quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Música alta no busão e os dois individualismos complementares

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Fazia tempo que não discutia, nesse blog, sobre as nuanças dos espaços público e privado de interação. Mas uma viagem de ônibus que fiz recentemente, de Campinas para São Paulo, fez reacender meu interesse sobre o assunto.

Dois colegas de viagem, sentados nas poltronas imediatamente a minha frente, ligaram uma Tv portátil e assistiram uma dada partida de futebol a um volume razoável, durante quase todo o percurso. Sons do apito do árbitro e de chiados televisivos impediram-me de tirar um cochilo minimamente revigorante.

Isso imediatamente fez surgir, em minha mente, a questão do individualismo na contemporaneidade, em que interesses individuais sobrepõem-se aos coletivos. Tento, agora, discutir essa questão sem entrar em chavões simplistas.

Georg Simmel, em um de seus textos, diz que o individualismo da Renascença, antecessor do individualismo moderno, caracterizava-se pela “ação no mundo” e pela “extroversão”. Chamou esse de “individualismo de distinção”: o indivíduo era visto como um ser singular que “deixava sua marca no mundo”, através, por exemplo, de uma obra de arte. Atuava, dessa forma, com o fim de exercer sua individualidade, perante o público das cidades renascentistas.

O Iluminismo, por seu turno, trouxe à tona uma nova noção de individualismo, baseada na igualdade de todos os homens. O indivíduo, visto como portador de uma razão inata, era exatamente igual aos demais que compartilhavam tal status, detendo os mesmos direitos. Trata-se de uma noção genérica e abstrata de indivíduo, um “ser ideal” que estaria contido em cada um dos seres humanos concretos. Junto a tal idéia, vinha uma maior aceitação das diferenças de opinião, uma maior tolerância ao outro, já que este, mesmo pensando de modo distinto, detinha a mesma humanidade que a minha pessoa. É claro, essas idéias devem sempre ser relativizadas: nem todos os homens com os quais houvesse intercâmbio eram considerados “humanos” ou “indivíduos”, e não detinham os mesmos direitos do que o homem europeu típico. Destacam-se, em especial, homens de países considerados “bárbaros” ou “menos desenvolvidos”, ou homens de outras etnias - tratados como externos à noção de Humanidade.

Uma reação cultural a esse individualismo “quantitativo” surgiu na Alemanha romântica do século XIX, quanto volta à tona a preocupação com a distinção individual: além de sermos iguais a todos os outros, cada um de nós era considerado, ao mesmo tempo, único e singular. Essa distinção, porém, não era aquela mesma buscada na Renascença, qual seja, pela ação no mundo público: a nossa individualidade passou a ser exercita na esfera privada e, em última medida, no mundo da intimidade. E esse é o ponto em que inicio, de fato, minha discussão sobre o som alto no ônibus.

Uma vez privatizada, a individualidade imbrica-se com um movimento social mais amplo, de distanciamento entre os indivíduos. Progressivamente, estes isolam-se dos demais, acreditando que o local legitimo para a realizacao de si encontra-se em uma esfera que se torna menor a cada dia - até atingir as entranhas de uma quase inalcansável intimidade. Trata-se de uma forma de individualismo que muitos autores da Sociologia mais crítica vislumbraram como mais propensa a, paradoxalmente, impedir o pleno desenvolvimento individual: Considerando-se que uma individualidade plena só é concebível mediante o contato e intercâmbio com outros, aqueles que se fecham em seus santuários pessoais de intimidade perdem a chance de se tornarem indivíduos plenos - dotados, por exemplo, da responsabilidade e da razão individuais. Afundam-se em um narcisismo desprovido de relações concretas com o mundo ao redor.

Em geral, é desse individualismo que falamos quando pensamos sobre a massa de indivíduos que lota um ônibus municipal. Embora tantos indivíduos aglomerem-se nesse espaço tão reduzido, cada um permanece em seu "canto", de certo modo isolado dos outros. A peça fundamental desse individualismo, na verdade, é o direito de cada um ser "deixado em paz" em meio ao espaço público, local do anonimato absoluto; espaço da descrição e do silêncio, em que todos respeitariam a redoma íntima do outro para terem respeitado o seu próprio espaço físico, moral e simbólico, por menor que seja. Nossa individualidade não é da conta de ninguém, ou, ao menos, de ninguém com quem trombamos no mundo público. A nossa intimidade deve ser manifestada e exposta apenas na solidão de nosso lar, perante, no máximo, amigos, familiares e parceiros amorosos.

