Vivemos numa sociedade que faz muitas exigências aos indivíduos, causando-lhes, com freqüência, sensações de profunda ansiedade e insegurança. Essas múltiplas demandas são, muitas vezes, contraditórias, tornando seu impacto sobre os homens ainda mais problemático: ao mesmo tempo, por exemplo, que somos solicitados a nos manter minimamente coesos, tendo uma só personalidade, convivemos com ambientes cada vez mais diversificados que exigem, por sua vez, representações de papéis particulares. Temos que ser filhos, pais, irmãos, amigos, namorados, trabalhadores, entre muitas outras coisas e, concomitantemente, ser "a mesma pessoa", controlar nossos impulsos e emoções, e agir de modo aparentemente racional.
Essas exigências, derivadas de uma sociedade amplamente individualizada e racionalizada, podem causar verdadeiras rupturas na identidade de alguns indivíduos, que não suportam o peso das dinâmicas contemporâneas. Entre as reações defensivas que uma pessoa pode adotar, inconscientemente, para se proteger da insegurança derivada das exigências contraditórias da sociedade atual, destaco, nessa postagem, a possibilidade da cisão da personalidade, a ser melhor definida nas linhas que se seguem.
Não é à toa que, para a psicanálise, as patologias psicológicas mais típicas da atualidade, para além do narcisismo e da egolatria, são a esquizofrenia e o transtorno da personalidade esquizóide. Todas essas patologias, fortemente favorecidas pela hiper-individualização contemporânea, relacionam-se com a defesa de um self enfraquecido pelas pressões sociais, mergulhado em uma busca, em seu interior, por um eu “verdadeiro".
Enquanto o ególatra se compromete em manter uma imagem exagerada de si para os outros, e o narcisista só enxerga o mundo sob a lente de sua própria imagem e interesses, o esquizofrênico e o esquizóide escondem-se em suas fantasias. No caso do esquizóide, o self é cindido entre um"eu" visto como verdadeiro, autêntico, espontâneo e criativo (e, muitas vezes, extraordinário e poderoso, com características ou muito boas, ou muito más - alguém que se acha deveras inteligente, ou perigoso, em seu interior), que só o próprio indivíduo conhece, e um "eu falso" - aquele preocupado com a aceitação social, comprometido com as representações da vida cotidiana, agindo de modo mecânico para agradar a sociedade e realizar as tarefas do dia-a-dia que lhe são exigidas.
A sociedade é vista por ele com medo e desprezo, considerada fria, sem graça, desprovida de magia e de significado. O mergulho num universo íntimo de imaginação não seria, nesse sentido, mais do que uma forma de re-encantar um mundo desencantado pela burocratização e pela saturação social. Cumpriria, assim, o mesmo papel que um esporte radical ou uma ida ao Shopping Center (ler últimas postagens), ativando sensações mais brutas e instintivas que acarretariam em uma efêmera e provisória sensação de liberdade e controle sobre si (beirando, por vezes, a uma sensação de megalomania).
Vamos a exemplos mais práticos sobre essas possibilidades de cisão do Eu, que escapam da mera perspectiva de patologias psíquicas. De fato, problemáticas da "dupla personalidade", da "identidade secreta", entre outras, têm sido muito exploradas pela própria mídia televisiva. Os contos contemporâneos estão cheios de personagens que se escondem por detrás de máscaras, ou que se separam entre um eu "verdadeiro" e um "falso". De super-heróis a serial killers, o problema da divisão entre múltiplos "eus" têm sido apropriado de formas diversas. Muitas vezes, essa questão é interpretada sob a ótica de dicotomia falso/real: O filme Avatar aparece, aqui, como o último exemplo cinematográfico que levanta a discussão de uma dupla identidade, e sobre qual delas deve ser vista como "verdadeira" e dotada de significado e qual, em contrapartida, seria fútil e banal, merecendo o abandono.
Acredito que muitos de nós conheçamos, ainda, exemplos de pessoas cujas personalidades possam ser classificadas como mais ou menos próximas das noções de esquizofrenia e da síndrome da personalidade esquizóide.
