No começo dessa semana, a cidade de São Paulo comemorou mais um ano de existência. Foi uma excelente oportunidade para muitos paulistanos expressarem o "grande amor" que sentem pela "terra da garoa" (embora devesse perder esse título há tempos - devendo ser chamada, talvez, de "terra das tempestades e dos calores absurdos"). Mas como compreender tal amor por um verdadeiro inferno urbano como esse, com seu caos viário, sua poluição, violência, desigualdade extrema e anos de incompetência administrativa - que resultam, por sua vez, em enchentes devastadoras e recorrentes?
Só consigo pensar em duas hipóteses: uma alienação compensadora, que também poderia ser chamada de "auto-enganação"; e uma alienação deveras conveniente, resultante de posições privilegiadas, em especial no que tange ao uso do espaço urbano.
No primeiro caso, falo das pessoas que sofrem verdadeiramente com o caos urbano paulistano e, ainda assim, amam a cidade. Adoram-na apesar dos pesares, a despeito de todo o mal que lhe causam - valorizando, por sua vez, suas qualidades, tais como: as oportunidades de trabalho, o cosmopolitismo e a agitada vida noturna. Para mim, impossível não vir à mente a imagem da "mulher de malandro": aquela que apanha todo dia, mas que "ainda ama o marido", dizendo aos demais e a si própria, por exemplo, que "ele é uma boa pessoa quando não bebe... o problema é que ele bebe demais, e aí acaba me batendo. Mas depois ele pede desculpas, me dá um buquê de rosas e fica tudo bem! Até o dia seguinte..."
A comparação pode parecer um pouco exagerada, mas quando, por exemplo, passo um total de 4h30min dentro de ônibus lotado a 33ºC, como na sexta-feira, ou quando dois dos ônibus em que embarco se envolvem em acidentes nas movimentadas ruas de São Paulo (como na quinta), não tenho vontade de dizer que "amo essa cidade", mas sim de abandoná-la permanentemente. E o que dizer dos sujeitos que encaram situações iguais ou piores que essas todos os dias, embarcando em trens abarrotados por horas até alcançar o conforto do lar? E dos milhares de moradores de rua que sofrem uma intensa luta cotidiana, apenas para comer decentemente? E aqueles que perdem tudo que possuem toda a vez que chove com alguma intensidade? Como ainda amar a cidade??? Seria porque, no fim-de-semana, podemos "beber para esquecer" os males urbanos, escolhendo entre as milhares de opções de lazer esparramadas pela cidade? Ou porque ela nos oferece a "oportunidade" de nos escravizarmos junto ao mercado de trabalho, de modo que possamos "usufruir" de todos os aspectos negativos do tráfego cotidiano?
Assim, entre aqueles que vivenciam os problemas cotidianos de São Paulo e ainda a amam, só consigo vislumbrar uma alienação de seus aspectos negativos em prol daqueles positivos. É claro que há muita riqueza cultural na cidade, mas ela não pode compensar todos os seus males, a não ser pela inevitável desvalorização da qualidade de vida enquanto valor: considerar que São Paulo vale à pena, para mim, é nivelar por baixo a própria vivência humana tolerável.
Mas existe outra espécie de "amante" da cidade: aquele que não se apropria, por suas condições espaciais, de seus pedaços menos simpáticos - vias mais congestionadas, áreas afetadas por enchentes, etc. É particularmente fácil (e conveniente) "adorar" São Paulo quando se vive em áreas residenciais de alto padrão, por exemplo, tais como: Alto de Pinheiros, Itaim Bibi, Jardim Europa, Higienópolis, entre outras. Situação que se agrava quando o indivíduo em questão trabalha em uma região próxima de casa, enfrentanto uma situação de trânsito cotidiana bem menos caótica do que aquela vivida por uma grande massa de paulistanos.
É claro que não podemos generalizar, pois ainda existem muitos que habitam áreas mais favorecidas, e mesmo assim enfrentam grandes intempéries no dia-a-dia; mas, além de serem apenas uma parte dos casos entre os favorecidos, é evidente que paulistanos de diversas classes e regiões são afetados em diferentes graus pelas mazelas da cidade; logo, os prejuízos na qualidade de vida do funcionário que se desloca de sua residência em Pinheiros para uma empresa na Berrini são bem menos significativos do que de alguém que desloca-se a cada dia do Itaim Paulista, extremo leste da cidade, para uma região central.
Similarmente, é óbvio que o acesso a serviços e aparatos de lazer é extremamente desigual - tanto no que tange às diferenças de renda, quando das de localidade. E essas diferentes formas de apropriação do lado "bom"da cidade também podem trazer consequências distintas para a avaliação da mesma: aqueles com fácil acesso às regiões de Pinheiros, Bela Vista, Vila Madalena, Moóca, ou Tatuapé (para aquela "cervejinha do happy-hour"), podem ter uma avaliação mais positiva sobre sua cidade do que aqueles que não possuem tal acesso.