Mas eis que surge o barulhento, aquele que adentra o ônibus munido de um celular a tocar uma música no modo viva-voz, em alto som. Como compreendê-lo nesse contexto? 

O que parece estar em jogo quando, por exemplo, algum cidadão ouve música alta em pleno ônibus, é a objetivação de um tipo de individualismo que difere deste último - e que, ao mesmo tempo, é alimentado por este. Nele, ocorre uma despreocupação com o especo público e, por extensão, com o pequeno espaço individual no qual os outros buscam proteção contra qualquer forma de incômodo. O som alto invade o escudo protetor que os outros passageiros formam sobre si, invade-lhes um território pessoal que seria, em tese, sagrado. É um individualismo mais "agressivo", despreocupado com o incômodo alheio; em que o ditado "os incomodados que se mudem" pode fazer maior sentido. 

O que torna a situação mais curiosa é que ninguém reage a tal situação. Os indivíduos que querem ser “deixados em paz” não interferem na prática do barulhento, já que aí correriam sério risco de deixarem de ficar em paz (por mais precária que ela seja). É mais desvantajosa a chance, mesmo hipotética, de iniciar uma guerra individual em prol do silêncio do que a permanência nesse espaço de recolhimento e conformidade.

O individualismo do barulhento é, de certo modo, o oposto complementar do individualismo do “deixe-me em paz no meu canto”: é ativo, ao invés de passivo. Embora pudéssemos supor que ocorre um embate entre esses dois individualismos, a verdade é que um é alimentado pelo outro: enquanto o "agressivo" não reconhece limites por não encontrar resistência alheia - por não sofrer "coerção social", para me apropriar do velho Durkheim -, a reação dada pelo indivíduo "covarde" é o recolhimento ainda mais avançado sobre sua própria intimidade. Intimidado, o homem contemporâneo recolhe-se em sua casinha de cachorro.

E é a própria tecnologia, arma do individualismo "agressivo", que fornece os mais sofisticados mecanismos de fuga desse opressivo mundo público para o individualismo da "covardia": MP3, celulares e fones de ouvidos são utilizadas para a mais concreta forma de reação da massa silenciosa de indivíduos defensivos: o fechamento mais profundo ainda sobre suas redomas de intimidade, por mais público que seja o espaço em que se encontrem.Uma auto-alienação do mundo ao redor é ativamente buscada, como forma de reação à agressividade encontrada nesse mundo. 

Temos, então, um ciclo vicioso de violação e passividade, de invasão e recolhimento. E assim, os homens compreendem-se e comunicam-se cada dia menos, uns achando-se no direito de invadir o espaço alheio, e outros alienando-se em seus aparatos tecnológicos na busca (em muitos sentidos, bem sucedida) da fuga desse nosso mundinho  opressivo de cada dia.

Pedro Mancini

sábado, 18 de setembro de 2010

La maison en petit cubes

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Nos últimos dias, estou especialmente sensível a animações e outras obras artísticas. O vídeo a seguir me tocou, especialmente, por representar de forma mágica o quanto enterramos nossas lembranças em nosso sub consciente, vivendo sem ter uma noção total de tudo aquilo que passamos, todas as experiências que deixamos para trás. Isso não vale apenas para senhores de idade, como o velhinho da animação; nem tampouco se aplica apenas a dadas memórias do passado. Algumas vezes, de fato, parece que esquecemos quem fomos - e quem ainda SOMOS. Nosso Eu parece realmente submerso, amedrontador, desconhecido: apenas mergulhando em sua imensidão obscura poderemos revivê-lo de algum modo. 

Bem, essa foi apenas a associação que fiz a partir do vídeo francês, dividido em duas partes. Essa leitura fez muito sentido para mim, mas o encanto da obra é muito valioso para ser reduzido a uma única perspectiva interpretativa. Que cada um faça a sua. 







Pedro Mancini

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Impressões sobre o último debate e o "espírito democrático" de José Serra

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Publico, com algum atraso, minhas impressões sobre o último debate entre candidatos à Presidência da República, realizado dia 12 de setembro pela RedeTV! e Folha de SP.

