Semana passada, assisti mais uma vez um de meus filmes favoritos: "Beleza Americana". Embora não possa ser considerado um grande fã do cinema americano, admiro a contra-cultura estadunidense, que consegue fugir da obviedade hollywoodiana costumeira.
Nesse caso, tal tarefa não é cumprida sem pregar algumas peças, correndo o risco de ser mal interpretada; já ouvi críticas ferrenhas saírem de mais de uma boca sobre esse filme em especial, que o interpretaram como a simples defesa do estilo de vida adotado por um "tiozão" maconheiro e depravado, sem a menor noção de sua situação social de provedor familiar e "quarentão".
Segundo minha leitura, não é essa, em absoluto, a mensagem que o diretor visou transmitir. O fato de a personagem principal se apaixonar por uma linda e aparentemente pervertida adolescente, amiga de sua filha, é relevante, mas centrar a atenção nesse fato isolado impede o desenvolvimento de uma visão mais ampla dos aconteceimentos complexos que assolam a trama.
A figura da jovem é tratada como um símbolo tosco e superficial de um modo de vida distinto daquele levado pelo protagonista antes de seu "processo de conversão": um estilo libertário de vivência, intenso, que foge das previsibilidades e do tédio existentes em seu casamento desgastado e cheio de cerimônias de falsidade. Tanto que a cena de sexo mais esperada no filme, entre o marido já libertado e "bombado" do final da trama e a jovem rebelde, não acontece - por decisão desse "tiozão tarado". Explicação: descobre-se que a garota, tal qual a esposa neurótica, também representa um papel diante da sociedade - em uma tentativa patética de construção de uma identidade "para os outros" diferente, em essência, de suas características verdadeiramente pessoais. Em outras palavras, a garota representava o papel de uma ninfeta depravada, mas, em verdade, era uma virgem assustada, desesperada por um pouco de aceitação.
O sociólogo Claude Dubar já discorreu sobre esse fenômeno de "dissociação do Eu", que pode acompanhar o processo de socialização: "entre um 'eu' que implica necessariamente um esforço de conformidade ao grupo para se fazer (re)conhecer e um 'eu' que corre sempre o risco de ser anulado e desconhecido pelos outros, o Eu (self) em construção arrisca-se a ser dissociado entre a identidade coletiva sinônima de disciplina, de conformismo de de passividade e a identidade individual sinónima de originalidade, de criatividade, mas também de risco e de insegurança" (Em "A Socialização": Construção das Identidades Sociais e Profissionais", pág. 94).
Assim, o filme sucinta inúmeras discussões a respeito de temas como individualidade, identidade e socialização. Trata-se de uma crítica à forma pela qual tais questões são manipuladas em meio à cultura americana; especificamente, à utilização, por esta, de máscaras sociais demasiadamente distonantes com as características "reais" dos indivíduos, explicada por um certa obsessão por uma socialização bem-sucedida.
Mesmo assim, o filme não consegue escapar de uma tendência sociológica clara, que assola as sociedades contemporâneas: a busca pela individualização absoluta, pelo direito pessoal em ser diferente de todos os demais, uma certa fuga da equalização - tarefa impossível de ser absolutamente concluída, já que, se levado ao extremo, tal processo não anula que ao menos ALGO resiste de igual entre todos os representantes da Humanidade: justamente essa capacidade de distinção (o que, para Durkheim, ocorre naturalmente com o progresso da divisão social do trabalho). Conforme a sociedade torna-se mais complexa, afinal de contas, mais especializadas são as funções sociais apropriadas pelos indivíduos - e, em decorrência, maior o grau existente de heterogeneidade, inclusive no que tange às construções identitárias.
A defesa ideológica da diferenciação individual, pelo filme, esconde, em realidade, a sujeição a um processo inerente ao "inconsciente coletivo" (de acordo com o ponto de vista durkheimiano) americano. Essa opção aparentemente "livre" pode ser enxergada em diversos momentos, podendo ser melhor representado pela relação entre Ricky Fitts - o filho de um disciplinado simpatizante nazista - e Jane Burnham, filha rebelde de Lester Burnham ( o dito "pai tarado").
Justos, eles chegam a bater boca com a linda e fútil Angela Hayes, que chega a chamar o jovem pretendente de sua melhor amiga de "anormal". Nesse momento, questiona-se: o que vale mais, a dita "normalidade social", obtida mediante representações quase teatrais de identidades e repressões de desejos pessoais, ou a fuga da socialização pela realização dos desejos presentes em nossas personalidades? O que é melhor, viver de fato ou "fingir viver" e se contentar com uma aceitação pautada em identidades manufaturadas, em detrimento de nossa constituição mais íntima?
Ao propor tal debate, o filme age como representante de um fenômeno social quase imperceptível a olhos nus, além de inaceitável àqueles que acreditam se constituirem por sua própria conta, sem quaisquer determinações sociais. A valorização de uma suposta "liberdade individual", que inclui a possibilidade de diferenciação, esconde muito mais do que essa possibilidade, se realizando, verdadeiramente, como uma IMPOSIÇÃO SOCIAL; somos diferentes, mas porque somos COMPELIDOS a nos diferenciarmos, por uma forma de poder que, em oposição à métodos anteriores, não apenas repreende o indivíduo, como uma força exterior a ele, mas o MOLDA de acordo com seus interesses, o incluindo em sua lógica de operação. Não mais submete suas vítimas pela pura coerção física, mas fazem-lhes revelar seu interior "por livre e espontânea vontade" - ou, em outras palavras, nos faz acreditarmos que falamos de nós mesmos de forma absolutamente livre quando, em verdade, tal iniciativa é inteiramente construída e manipulada.
Como filhos da Sociedade Disciplinar enxergada por Michel Foucault, somos geridos, desde o primeiro instante, de modo a nos sentirmos "únicos" sobre um determinado ponto de vista - e assim, acabamos cúmplices da sutil ilusão da liberdade individual perante relações de poder que, protegidas por esse manto de ignorância, exercem-se com uma notável perfeição.
Pedro Mancini