Fazia tempo que não discutia, nesse blog, sobre as nuanças dos espaços público e privado de interação. Mas uma viagem de ônibus que fiz recentemente, de Campinas para São Paulo, fez reacender meu interesse sobre o assunto.
Dois colegas de viagem, sentados nas poltronas imediatamente a minha frente, ligaram uma Tv portátil e assistiram uma dada partida de futebol a um volume razoável, durante quase todo o percurso. Sons do apito do árbitro e de chiados televisivos impediram-me de tirar um cochilo minimamente revigorante.
Isso imediatamente fez surgir, em minha mente, a questão do individualismo na contemporaneidade, em que interesses individuais sobrepõem-se aos coletivos. Tento, agora, discutir essa questão sem entrar em chavões simplistas.
Georg Simmel, em um de seus textos, diz que o individualismo da Renascença, antecessor do individualismo moderno, caracterizava-se pela “ação no mundo” e pela “extroversão”. Chamou esse de “individualismo de distinção”: o indivíduo era visto como um ser singular que “deixava sua marca no mundo”, através, por exemplo, de uma obra de arte. Atuava, dessa forma, com o fim de exercer sua individualidade, perante o público das cidades renascentistas.
O Iluminismo, por seu turno, trouxe à tona uma nova noção de individualismo, baseada na igualdade de todos os homens. O indivíduo, visto como portador de uma razão inata, era exatamente igual aos demais que compartilhavam tal status, detendo os mesmos direitos. Trata-se de uma noção genérica e abstrata de indivíduo, um “ser ideal” que estaria contido em cada um dos seres humanos concretos. Junto a tal idéia, vinha uma maior aceitação das diferenças de opinião, uma maior tolerância ao outro, já que este, mesmo pensando de modo distinto, detinha a mesma humanidade que a minha pessoa. É claro, essas idéias devem sempre ser relativizadas: nem todos os homens com os quais houvesse intercâmbio eram considerados “humanos” ou “indivíduos”, e não detinham os mesmos direitos do que o homem europeu típico. Destacam-se, em especial, homens de países considerados “bárbaros” ou “menos desenvolvidos”, ou homens de outras etnias - tratados como externos à noção de Humanidade.
Uma reação cultural a esse individualismo “quantitativo” surgiu na Alemanha romântica do século XIX, quanto volta à tona a preocupação com a distinção individual: além de sermos iguais a todos os outros, cada um de nós era considerado, ao mesmo tempo, único e singular. Essa distinção, porém, não era aquela mesma buscada na Renascença, qual seja, pela ação no mundo público: a nossa individualidade passou a ser exercita na esfera privada e, em última medida, no mundo da intimidade. E esse é o ponto em que inicio, de fato, minha discussão sobre o som alto no ônibus.
Uma vez privatizada, a individualidade imbrica-se com um movimento social mais amplo, de distanciamento entre os indivíduos. Progressivamente, estes isolam-se dos demais, acreditando que o local legitimo para a realizacao de si encontra-se em uma esfera que se torna menor a cada dia - até atingir as entranhas de uma quase inalcansável intimidade. Trata-se de uma forma de individualismo que muitos autores da Sociologia mais crítica vislumbraram como mais propensa a, paradoxalmente, impedir o pleno desenvolvimento individual: Considerando-se que uma individualidade plena só é concebível mediante o contato e intercâmbio com outros, aqueles que se fecham em seus santuários pessoais de intimidade perdem a chance de se tornarem indivíduos plenos - dotados, por exemplo, da responsabilidade e da razão individuais. Afundam-se em um narcisismo desprovido de relações concretas com o mundo ao redor.
Em geral, é desse individualismo que falamos quando pensamos sobre a massa de indivíduos que lota um ônibus municipal. Embora tantos indivíduos aglomerem-se nesse espaço tão reduzido, cada um permanece em seu "canto", de certo modo isolado dos outros. A peça fundamental desse individualismo, na verdade, é o direito de cada um ser "deixado em paz" em meio ao espaço público, local do anonimato absoluto; espaço da descrição e do silêncio, em que todos respeitariam a redoma íntima do outro para terem respeitado o seu próprio espaço físico, moral e simbólico, por menor que seja. Nossa individualidade não é da conta de ninguém, ou, ao menos, de ninguém com quem trombamos no mundo público. A nossa intimidade deve ser manifestada e exposta apenas na solidão de nosso lar, perante, no máximo, amigos, familiares e parceiros amorosos.
Mas eis que surge o barulhento, aquele que adentra o ônibus munido de um celular a tocar uma música no modo viva-voz, em alto som. Como compreendê-lo nesse contexto?
O que parece estar em jogo quando, por exemplo, algum cidadão ouve música alta em pleno ônibus, é a objetivação de um tipo de individualismo que difere deste último - e que, ao mesmo tempo, é alimentado por este. Nele, ocorre uma despreocupação com o especo público e, por extensão, com o pequeno espaço individual no qual os outros buscam proteção contra qualquer forma de incômodo. O som alto invade o escudo protetor que os outros passageiros formam sobre si, invade-lhes um território pessoal que seria, em tese, sagrado. É um individualismo mais "agressivo", despreocupado com o incômodo alheio; em que o ditado "os incomodados que se mudem" pode fazer maior sentido.
O que torna a situação mais curiosa é que ninguém reage a tal situação. Os indivíduos que querem ser “deixados em paz” não interferem na prática do barulhento, já que aí correriam sério risco de deixarem de ficar em paz (por mais precária que ela seja). É mais desvantajosa a chance, mesmo hipotética, de iniciar uma guerra individual em prol do silêncio do que a permanência nesse espaço de recolhimento e conformidade.
O individualismo do barulhento é, de certo modo, o oposto complementar do individualismo do “deixe-me em paz no meu canto”: é ativo, ao invés de passivo. Embora pudéssemos supor que ocorre um embate entre esses dois individualismos, a verdade é que um é alimentado pelo outro: enquanto o "agressivo" não reconhece limites por não encontrar resistência alheia - por não sofrer "coerção social", para me apropriar do velho Durkheim -, a reação dada pelo indivíduo "covarde" é o recolhimento ainda mais avançado sobre sua própria intimidade. Intimidado, o homem contemporâneo recolhe-se em sua casinha de cachorro.
E é a própria tecnologia, arma do individualismo "agressivo", que fornece os mais sofisticados mecanismos de fuga desse opressivo mundo público para o individualismo da "covardia": MP3, celulares e fones de ouvidos são utilizadas para a mais concreta forma de reação da massa silenciosa de indivíduos defensivos: o fechamento mais profundo ainda sobre suas redomas de intimidade, por mais público que seja o espaço em que se encontrem.Uma auto-alienação do mundo ao redor é ativamente buscada, como forma de reação à agressividade encontrada nesse mundo.
Temos, então, um ciclo vicioso de violação e passividade, de invasão e recolhimento. E assim, os homens compreendem-se e comunicam-se cada dia menos, uns achando-se no direito de invadir o espaço alheio, e outros alienando-se em seus aparatos tecnológicos na busca (em muitos sentidos, bem sucedida) da fuga desse nosso mundinho opressivo de cada dia.
Pedro Mancini