Como comentou Luis Nassif em tempo real, via Tweetcam, o debate simbolizou o fim melancólico da campanha de José Serra. O tucano insistiu na tecla da violação do sigilo fiscal de sua filha e outras acusações, sem tentar convencer o eleitor de que possui propostas concretas para administrar o país. Ao contrário do que a mídia noticiou, a estratégia de Serra foi um fracasso: nos primeiros blocos, ele ficou totalmente isolado, ninguém entrou em sua onda (a não ser alguns jornalistas), e acabou levando uma "sapatada" até do Plínio (que afirmou não ter "nada a ver" com as denúncias do Tucano e lamentou que o mesmo tenha baixado tanto o nível da campanha, alegando, com razão, que deveriam estar discutindo propostas políticas concretas). Sua posição, no atual quadro político, apenas ficou mais confusa para o eleitor - já que o candidato vive alternando ataques de fúria e elogios à administração petista, em uma tentativa malabarista de manter os ataques atrelados à figura de Dilma, poupando o presidente, e mantendo os elogios à Lula, desconsiderando Dilma.

Não que a candidata do PT ou mesmo Marina Silva tenham se destacado positivamente: o Serra é que foi muito infeliz. Aliás, o momento mais patético do debate foi quando ele insistiu ser um "democrata", que "respeita seus adversários políticos", insinuando que a petista não o faria. Bem, não precisamos nem discutir os bastidores da política, os afastamentos de jornalistas desfavoráveis a Serra, para contestar essas afirmações: seu jeitinho "trator", anti-democrático e de desrespeito por opiniões contrárias e pela oposição tem sido muito evidente. Vejamos apenas alguns exemplos se sua postura pública:

1) Pela primeira vez desde o Regime Militar, o tucano escolheu, para reitor da USP, um candidato que não foi escolhido como preferido pela própria Universidade, desrespeitando essa chamada "democracia" que diz valorizar;
2) Já demonstrou, inúmeras vezes, desrespeito com jornalistas, quando questionado, sempre buscando desmoralizá-los e associá-los à "vil oposição". Vejamos alguns vídeos do YouTube:









3) Em inúmeros casos, Serra demonstrou intolerância absoluta com movimentos sociais e grevistas, associando-os à uma oposição "malévola", vista como fonte de intrigas e "inimiga do povo": um total desrespeito tanto com as reivindicações dos funcionários públicos do Estado de São Paulo, quanto com a própria oposição. Como exemplo, cito o caso da greve da Polícia Civil, que acarretou em um conflito sério com a Polícia Militar nas ruas de São Paulo, mais uma vez fruto da incapacidade de diálogo do tucano. Na época, Serra saiu no Datena responsabilizando o PT e centrais sindicais partidarizadas pelo confronto, como se a polícia nem tivesse motivos para fazer reivindicações e movimentos de greve. Cheguei a publicar uma postagem a respeito desse episódio, mas infelizmente não localizei o vídeo de Serra no Datena.
4) Mostrou desrespeito, igualmente, com seus críticos da Internet, classificando todos os seus blogs opositores como "blogs sujos" (vale lembrar que, ao mesmo tempo, o PSDB se apropria das ferramentas da internet a seu favor, mandando seus simpatizantes, por exemplo, votarem em massa em seu candidato como o "melhor do debate" logo após esses eventos). Desqueaifica os opositores, simplesmente vinculando-os a interesses partidários e eleitorais.

Não venham, portanto, me dizer que Serra possui qualquer "espírito democrático" ou que "respeita a oposição", não tratando-a como "inimiga do país"!

 Em resumo, José Serra demonstrou mais uma vez, no debate, uma enorme hipocrisia; até aí, contudo, muitos políticos o fazem, inclusive os demais presentes. Mas a manutenção de sua postura agressiva mostrou, mais do que nunca, seu desespero perante o quadro eleitoral, em que sua campanha falha redondamente em se apresentar como uma alternativa concreta ao governo atual  ao público eleitor. Nem mesmo em seu reduto político, São Paulo, Serra conseguiu manter a dianteira. Desmoralizado, resignou-se a ataques baixos, utilizando a violação do sigilo de sua filha para tentar desestabilizar a candidatura petista.De fato, um fim que beira entre o melancólico e o repugnante.

