O governo do venezuelano Hugo Chávez vêm pondo à tona uma problemática que já infligiu a humanidade muitas e muitas vezes - e que, atualmente, tem assombrado os agrupamentos de esquerda, em especial da América Latina.
É sabido que grande parte desse movimento esquerdista - e eu me incluo nesse pacote - se viu bastante empolgada com a ascensão democrática do coronel ao poder da Venezuela, bem como com suas políticas governamentais inclusivas e participativas que afetaram as classes menos favorecidas de seu país - medidas essas financiadas pelos recursos captados graças à intervenção do presidente venezuelano na indústria nacional de exploração petrolífera que, diga-se de passagem, há tempos agia como reprodutora da desigualdade, beneficiando diretamente a elite econômica daquele país. De modo silimar, comemoramos enormemente o fracasso do golpe de 2002 contra Hugo Chávez, em um acontecimento-relâmpago de dois dias em que um agrupamento reacionário, fortemente prejudicado com a intervenção estatal na indústria petrolífera, raptou o presidente e divulgou, através de todo aparato da mídia privada - que militava a favor dos golpistas - que o mesmo havia renunciado ao poder. O venezuelano voltou ao seu posto de direito quando a massa descobriu a fraude e exigiu seu retornou imediato.
Como parte considerável da esquerda pró-chavista, no entando, fiquei desconfiado (e fortemente decepcionado) quando o presidente tentou aprovar um pacote de medidas diversas, em que se destacava a tentativa de reprodução ilimitada de seu poder - se tais medidas fossem aprovadas, Chávez passaria a deter o privilégio de ser reeleito inúmeras vezes.
São iniciativas como essa que fazem com que a esquerda perca, historicamente, sua compostura: ações que, somadas, revelam sua pretenção em existir como a única personagem política em jogo. Considerando a pureza de seus ideais como "óbvia" perante os olhos das classes menos favorecidas, forças políticas de esquerda, ao assumirem o poder, impõem sua visão (específica) como a única aceitável (geral) para toda a sociedade que comandam - da mesma forma que os seus rivais, sejam eles liberais ou conservadores. Por meio de diversas táticas, que, no extremo, significam a morte pura e simples da democracia, essa esquerda, assumindo papel similar ao do Deus cristão que, já que naturalmente "bondoso", não aceita crítica ou rebeldia, acaba sendo capaz de desenvolver seu próprio antagonismo - criando, aos poucos, uma sociedade que, ao invés de se pautar no combate às desigualdades e injustiças sociais, apenas as fundamentam a partir de uma nova lógica. Privilegia-se, aqui, a igualdade social-econômica, mas não sem graves prejuízos à igualdade e à liberdade político-individuais.
Foi esse o processo que assolou inúmeros países, como a extinta União Soviética e seus aliados, e que, vez ou outra, ameaça se repetir em nações de diversas partes do globo - e a América Latina é um dos locais mais suscetíveis a esse fenômeno. No momento, esse risco aparece como iminente em figuras como a de Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia.
Mais uma vez, contudo, é importante salientar que as críticas não se referem ao caráter social de tais governos - ao combate, por exemplo, a determinados modos de propriedade privada - e nem ao conteúdo ideológico por si dos referidos regimes; mas sim à relação estabelecida entre o Estado e a população governada: uma relação pautada pelo clientelismo, pelo populismo e por um exclusivismo arrogante da esquerda - características essas capazes de resultar no mais pleno suicídio de suas intenções igualitárias, como já indiquei. Mais grave que isso, tal relação resulta em perdas incalculáveis para a autonomia dos indivíduos - que passam, no final das contas, de "clientes" do Estado (como nas relações típicas do neoliberalismo) à condição de "apadrinhados" ou "filhos" deste, recebendo benefícios não por terem pleno direito a eles, mas como mero favor concedido por uma instituição que se encontra acima da sociedade, e não a serviço da mesma.
É essa a lição que a esquerda - em especial, na América Latina - deve aprender: não existem "ditadores bondosos", mas apenas ditadores; e o que os define, pura e simplesmente, é o seu desprezo pela capacidade de auto-determinação dos homens do povo, de desenvolvimento de seu raciocínio e pela prática de seu livre-arbítrio de forma livre. Para esses líderes, a liberdade individual não deve ser estimulada - pois resultaria, obviamente, em fracassos de massa; os pontos de vista plausíveis, sob tal ótica, devem ser sempre impostos de fora, e nunca desenvolvidos pela sociedade civil de forma minimamente expontânea.
O conceito de "heteronomia" - "regra obtida de fora" - serve de substituto, aqui, à noção de "autonomia" - "regra obtida por si só", pelo próprio indivíduo, idéia-chave para uma compreensão desse fenômeno.
Recria-se, dessa forma, o fanático seguidor cristão que enxerga a autonomia de pensamento, o "pensar diferente", uma "coisa do demo" - e deve aceitar, cegamente, sem contestação, aquilo que foi imposto por seu Senhor (sob a pena de ser visto como, na melhor das hipóteses, marionete inocente de Satã, e, na pior, um cúmplice consciente do mesmo).
Por essa razão, a tolerância com forças reacionárias - como, por exemplo, gigantescas parcelas da mídia -, embora difícil, deve sempre ser mantida por qualquer governo que se diga preocupado com justiça social sob uma perspectiva verdadeiramente humana; não só para que não se desça ao nível de uma parcela política constantemente golpista e autoriária, mas simplesmente porque, se um dia habitaremos um mundo em que exista um grau mínimo aceitável de igualdade e justiça, essa situação, segundo minha perspectiva, não poderá se manter sem uma saudável diversidade política, ligada à dedicação integral pelo desenvolvimento da autonomia individual; autonomia essa que nos faz, afinal de contas, HUMANOS - para além da simples noção de servos de algum senhor benevolente qualquer, seja ele encarnado na figura de Deus, de um Presidente ou, de forma mais ampla, de um Estado burocrático tão acolhedor quanto intolerante com qualquer forma de pensamento independente.
Pedro Mancini