O ex-namorado de uma grande conhecida é um modelo útil para esse caso. Perante a sociedade, a pessoa em questão demonstrava ser muito tímida e reservada: parecia, mais do que isso, estar sempre desconfortável, como se calculando mecanicamente cada uma de suas ações em público. A própria namorada, posteriormente, revelou que ela mesma não sabia o que passava na cabeça do amante, em muitas situações do dia-a-dia.
Em seu interior, contudo, ele detinha hábitos secretos aos olhos conhecidos – que, no caso considerado, revelavam uma grande imaturidade e confusão identitárias. Aparentemente, apenas conseguia se realizar por meio dessas ações secretas consigo próprio, e não pelo contato com o resto do mundo: sua intimidade constituía-se como um refúgio de prazer, permanentemente ameaçado pelo contato com o mundo “real”, com pessoas concretas.
O indivíduo considerado foi vítima de outra característica típica do esquizóide: por mais que tenha medo e aversão a relacionamentos profundos, lá no fundo eles almejam relacionar-se, escapar de sua condição de isolamento e alienação. Por vezes, o meio encontrado para possibilitar essa relação é arrastar outras pessoas para seu mundinho de fantasias – uma namorada que mantivesse seus segredos a salvo, por exemplo.
No decorrer do namoro, foi, aos poucos, revelando seu lado obscuro, por assim dizer (sem qualquer julgamento moralista de minha parte). A partir daí, o relacionamento desabou: afinal, não é qualquer um que está disposto a mergulhar no mundo de fantasia de um esquizóide. Esse mundo só têm significado para seu criador, estando, por vezes, muito além da compreensão de indivíduos de fora – ao menos, para as pessoas mais conhecidas do sujeito.
O que resta para o esquizóide dessa espécie, fracassada sua tentativa de englobar outra pessoa em suas fantasias infantis, é a continuação de seu drama anterior: continuar vagando sozinho pelo mundo, representando papéis artificiais e buscando, ao mesmo tempo, uma alma que possa compreendê-lo e resgatá-lo de sua bolha entorpecente.
Esse é um de muitos frutos que podem germinar em um terreno fertilizado pela contemporaneidade. Condenando os indivíduos a se responsabilizarem totalmente por suas existências, a sociedade atual difunde igualmente uma insegurança que nos faz agarrar, com freqüência, a hábitos compulsivos e identidades defensivamente formadas, que, mesmo precariamente, nos fornecem uma sensação de relativa segurança. Comportamentos compulsivos, por exemplo, já trazem uma segurança pelo seu caráter repetitivo em uma sociedade cuja principal regra é a da perpétua e incontrolável mudança.
Pedro Mancini
4 comentários:
fiquei curiosa pra saber se vc aborda a relação entre a personalidade esquizóide e os "avatares" em sua pesquisa!
Olá Mariana!
Olha, sem dúvida alguma eu pretendo abordar a questão, sim. Acho que tem tudo a ver, ao menos em certas formas de uso da Internet, possibilitadas por softwares como o Second Life.
Mas sei que estou pisando em um "campo minado" teórico, e deverei utilizar esse conceito com muita cautela!
Pedro,
Perfeito. Nota dez pra seu post. Sou "esquizóide" de terceira geração (como meus avós nunca me dirigiam a palavra fica difícil saber se houve mais "antepassados esquizos").
Às vezes a vida empurra gente como nós em situações que nos forçam abrir um pouco e com isso há um ganho de visão. Por "acidente" tive filhos e casei, com um Borderline! Imagine o inferno astral que não era. Consegui o divórcio, as crianças moram comigo são algo incrível em termos de empatia e percepção do mundo e das pessoas.Elas me salvaram, e me ajudaram a perceber que ao contrário de fria, sou capaz de um amor de que poucos são capazes.
Posso dizer que estou "lúcida" a respeito de minhas limitações. Daqui pra frente prefiro seguir solteira.
Meu, identifico-me com tudo isso e ainda me assusto, apesar de ter buscado ajuda
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