segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O dilema do "ditador bondoso"

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O governo do venezuelano Hugo Chávez vêm pondo à tona uma problemática que já infligiu a humanidade muitas e muitas vezes - e que, atualmente, tem assombrado os agrupamentos de esquerda, em especial da América Latina.

É sabido que grande parte desse movimento esquerdista - e eu me incluo nesse pacote - se viu bastante empolgada com a ascensão democrática do coronel ao poder da Venezuela, bem como com suas políticas governamentais inclusivas e participativas que afetaram as classes menos favorecidas de seu país - medidas essas financiadas pelos recursos captados graças à intervenção do presidente venezuelano na indústria nacional de exploração petrolífera que, diga-se de passagem, há tempos agia como reprodutora da desigualdade, beneficiando diretamente a elite econômica daquele país. De modo silimar, comemoramos enormemente o fracasso do golpe de 2002 contra Hugo Chávez, em um acontecimento-relâmpago de dois dias em que um agrupamento reacionário, fortemente prejudicado com a intervenção estatal na indústria petrolífera, raptou o presidente e divulgou, através de todo aparato da mídia privada - que militava a favor dos golpistas - que o mesmo havia renunciado ao poder. O venezuelano voltou ao seu posto de direito quando a massa descobriu a fraude e exigiu seu retornou imediato.

Como parte considerável da esquerda pró-chavista, no entando, fiquei desconfiado (e fortemente decepcionado) quando o presidente tentou aprovar um pacote de medidas diversas, em que se destacava a tentativa de reprodução ilimitada de seu poder - se tais medidas fossem aprovadas, Chávez passaria a deter o privilégio de ser reeleito inúmeras vezes.

São iniciativas como essa que fazem com que a esquerda perca, historicamente, sua compostura: ações que, somadas, revelam sua pretenção em existir como a única personagem política em jogo. Considerando a pureza de seus ideais como "óbvia" perante os olhos das classes menos favorecidas, forças políticas de esquerda, ao assumirem o poder, impõem sua visão (específica) como a única aceitável (geral) para toda a sociedade que comandam - da mesma forma que os seus rivais, sejam eles liberais ou conservadores. Por meio de diversas táticas, que, no extremo, significam a morte pura e simples da democracia, essa esquerda, assumindo papel similar ao do Deus cristão que, já que naturalmente "bondoso", não aceita crítica ou rebeldia, acaba sendo capaz de desenvolver seu próprio antagonismo - criando, aos poucos, uma sociedade que, ao invés de se pautar no combate às desigualdades e injustiças sociais, apenas as fundamentam a partir de uma nova lógica. Privilegia-se, aqui, a igualdade social-econômica, mas não sem graves prejuízos à igualdade e à liberdade político-individuais.

Foi esse o processo que assolou inúmeros países, como a extinta União Soviética e seus aliados, e que, vez ou outra, ameaça se repetir em nações de diversas partes do globo - e a América Latina é um dos locais mais suscetíveis a esse fenômeno. No momento, esse risco aparece como iminente em figuras como a de Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia.

Mais uma vez, contudo, é importante salientar que as críticas não se referem ao caráter social de tais governos - ao combate, por exemplo, a determinados modos de propriedade privada - e nem ao conteúdo ideológico por si dos referidos regimes; mas sim à relação estabelecida entre o Estado e a população governada: uma relação pautada pelo clientelismo, pelo populismo e por um exclusivismo arrogante da esquerda - características essas capazes de resultar no mais pleno suicídio de suas intenções igualitárias, como já indiquei. Mais grave que isso, tal relação resulta em perdas incalculáveis para a autonomia dos indivíduos - que passam, no final das contas, de "clientes" do Estado (como nas relações típicas do neoliberalismo) à condição de "apadrinhados" ou "filhos" deste, recebendo benefícios não por terem pleno direito a eles, mas como mero favor concedido por uma instituição que se encontra acima da sociedade, e não a serviço da mesma.

É essa a lição que a esquerda - em especial, na América Latina - deve aprender: não existem "ditadores bondosos", mas apenas ditadores; e o que os define, pura e simplesmente, é o seu desprezo pela capacidade de auto-determinação dos homens do povo, de desenvolvimento de seu raciocínio e pela prática de seu livre-arbítrio de forma livre. Para esses líderes, a liberdade individual não deve ser estimulada - pois resultaria, obviamente, em fracassos de massa; os pontos de vista plausíveis, sob tal ótica, devem ser sempre impostos de fora, e nunca desenvolvidos pela sociedade civil de forma minimamente expontânea.


