quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Religião e política nas eleições 2010: O uso de Deus no vale-tudo eleitoral

Não restam dúvidas: questões religiosas colonizaram totalmente o debate político-eleitoral. E o pior: por iniciativa de um agrupamento político que nasceu com idéias ditas "progressistas", em contraposição a um regime militar de cunho conservador, e que conta com um quadro de intelectuais e empresários modernosos. Como explicar essa guinada absurda em direção à extrema-direita, reacionária e fundamentalista, que se opõe à descriminalização da homofobia e a políticas sociais que provenham atendimento às mães que decidam abortar?

Ora, a reposta, a primeira vista, seria óbvia: puro oportunismo eleitoral. E é isso mesmo - em momento de desespero, correndo o risco de derrota logo no primeiro turno, Serra radicalizou nos minutos finais da campanha, aproveitando-se da ferocidade religiosa de boa parte do eleitorado brasileiro. Somando forças com as denúncias contra Erenice, o fator religioso conseguiu não somente empurrar as eleições para o segundo turno, como reduzir drasticamente a vantagem de Dilma sobre seu rival. 

Mas não questiono, aqui, as óbvias motivações tucanas para reacender o debate religioso; mais difícil é compreender o sucesso dessa estratégia, considerando o suposto caráter progressista do PSDB e de seu eleitorado, concentrado em setores das classes média e alta, que, em boa parte, não são lá muito religiosos (em geral, são aqueles que demonstram sua religiosidade quando casam na Igreja). Muitos, aliás, não questionam a necessidade de um Estado moderno e laico. (Vale lembrar que o próprio Serra, quando Ministro da Saúde, legalizou o aborto em alguns casos específicos, como nas gravidezes resultantes de estupro ou que coloquem em risco a vida da mãe.) Assim, seria de se suspeitar a continuidade de seu apoio a um candidato que abraça bandeiras extremistas e passa a namorar com setores fundamentalistas.

A única explicação que consigo encontrar é a seguinte: o eleitorado peesedebista demoniza os petistas de modo tal que está disposto a fazer qualquer negócio para derrotá-los. Engraçado que esse tipo de comportamento do "vale tudo", dos "fins justificando os meios", vez ou outra é imputada aos petistas, pelos próprios tucanos, para fins de agressão e desqualificação. José Dirceu, o bicho-papão do PT, já sofreu muito com essa análise: ele seria um militante tão fervoroso, acreditaria tanto em um "novo mundo" socialista, que estaria disposto a QUALQUER COISA para atingir seus objetivos, inclusive afundar-se em um lamaçal de corrupção. Tudo isso por seus ideais. 

Pois bem. Ironicamente, o PSDB sofre do mesmo mal imputado a seus adversários. Pela queda do PT e para colocar-se mais uma vez no poder, vende sua alma ao fundamentalismo cristão. O sucesso dessa aproximação relaciona-se, por sua vez, tanto a falta de religiosidade de seu eleitorado clássico (esses "progressistas" das classes média e alta), quanto pelo excesso de religiosidade de um potencial eleitorado de Dilma. 

Em outras palavras: enquanto o ódio do eleitorado peesedebista pelo PT é maior do que sua vinculação religiosa, o amor de parte do eleitorado por Dilma seria menor do que seu fervor cristão. Assim, o PSDB acaba perdendo poucos eleitores, enquanto o PT corre risco de perder um número bem maior, sendo associado a bandeiras rejeitadas por templos e igrejas. Para os não-religiosos, os tucanos vendem simplesmente a idéia de que Dilma tem "duas caras", mudando de posições a respeito do assunto. Serra e sua equipe perceberam isso e partiram para o ataque: têm muito menos a perder do que a ganhar com esse jogo, ao menos eleitoralmente falando. Os princípios que se danem. 

Aliás, também lamento que, agarrado à lógica eleitoral, ao PT nada reste a não ser recuar diante das carapaças que lhe colocam. Sabendo do enorme peso da religião para o eleitorado brasileiro, não se dá ao luxo de debater a descriminalização do aborto, defendendo com maior vigor sua posição original. Seria uma ação arriscadíssima para ele, com enormes chances de resultar em uma derrota fenomenal nas urnas. Mas não revertamos o jogo sujo: quem trouxe o debate religioso à tona, de forma banal e visando atiçar os instintos mais primitivos dos cristãos, foi o PSDB. Enquanto o PT é obrigado a recuar de seus princípios, o PSDB colocou os dele em liquidação de modo claro e ativo, trazendo Deus para o seu vale-tudo eleitoral.  

(*Obs: Sobre o mesmo tema, indico ainda a leitura de um texto de Vladimir Safatle intitulado: "A República Fundamentalista Cristã").

 
Pedro Mancini


2 comentários:

Luciana disse...

Muito bom. E ligando a rede sobre o assunto: http://stoa.usp.br/luciana/weblog/83925.html

Unknown disse...

Valeu, Luciana! Não só estou dando uma olhada no seu blog, como acabei fazendo meu cadastro também.