidos, com bom-humor e bom-senso sempre são bem-vindos.
- Diga não ao Photoshop. Retoques malfeitos podem ressoar pior do que uma beleza natural.
- Repudie fotos de si próprio no espelho e fotos de si mesmo sem olhar para a câmera. É meio forçado...
- Evite frases de efeito da Clarice Lispector. É uma grande escritora, sim, mas a leia antes. Conheça. Muito do que se difunde como sendo de sua autoria não é.
- Dentro disso, não tente impressionar demonstrando conhecimento sobre coisas que você não domina. Não é feio não saber das coisas. Sócrates, um dos filósofos mais brilhantes da nossa história (e era analfabeto, vejam só), resume: “só sei que nada sei”. Não é clichê, é real.
- Não tire foto de qualquer coisa e poste em redes sociais. Uma samambaia que é empolgante para um não é, certamente, para muitos outros.
- Saia fora de descrições minuciosas sobre as suas viagens. Seja sucinto. E poste um monte de fotos depois, elas falam por si só. Acessa somente quem quiser vê-las. E fim de papo (...)".


Pois é, navegar pelas redes sociais ficou muito mais sem graça, de certo ponto de vista: esse tipo de conjunto de regras de conduta, como o exposto pela Folha, limita enormemente as possibilidades do agir  espontâneo e livre, promessa vendida pelas ferramentas desenvolvidas na sociedade dita "pós-moderna". Vemos que, enquanto as novas formas de comunicação virtuais não são absorvidas pelas esferas mais "físicas" de interação, essa promessa até que se cumpre minimamente: Quando a esfera virtual se mantém como uma espécie de "dimensão paralela", deslocada de nossas relações físicas, tendemos a nos manifestar de modo menos limitado, buscando mostrar "quem de fato somos" pela exposição de depoimentos, opiniões e até imagens e vídeos que revelam características que - em geral - só exibimos para nossos contatos físicos mais íntimos. O anonimato foi uma das ferramentas empregadas para viabilizar esse "isolamento" do mundo virtual sobre o mundo físico. Conforme o universo virtual é absorvido pelas outras esferas - quando nossos chefes, amigos, amores e vizinhos também compõem nossa rede de contatos e/ou podem acessar livremente as informações que emitimos -, contudo, vemo-nos cada vez mais amarrados a regras de sociabilidade muito similares àquelas que balizam nosso comportamento em ambientes públicos da vida cotidiana. E, assim, a promessa da "pós-modernidade" perde boa parte de seu sentido.



Pedro Mancini
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