De todo modo, o ponto que almejo destacar é o seguinte: inevitável que aqueles que "amam" São Paulo, entendida enquanto um complexo urbano com algum sentido unificado, está agindo de forma mais ou menos alienada. Sua alienação pode ser fruto de um sistema individual de defesa, em que precisamos nos "enganar" de que moramos em um bom lugar para esquecer onde vivemos de fato; mas também pode derivar de uma posição confortável na cidade, que permite um simples ignorar de suas condições negativas. Não vejo problemas em gostar de sub culturas ou locais específicos de São Paulo, mas apreender de modo positivo uma visão generalizada da mesma não passa de um excesso de miopia.
Durante minha vida pré-acadêmica, um professor de Geografia do Cursinho Objetivo - o Professor Nogueira -, com todo o jeito de "animador de torcida" típico dos professores dessas instituições preparatórias para o vestibular, dizia uma coisa interessante: "Não entendo essa coisa de 'orgulho' ou 'vergonha' de ser brasileiro. Nós não escolhemos em que país nascemos! Ninguém diz: 'Eu tenho orgulho de ser um vertebrado! Simplesmente nascemos assim". Por trás dessa idéia, está a noção de que só devemos sentimentos de orgulho ou vergonha aquilo que concerne às nossas próprias decisões individuais - e não aquilo que nos é imposto externamente. Isso não significa, porém, uma simples indiferença com relação às condições a que estamos submetidos contra nossa vontade; em verdade, permite-nos um olhar realista e afastado dessas situações, um reconhecimento de suas qualidades e defeitos com um menor número de ilusões. Acredito que o mesmo possa ser dito sobre São Paulo: ao invés de cultivarmos sentimentos enganadores de simples "orgulho", "amor", "raiva" ou "vergonha", devemos nos afastar minimamente dessas intempéries emocionais e apreender com algum realismo as condições da cidade, com seus prós e contras. Apenas mediante esse exercício de afastamento e choque de realidade, os paulistanos poderão abrir os olhos para as condições sub humanas a que muitas vezes estão submetidos, APESAR das boas formas de apropriação urbana possíveis, cada dia mais raras e menos reconfortantes.
Pedro Macini
É claro que não podemos generalizar, pois ainda existem muitos que habitam áreas mais favorecidas, e mesmo assim enfrentam grandes intempéries no dia-a-dia; mas, além de serem apenas uma parte dos casos entre os favorecidos, é evidente que paulistanos de diversas classes e regiões são afetados em diferentes graus pelas mazelas da cidade; logo, os prejuízos na qualidade de vida do funcionário que se desloca de sua residência em Pinheiros para uma empresa na Berrini são bem menos significativos do que de alguém que desloca-se a cada dia do Itaim Paulista, extremo leste da cidade, para uma região central.
Similarmente, é óbvio que o acesso a serviços e aparatos de lazer é extremamente desigual - tanto no que tange às diferenças de renda, quando das de localidade. E essas diferentes formas de apropriação do lado "bom"da cidade também podem trazer consequências distintas para a avaliação da mesma: aqueles com fácil acesso às regiões de Pinheiros, Bela Vista, Vila Madalena, Moóca, ou Tatuapé (para aquela "cervejinha do happy-hour"), podem ter uma avaliação mais positiva sobre sua cidade do que aqueles que não possuem tal acesso.
De todo modo, o ponto que almejo destacar é o seguinte: inevitável que aqueles que "amam" São Paulo, entendida enquanto um complexo urbano com algum sentido unificado, está agindo de forma mais ou menos alienada. Sua alienação pode ser fruto de um sistema individual de defesa, em que precisamos nos "enganar" de que moramos em um bom lugar para esquecer onde vivemos de fato; mas também pode derivar de uma posição confortável na cidade, que permite um simples ignorar de suas condições negativas. Não vejo problemas em gostar de sub culturas ou locais específicos de São Paulo, mas apreender de modo positivo uma visão generalizada da mesma não passa de um excesso de miopia.
Durante minha vida pré-acadêmica, um professor de Geografia do Cursinho Objetivo - o Professor Nogueira -, com todo o jeito de "animador de torcida" típico dos professores dessas instituições preparatórias para o vestibular, dizia uma coisa interessante: "Não entendo essa coisa de 'orgulho' ou 'vergonha' de ser brasileiro. Nós não escolhemos em que país nascemos! Ninguém diz: 'Eu tenho orgulho de ser um vertebrado! Simplesmente nascemos assim". Por trás dessa idéia, está a noção de que só devemos sentimentos de orgulho ou vergonha aquilo que concerne às nossas próprias decisões individuais - e não aquilo que nos é imposto externamente. Isso não significa, porém, uma simples indiferença com relação às condições a que estamos submetidos contra nossa vontade; em verdade, permite-nos um olhar realista e afastado dessas situações, um reconhecimento de suas qualidades e defeitos com um menor número de ilusões. Acredito que o mesmo possa ser dito sobre São Paulo: ao invés de cultivarmos sentimentos enganadores de simples "orgulho", "amor", "raiva" ou "vergonha", devemos nos afastar minimamente dessas intempéries emocionais e apreender com algum realismo as condições da cidade, com seus prós e contras. Apenas mediante esse exercício de afastamento e choque de realidade, os paulistanos poderão abrir os olhos para as condições sub humanas a que muitas vezes estão submetidos, APESAR das boas formas de apropriação urbana possíveis, cada dia mais raras e menos reconfortantes.
Pedro Macini