domingo, 10 de março de 2013

Sinais corporais e o pavor pelo insosso

Uma das maiores forças que levam muitas pessoas a tomarem certas atitudes com relação ao próprio corpo e a moldar seu comportamento em público é um enorme pavor por se parecer insosso aos olhos dos outros. Explico. 

Em uma sociedade profundamente marcada pelas aparências e por um individualismo qualitativo exacerbado e voltado "para fora", não há exigência mais constante para a vida social do que a de se parecer "descolado", "sedutor" e "interessante". E o uso do "parecer", aqui, não é banal: deve-se portar e emitir SINAIS EXTERIORES CLAROS, APARENTES, capazes de IDENTIFICAR AS CARACTERÍSTICAS "DESCOLADAS" da personalidade individual. Podem entrar em cena, aqui, as inúmeras tatuagens que permeiam os corpos plásticos contemporâneos, o cuidado extremado com o corpo em geral, o uso de piercings e outras marcas visíveis, que trazem a informação de que o indivíduo portador é "corajoso", "alternativo" e que "tem personalidade".



Itens de vestuário mais "personalizados" parecem cumprir função similar de destaque do indivíduo em meio à massa da indiferença (e, dialeticamente, de conformação e identificação a certos grupos sociais). As roupas, assim, também podem exprimir sinais corporais de um "eu performático" voltado inteiramente para se provar a posse de características pessoais socialmente valorizadas - que, de outro modo, desapareceriam no universo preto e branco da intimidade insulada.

É claro que, por um lado, falo de um fenômeno já discutido exaustivamente pela Sociologia, pela Psicologia e  por disciplinas relacionadas: a velha dialética da socialização composta, concomitantemente, por movimentos de conformação e diferenciação. Quem adota um estilo estético preocupa-se, ao mesmo tempo, em se sentir inserido nos grupos com os quais se relaciona  (e, nesse sentido, "pega mal" não se mostrar descolado ou antenado com a moda) e em destacar-se individualmente desse grupo como um ser de personalidade própria, inconfundível com qualquer outro.

Para exemplificar, a vontade de se tatuar pode traduzir a necessidade de conformação e identificação a grupos (genéricos ou específicos) de tatuados - tidos, pela sociedade, como indivíduos mais "descolados" que a média; já o desenho selecionado para se tatuar pode derivar de uma experiência íntima própria, capaz de conferir um sentido único a essa marca e exprimir uma identidade pessoal inconfundível ao portador perante os demais. Mas  parece que, nos dias atuais, o segundo movimento da dialética da socialização - a diferenciação ou individualização propriamente dita - predomina sobre a mera conformação ou adequação aos grupos (mais na intenção do que na prática, já que chegamos a um ponto em que se tornou difícil considerar que uma tatuagem destaque qualquer um perante uma massa de indivíduos portando o mesmo tipo de sinal corporal). Aqueles que marcam o corpo parecem, para mim, mais motivados por uma vontade de diferenciação do que de mera conformação social; e essa necessidade é indissociável da exposição pública de sinais personalizados e individualizantes.

Do mesmo modo que não basta ter opiniões próprias e tocar atividades cotidianas sem expô-las nas redes sociais (videm postagem anterior), já não basta possuir hobbies e passar por experiências pessoais tidas como biograficamente enriquecedoras: é preciso ESCANCARAR essas vivências, direta ou indiretamente; transformar-se em um aparato simbólico ambulante de indicação dessas experiências íntimas. Tais sinais servem como indício "irrefutável" de que somos pessoas interessantes, com experiências de vida significativas - que não merecem, portanto, ser classificadas como "insossas", "sem sal" ou sem graça. Tatuagens, piercings e roupas "maneiras" podem se reduzir, assim, ao papel de atestados simbólicos de que somos pessoas com quem vale a pena se relacionar. 