O conceito de "heteronomia" - "regra obtida de fora" - serve de substituto, aqui, à noção de "autonomia" - "regra obtida por si só", pelo próprio indivíduo, idéia-chave para uma compreensão desse fenômeno.

Recria-se, dessa forma, o fanático seguidor cristão que enxerga a autonomia de pensamento, o "pensar diferente", uma "coisa do demo" - e deve aceitar, cegamente, sem contestação, aquilo que foi imposto por seu Senhor (sob a pena de ser visto como, na melhor das hipóteses, marionete inocente de Satã, e, na pior, um cúmplice consciente do mesmo).

Por essa razão, a tolerância com forças reacionárias - como, por exemplo, gigantescas parcelas da mídia -, embora difícil, deve sempre ser mantida por qualquer governo que se diga preocupado com justiça social sob uma perspectiva verdadeiramente humana; não só para que não se desça ao nível de uma parcela política constantemente golpista e autoriária, mas simplesmente porque, se um dia habitaremos um mundo em que exista um grau mínimo aceitável de igualdade e justiça, essa situação, segundo minha perspectiva, não poderá se manter sem uma saudável diversidade política, ligada à dedicação integral pelo desenvolvimento da autonomia individual; autonomia essa que nos faz, afinal de contas, HUMANOS - para além da simples noção de servos de algum senhor benevolente qualquer, seja ele encarnado na figura de Deus, de um Presidente ou, de forma mais ampla, de um Estado burocrático tão acolhedor quanto intolerante com qualquer forma de pensamento independente.

Pedro Mancini

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A política global de "Amor, Estranho Amor"

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Segue, abaixo, a coluna de hoje de Sérgio Ripardo, editor de Folha Ilustrada da Folha Online, sobre a oitava versão do reality-show "BBB":



"A Globo evitou riscos na escalação dos 14 participantes da oitava edição do 'Big Brother Brasil', que começa na próxima terça-feira. Com base na divulgação das imagens e dos dados sobre os escolhidos, será, mais uma vez, um programa voltado para o erotismo barato.


Para vender a assinatura do programa na TV fechada, a Net escancara o espírito do reality show: o telespectador terá compactos de cenas de banho, barracos e os melhores closes nos corpos de sarados e gostosas.


Não é de se espantar a repetição do formato. A história da Globo mostra que, em momentos de crise no ibope, a baixaria é a fórmula mais adotada pelo canal para reagir, estimulando aquilo que os comunicólogos chamam de 'cultura do grotesco'.


Em 2007, a Globo perdeu espaço para a Record, que também não é santa e vive injetando doses de erotismo em sua programação --cenas de sexo e violência enchem, por exemplo, as novelas do canal dos bispos.


A seleção do 'BBB 8' descartou os elementos que possam, na visão da Globo, atrapalhar o cenário para o onanismo eletrônico. Nada de gente feia, gorda nem pobre à beira da piscina, lembrando que o Brasil é uma terra de mestiços, assalariados e gente fora dos padrões de estética ditados pela publicidade.


Talvez, o 'gênio' e diretor do programa Boninho --aquele que se deixa flagrar em vídeo confessando o esporte de jogar ovos em prostitutas-- merecesse uma resposta contundente do telespectador esclarecido. Desligue a TV."


Tais eventos servem, sempre, para mostrar a verdadeira face da Rede Globo, constantemente camuflada pela imagem com a qual procura se associar. Ao contrário da emissora de Sílvio Santos, que nunca escondeu seu caráter "brega", exibindo o velho seriado mexicano "Chávez" por anos a fio e novelas melancólicas vindas do mesmo país com nomes esdrúxulos como "Alegrifes e Rabujos", "Rubi" e "Poucas, poucas pulgas", a emissora do falecido barão Roberto Marinho sempre cultivou uma dissociação entre sua imagem e sua atuação prática. Essa dissociação alcançou patamares ainda mais elevados, talvez, nos dias de hoje - e alguns nomes importantes da emissora me ajudam nessa constatação: A apresentadora Xuxa, a dita "Rainha dos Baixinhos", que hoje posa de moralista "zen" em seu programa matinal, já fez um filme "caliente" com um garoto de 12 anos (que hoje daria um bom processo de pedofilia contra qualquer outro que se arriscasse a fazer o mesmo); e, nos programas matinais de ontem, abria as pernas em rede nacional, para a alegria dos pais dos baixinhos, em meio a sessões diárias de ginástica, ao lado das oxigenadas paquitas - que tocavam o barco da artificalidade da televisão brasileira, ao promoverem o comum estereótipo da "loira de olhos azuis" em um país de mestiços. Como em tantas outras ocasiões, a emissora, por meio de sua velha contratada Xuxa, apagou - ou pelo menos tentou, e teria conseguido, caso não existisse a internet - o passado, tirando o filme proibido de circulação ("Amor, Estranho Amor", que criou o nome da atual postagem).



