segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A tolerância desigual de Simmel e a "carteirada" de DaMatta

Hoje, trago uma  reflexão desenvolvida pelo famoso sociólogo Georg Simmel, em fins do século XIX, mais que ainda me parece bastante atual. O enxerto é de um dos artigos que compôs a coletânea "A Filosofia do Amor", com vários textos tratando somente da temática amorosa - de um ponto de vista sociológico, trabalhado, de modo brilhante, em forma de ensaio. Recomendo a leitura para todos os públicos: é um livro que aguça diretamente nossa capacidade de observação crítica da sociedade, com a apresentação de pontos de vista extremamente ousados para a época. O artigo de onde extraí o parágrafo a seguir trata, especificamente, da temática da prostituição; creio, contudo, que as perspectivas que apresenta podem ser levadas à compreensão de outros fenômenos (como, por exemplo, a criminalidade em si), mesmo nos dias presentes:


"É um caráter constante de nossa sociedade cobrar as mais elevadas exigências, em matéria de firmeza de caráter e de resistência às tentações, precisamente daqueles a quem ela mais priva das condições da moralidade. Ela pede ao proletário faminto mais respeito pela propriedade de outrem do que aos barões da Bolsa ou aos pilantras da nobreza; e exige do trabalhador uma modéstia e uma simplicidade máximas, enquanto lhe põe cotidianamente diante dos olhos a tentação do luxo de todos os que ele fez enriquecer; ela se horroriza muito mais com a criminalidade das prostitutas do que com a de qualquer outra categoria, sem pensar que deve ser muito mais difícil para o excluído superar a tentação de agir mal do que para aquele que se acha confortavelmente instalado em seu seio". 


Mais interessante é pensar como essa visão se adaptaria à realidade brasileira e suas especificidades, de acordo, por exemplo, com a perspectiva que Roberto DaMatta, apresenta em "Carnavais, Malandros e Heróis". Será que o fenômeno exposto por Simmel não se agravaria em um ambiente altamente estratificado como o brasileiro, em que os mais favorecidos utilizam-se de seu status para obter vantagens diretas de instituições que deveriam tratar a todos com igualdade? Será que não somos ainda mais tolerantes com comportamentos "desviantes" dos privilegiados, em comparação com os assumidos pelos excluídos?

É claro que, em muitos meios, borbulham indignações quanto aos privilégios de que políticos e "autoridades" se munem (como promotores de justiça que se envolvem em acidentes com a certeza de não serem propriamente punidos). Mas podemos pensar até que ponto, e para muitos, essa indignação não passa de certa "inveja" cultivada por aqueles que não podem deter os mesmos privilégios, ao invés de uma indignação ampla e consolidada sobre as desigualdades desse sistema personalista em que nos encontramos. Afinal, como as pesquisas mostram, os brasileiros adoram dar suas "carteiradas" e aplicar "jeitinhos" - ou o famosos "você sabe com quem está falando?" - na primeira oportunidade que têm, ao mesmo tempo em que não se comformam com as carteiradas e os jeitinhos aplicados por outrens.

De todo modo, essa relação especial do brasileiro com o jeitinho e outros privilégios de status parece casar perfeitamente com a visão de Simmel, ao menos em uma primeira olhadela.

Pedro Mancini








3 comentários:

Anônimo disse...

Inveja ou indignação... putz, ta aí uma pergunta capciosa. Acho que no nosso desejo por poder e superioridade, que nenhum comunismo consegue aplacar, queremos ser acima da lei, imunes a ela ou que estaja ao nosso lado (como nos funcionários públicos e o desacato a autoridade).
Acho que o trecho cabe muito bem em qualquer época da humanidade, as leis para o povo existem para que a conduta do pobre seja a mais honesta possivel, enquando as leis da nobreza (por assim dizer) existem para que eles nunca caiam de sua nobreza e mantenham o que possuem, mas isso não se arrasta, pelo menos, desde a idade média?
O pobre pode derrubar a nobreza, a história prova, mas pode o pobre prevenir a reascençao da nobreza sem ter ele a cultura que normalmente só a nobreza tem?
Acho que nos indignamos 2 vezes, pela pilantragem e pela nossa inveja da pilantragem.

Unknown disse...

Olá Luiz,

Achei interessantes as suas indagações finais. Mas cabe tecer alguns comentários:

1) O comunismo - ou, ao menos, o "socialismo real" aplicado na URSS e outros lugares - realmente não conseguiu aplacar (nem foi seu objetivo) aquilo que você chamou de "desejo por poder e superioridade". Pelo contrário, direcionou esse "desejo" para sua própria lógica. Continuou havendo uma distinção clara de classes, em que os dirigentes e militantes do partido dominante, ou seja, o Partido Comunista, detinham claros privilégios sobre os demais.

2) Acho que, mesmo se considerarmos que tal desejo compõe a natureza humana, estando presente em todas as épocas (presunção em si mesma questionável, embora digna de maiores pesquisas), acredito ser possível canalizá-lo de outros modos, que não na tentativa de subjulgar a lei a seu próprio favor. Pode, por exemplo, ser direcionado à competição capitalista-liberal ou à meritocracia: onde vende-se a idéia de que o indivíduo pode se mostrar "superior e mais poderoso" (ou merecedor de mais poder) mediante uma disputa aberta com seus "iguais" (na verdade, sabe-se o quanto esse discurso liberal é falso: os competidores largam de posições distintas na corrida por "sucesso" profissional e social). Aqui, o desejo por diferenciação é utilizado na composição da própria ordem social capitalista.

3) Uma possível peculiaridade do Brasil, seguindo essa lógica, seria (para além de seguir os padrões capitalistas e meritocráticos) sua tendência em direcionar o "desejo por diferenciação" a tentativas de se beneficiar individualmente sobre leis que deveriam ser aplicadas igualmente a todos.

Cristiano Bodart disse...

Fica o convite para conhecer o blog
Café com Sociologia
http://cafecomsociologia.blogspot.com/