Não desprezo, aqui, as experiências particulares que se externalizam em marcas corporais: hobbies, relacionamentos, experiências religiosas, músicas, bandas e filmes favoritos... temas que nos envolvem, nos marcam, nos seduzem. Todos compomos mentalmente nossas biografias, conferimos artificialmente nossas identidades pessoais, com base nessas experiências e gostos.  O interessante, para mim, é essa aparente obsessão em criar e carregar sinais que "materializam" essas experiências, traduzindo-as em formas físicas observáveis a olho nu; como se elas fossem capazes de transcender a esfera da imaterialidade, dos sonhos e da memória, ao serem transpostas para a pele - e, nesse estado, percebidas, observadas e elogiadas aos olhos da sociedade. Não basta viver ou sonhar: é preciso registrar e exibir. E eis que convertemo-nos, indiretamente, em peças publicitárias de nós mesmos: exteriorizando vivências, acreditamos que não seremos abandonados, como mercadorias obsoletas e insossas, na prateleira do competitivo mercado de orgulhos em que estamos imersos.

Pedro Mancini

5 comentários:

Cláudia Lemes disse...

Pedro, gosto muito do jeito que você escreve, da sua objetividade. Eu acho que o caso em questão é que TUDO está escancarado, não apenas o que nos torna "interessantes" perante os outros, mas principalmente o que é banal. Nas redes sociais não são apenas nossos hobbies esquisitos ou tatuagens enormes que são expostos...mas qualquer passeio no parque, almoço com a família, filminho em casa...tudo que nos torna iguais também. Não sei até que ponto isso é negativo, compartilhar esses momentos. Sei que as pessoas tentam sempre postar uma imagem de si mesmos, mas isso sempre aconteceu, independente das redes sociais, de Instagram etc. Na verdade, acho que está ficando cada vez mais difícil mentir, e fingir. Está tudo tão aberto, que não podemos mais falar que não vamos sair com certo amigo por causa de uma dor de cabeça, correndo o risco que alguém nos marque em algum outro evento. Sei lá, é uma coisa para se pensar.

Mari Thibes disse...

Descreveu muito bem o fenômeno, meu caro, agora precisamos pensar nas explicações. Vejo o que você descreveu em estado puro em NYC. Pra mim, isso é reflexo dos estágios mais avançados do fetichismo da mercadoria, em que a demanda de individualização é supostamente atendida pela oferta de mercadorias dotadas de alta carga simbólica. Assim, uso a roupa x e emito a informação de que sou cool, descolado. (Se é cool e descolado mesmo é outra história). E, como já discutimos, enquanto se pensam "diferenciados", nunca foram tão massificados e padronizados...

fernando disse...

O final.matou a pau!

Unknown disse...

Cláudia,

Valeu mesmo pelo reconhecimento!

Ok, acho que as pessoas sempre se preocuparam, em alguma medida, com a imagem que exprimem. Mas antes aquilo que expressavam (ou procuravam expressar) era diferente: algum valor moral, uma crença ou uma habilidade específica. Agora, parece que querem exibir características mais abstratas da personalidade: que são "mais legais", "mais seguras" ou "mais descoladas" que as outras pessoas. E as redes sociais maximizam mais ainda essa preocupação, dando ferramentas para escancaramos tudo aquilo que achamos que nos valorizará perante os outros.

Há continuidade, mas acho que há diferenças significativas com relação ao passado.

Você colocou outro pouco importante: a continuidade entre as esferas física e virtual. Aquilo que escancaramos na vida online por acharmos que nos valorizará, assim, pode ao mesmo tempo nos prejudicar em outras esferas da vida... O importante é saber como administrar a contradição entre a sedução das redes sociais e os problemas que pode levar para a vida física, não caindo na ilusão de que não há consequências para o compartilhamento virtual exagerado - com base numa fraca promessa de reconhecimento imediato de nossos contatos de Facebook.

Unknown disse...

Mari,

Acho que você tem toda razão, e expôs uma excelente explicação sobre o fenômeno. Realmente, o fetichismo da mercadoria alcançou níveis estratosféricos, em termos do nível de carga simbólica conferido às mercadorias... e acho que essa visão da Teoria Crítica pode complementar a perspectiva da psicologia social a respeito da manipulação de identidades - hoje condicionada, em grande medida, pelo consumo direto de símbolos, como a própria tatuagem.

Valeu pelo comentário!