Jô Soares, outro símbolo global, detém a imagem de intelectual, sendo, no entando, responsável por algumas pérolas muito bem camufladas por seu pedantismo e seu cenário "cool", copiado de um programa americano do gênero; só para citar dois exemplos banais, disse que a capital ucraniana Kíev fica na Rússia e que Antônio e Flávio foram nomes de dois imperadores romanos. Ora, se o simpático gordinho da Globo disse, está dito, não?



Com relação à saúde e aos indissociáveis cuidados com a sexualidade, a emissora não age de forma distinta: do mesmo modo que divulga, através da figura respeitável de Dráuzio Varella, formas de cuidado com a saúde, prega a irresponsabilidade da sexualidade descompromissada em suas novelas (como, é claro, faz sua concorrente direta, a rede do Bispo Edir Macedo) e em seus reality-shows como o BBB. O que reina, afinal, antes de qualquer preocupação com o bem-estar da população, são os interesses econômicos desse grande símbolo do capitalismo contemporâneo - a busca incessante pela audiência e pelo lucro correspondente.



Quanto à sua participação política, a característica ambígua da Globo se manifesta de um modo peculiar: procura estar do lado do governo vigente, mas sem perder de todo sua linha-mestra de raciocínio político-econômico. Sempre voltada aos interesses macro-econômicos dos Estados Unidos e de seu liberalismo, seria ingenuidade achar que defenderia um modelo de sociedade interamente voltado aos interesses nacionais, principalmente quando estes contrariam os interesses dos grandes conglomerados econômicos - do qual ela própria é participante. No final, portanto, a emissora é fiel apenas a si própria, sendo capaz de efetivar as mais condenáveis alianças para manter sua importância cultural. Assim, embora tenha se formado e nutrido em meio ao regime militar, cuidando, inclusive, de sua manutenção ao esconder o caráter autoritário de tal regime (como quando divulgou que o comício organizado em São Paulo pela democratização do país era nada mais do que uma "festa popular"), a emissora não tardou a disparar críticas ferrenhas aos governos militares após a redemocratização do país - por meio, por exemplo, de uma reportagem do "Globo Repórter" que condenou a tentativa terrorista alavancada pelos militares no episódio Rio-Centro (que pretendia culpabilizar os militantes comunistas e reimplantar os momentos mais negros da ditadura militarista brasileira). Para melhores informações, os leitores poderiam assistir o documentário inglês feito sobre o assunto, intitulado "Beyond Citizen Kane" - o que seria muito mais fácil caso a emissora de Xuxa não tivesse, mais uma vez, procurado apagar o passado ao proibir a circulação oficial de tal filme.



Essa á a Rede Globo. Posando de inovadora e intelectual, é monocromática e retrógada; parecendo moralista, age despreocupada com a "moral" vigente, ao exibir, com frequência, verdadeiros shows de erotismo em pleno horário nobre(vide as novelas das 6, 7 e 8); dizendo-se voltada para o Brasil, inclina-se à realidade exterior dos Estados Unidos e da Europa (ao pior de cada um, em verdade), copiando descaradamente seus programas e suas perspectivas sociais e políticas sem demonstrar qualquer potencial crítico verdadeiramente autônomo.



A despeito desse verdadeiro show de hipocrisia, a Globo detém forte audiência, embora declinante. O fato é que, queiramos ou não, nós adoramos a hipocrisia. Somos, cada um de nós, minimamente responsáveis pela sobrevivência de aparatos hipócritas como esse - que, jogando a sujeira por debaixo do tapete, fazem a casa brasileira parecer limpa e "chique" como na casa de um herói da novela das 8.





Pedro Mancini