Pedro Mancini 

domingo, 12 de setembro de 2010

Palhaços na política

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As grandes falhas de nosso sistema político ganham maior evidência a cada horário eleitoral.Um dos sinais mais óbvios dessas deficiências, que saltam aos olhos de todos, são as candidaturas "palhaças" e as "anti-candidaturas": candidatos famosos, na maioria das vezes sem propostas objetivas, que esperam ganhar as eleições com o apoio de seu carisma e dos fãs que conquistam. No caso das anti-candidaturas, conta-se, ainda, com supostos "votos de protesto" de eleitores desiludidos com o sistema político-eleitoral. Em geral, trata-se de  tipos engraçados ou com outras qualidades extra-políticas, que cativam seu público por algum talento ou característica pessoal. Inúmeros exemplos dessas candidaturas podem ser listados: Enéas, Havanir, Clodovil, Dinei, Sérgio Mallandro, e os mais atuais Tiririca, Maguila, Mulher Pêra e Mulher Melão.

Em outros momentos, essas candidaturas limitavam-se, quase absolutamente, a partidos menores, que aproveitavam "micro celebridades" para alcançar um lugarzinho na câmara ou para barganhar apoios políticos com partidos de maior relevância. Em geral, apoiavam a direita e a centro-direita: partidos como PSDB, DEM e PMDB. Agora, mais do que nunca, além de os grandes partidos também contarem com essas proto-celebridades, a centro-esquerda, simbolizada por PT e aliados, utiliza esse mesmo tipo de candidatura a seu favor, de forma direta ou indireta. Tiririca, a título de exemplo, é representante de um partido aliado de Aloizio Mercadante em São Paulo - o PR. A Mulher Pêra, por sua vez, conta com o apoio explícito do senador petista Eduardo Suplicy. Vejam os respectivos vídeos:









Essa aliança entre esquerda moderada e partidos menores, com suas candidaturas de "palhaçada" e suas anti-candidaturas, são uma boa demonstração do quanto a centro-esquerda brasileira aprendeu a ser pragmática, aderindo inteiramente às mazelas de nosso sistema político-eleitoral em prol de melhores possibilidades de governança. Essa postura não deixa de ter suas vantagens, como maior garantia de conquista de posições políticas e maior apoio parlamentar, benefícios esses que, se desprezados, resultariam em um isolamento desses partidos no espectro mais marginal do cenário político.


A incorporação relativa da imoralidade pela esquerda é igualmente uma demonstração de que o aparecimento de candidaturas palhaças, que fazem deboche com a política brasileira, não é um fenômeno isolado, dependente de "mal-caratismos" individuais; é, obviamente, um problema estrutural, de modo que todas as agremiações políticas de importância rendem-se a sua lógica para cativar o eleitor. 

E que não se enganem aqueles que consideram que um voto em Tiririca é um voto de "protesto": essa possibilidade já se extinguiu há um bom tempo. Foi-se o tempo de candidaturas-fantoche assumidas como a do Rinoceronte Cacareco, que simbolizavam, de fato, a insatisfação dos brasileiros com a política nacional. Nosso sistema político-eleitoral é muito flexível, tendo se adaptado com absoluto sucesso à idéia de "candidaturas de protesto", de modo que os sujeitos mais atrelados à lógica política mais podre são indiretamente beneficiados  pelos votos recebidos pelos "palhaços" de seus partidos. O caso de Tiririca é emblemático: um voto nesse comediante beneficiará candidatos como Valdemar Costa Neto, político que renunciou em 2005 para não ser removido à força de seu cargo parlamentar. Ironicamente, aquele que acredita estar "driblando" o sistema ao votar em Tiririca estará, de fato, colaborando de modo bem definido para a manutenção de sua lógica sistêmica.

Algumas vezes, contudo, é possível vislumbrar um pedacinho de ética no fim do túnel. O candidato ao governo de São Paulo pelo Partido dos Trabalhadores, Aloizio Mercadante, reclamou diretamente ao PR a respeito do conteúdo da "anti-candidatura" de Tiririca, que compromete a já muito debilitada imagem do político brasileiro. Há de se lamentar que críticas dessa espécie se reduzam aos candidatos com discursos mais esdrúxulos; os mais hipócritas, como Maguila, que fingem ter plataformas políticas mais sérias do que as do palhaço, parecem estar mais seguros da contestação pública e de quaisquer retaliações de partidos aliados. 


Essa tendência por candidaturas dos tipos apontados não cessará enquanto não houver uma reforma política séria em nosso país. Até lá, só nos resta tomar a postura mais coerente de votar em candidatos com propostas REAIS e CONCRETAS de mudança, políticos de conteúdo bem definido: essa sim seria uma atitude mais próxima daquele quase utópico "voto de protesto" que tantos buscam, com a grande vantagem de sua viabilidade e maior possibilidade de impacto junto à sociedade.


Pedro Mancini